Que uma sociedade que se pretende mais
justa vai atiçando, em revolta e ódio - "O Grito" de Munch, resultante
de outras angústias mais intimamente sentidas - este texto de Teresa de Sousa, lúcido e sério, a pretender respostas
que só o tempo, à la longue, nos
poderá trazer, o inesperado tantas vezes boicotando aspirações, desfazendo
ilusões. O costume. Attendons.
ANÁLISE
Trump e a asfixia da democracia americana
“I can’t breathe” começou por ser o
grito de revolta de uma minoria negra para se transformar num grito em defesa
da democracia americana, partilhado por milhões de cidadãos. Trump dispara em
todas as direcções à procura de uma saída.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 7 de
Junho de 2020
1.“Quem
quer que se preocupe com o estado da democracia na América deve ter ficado
perturbado na segunda-feira passada com a imagem do chefe das Forças Armadas,
general Mark A. Milley, avançando atrás de Donald Trump durante a demonstração
de força do Presidente na Lafayette Square”, escreve Robert Kagan no Washington Post. E prossegue: “Em
farda de combate e ao lado do Procurador-geral William Barr, do conselheiro
nacional de segurança Robert O’Brien e de outros, o oficial com a mais alta
patente do exército americano materializou a ameaça do Presidente de usar as
forças armadas dos EUA para pôr termo ao ‘terrorismo doméstico’.”
No
mesmo dia, o general na
reserva James Mattis, que serviu
Trump como secretário da Defesa durante dois anos até se demitir, escreveu na
revista The Atlantic a mais dura e concisa
crítica ao seu antigo chefe: “Acompanhei, zangado e chocado, o desenrolar dos
acontecimentos da última semana. As palavras ‘Justiça Igual sob a Lei’ estão
gravadas no frontão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. É isso
precisamente que os manifestantes estão a exigir (…) É uma exigência geral,
saudável e unificadora – à qual todos nós devemos dar o nosso apoio (...) Temos
de rejeitar e responsabilizar aqueles que, no exercício do poder, fizerem da
nossa Constituição uma farsa.”
O vento mudou desde esse dia. O actual chefe
do Pentágono, Mark T. Esper, que
participou na “marcha presidencial” da Praça Lafayette, sentiu-se obrigado a
dizer que tinha lá estado apenas porque Trump o chamara à Casa Branca, mas que não
considerava “por enquanto” necessário o recurso às forças armadas para conter
os protestos. Antes do “desfile” do Presidente até à Igreja Episcopal de
St. John, de Bíblia contra o peito, William Barr deu ordem à policia para dispersar
com gás lacrimogéneo e balas de borracha os manifestantes que se aglomeravam junto ao nº 1600 da Pennsylvania
Avenue. A América seguiu em directo pelas televisões.
Uma semana depois, os militares
continuam nos quartéis – Trump já
veio dizer que, se calhar, não são precisos -, embora o novo armamento militarizado da polícia estacionada
em frente do Memorial a Lincoln ou a Guarda Nacional nas escadarias da Casa Branca mantenham
a imagem de um poder sitiado. Nas
ruas e nas praças de 350 cidades americanas os protestos continuam, na sua
maioria pacíficos. O assassínio de George Floyd em Mineápolis, no dia 25 de
Maio, por um polícia local foi o rastilho. A História ensina que nunca se sabe
exactamente que pequena faísca “pode incendiar a pradaria”. “I
can’t breathe” começou por ser o grito de revolta de uma minoria
negra para se transformar num grito em defesa da democracia americana,
partilhado por milhões de cidadãos. De todas as cores, crenças, ideologias e
opções políticas. As imagens percorrem o mundo. Trump dispara em todas as
direcções à procura de uma saída que volte a dar-lhe o controlo da situação.
Vestiu definitivamente as vestes do Presidente da “lei e da ordem”. Num país em
chamas, joga no medo. A “desordem” nas ruas tem a pandemia como pano de
fundo. O que se passa na América?
2.Poucas vezes como hoje foi tão frágil
a imagem dos Estados Unidos no mundo. E não por qualquer guerra perdida ou pelo
ocaso, sempre vaticinado mas sempre desmentido, da sua economia, como aconteceu
noutras alturas.
No
final dos anos 1960, com o enorme desgaste moral e político da guerra do
Vietname e os efeitos conjugados dos movimentos de contestação estudantil e da
ressaca do movimento dos direitos cívicos, a América chegou a parecer-se com um
país mergulhado em profunda crise, descrente de si próprio, em declínio
inevitável. O legado desses anos haveria de durar até que Ronald Reagan, eleito
Presidente em 1980, anunciasse a sua “guerra das estrelas” contra o comunismo e
prometesse “uma cidade a brilhar no topo da colina.”
Dez
anos depois, caia o Muro de Berlim, implodia a União Soviética, a América reinava
sobre o mundo sem adversário à altura e preparava-se para eleger um Presidente
que nascera para a política nos anos da contestação estudantil e da revolta
contra a guerra. A democracia americana parecia revigorada. A sua economia
preparava-se para renascer das cinzas de uma prolongada recessão. O mundo
parecia perfeito.
Houve
o 11 de Setembro, a “guerra ao terror” e a face mais negra da globalização. A
primeira década do novo século terminou com uma crise financeira que nasceu nos
Estados Unidos e que contaminou a economia global, com consequências económicas
e sociais devastadoras. Mas a América preparava-se para eleger o seu primeiro
Presidente negro, desafiando de novo o espanto e a admiração do mundo. A terra
onde tudo era possível liderava a retoma da economia e a progressiva reforma de
uma ordem internacional cuja liderança estava disponível para partilhar com as
outras democracias em nome de uma “humanidade comum.” Obama anunciava que o
século XXI ficaria marcado pela rivalidade estratégia entre a América e a China
– a nova candidata a superpotência que desafiava a hegemonia americana.
3.Três anos e meio de Donald Trump e a
emergência fulminante da China, desafiando o domínio dos valores ocidentais na
ordem internacional, deixaram o mundo sem liderança e as democracias na
defensiva. E depois chegou uma pandemia que ninguém previu e para a qual
ninguém estava preparado. Pela primeira vez, os Estados Unidos abdicavam de
liderar o mundo no combate a uma crise global.
A “America First” do actual
Presidente, não apenas minou o prestígio e a influência dos EUA, como deixou o
país mais poderoso do mundo sem uma política externa que ultrapasse a mera
defesa dos seus interesses imediatos e em que a única regra que passou a contar
foi a das relações de força entre as nações. As relações com a Europa, sem
chegarem a um ponto de ruptura, arrastam-se à espera de melhores dias, na
esperança de que o pesadelo passe no próximo mês de Novembro.
O
confronto com a China, eleita desde 2018 por Donald Trump como o “inimigo”
comercial a abater, agravou-se com a eclosão da pandemia na cidade de Wuhan. O
“vírus chinês” foi uma maneira de desviar as atenções e de ir ao encontro do
sentimento crescente de desconfiança da opinião pública – democratas e
republicanos confundidos – em relação a Pequim.
Nada disso impediu que a pandemia cobrasse mais de 100
mil vidas e afundasse a economia – que foi até agora o seu mais
forte e mais seguro argumento para garantir a reeleição. Trump não saiu do seu
comportamento habitual: rejeitar as recomendações científicas, afastar
arbitrariamente os responsáveis da sua administração que pensavam de maneira
diferente, acusar de “cobardes” os governadores dos estados que
prolongavam o confinamento ou insistiam nas medidas de protecção em detrimento
do funcionamento da economia. Até que aconteceu Mineápolis.
4.“A
lei marcial ou algo próximo da militarização das cidades americanas é
plausível?”, interrogava-se recentemente o correspondente do Financial Times, Edward Luce. “Nos
últimos dias, os residentes de Washington ficaram familiarizados com helicópteros
a voar a baixa altitude, Humvees cor de
areia nas ruas, recolher obrigatório e homens de uniforme. Se estas cenas se
desenrolassem em Hong-Kong, todos os think-tanks da
capital americana estariam a agendar debates urgentes.”
Em Hong-Kong, apesar da nova lei de segurança
imposta por Pequim, milhares de manifestantes celebraram silenciosamente o
31º aniversário do massacre de Tiananmen. “O Departamento de Estado apelou ao
‘povo amante da liberdade’ para confrontar a China pela imposição da lei
nacional de segurança a Hong-Kong. Um funcionário chinês tweetou imediatamente
‘Não consigo respirar’”, escrevia o mesmo diário britânico em editorial.
Os analistas debruçam-se sobre o
desgaste que as imagens que percorrem o mundo causarão inexoravelmente na
política externa americana. “Os líderes
internacionais, amigos ou não, estão a rever as suas estratégias para lidar com
uma Administração não convencional mergulhada em profunda turbulência”, escreve
Walter Russel Mead. “Moscovo e Pequim tentarão tirar a máxima vantagem. Berlim tentará
ignorá-lo.” “Se a China resolver enviar tanques para Hong-Kong, o mundo dará
alguma atenção ao que disser o Senado americano?”. Os danos são, portanto,
incalculáveis.
Antes
de 25 de Maio, as imagens que chegavam da América pareciam vindas de um país
atrasado e incapaz de fazer frente à pandemia, mesmo que a realidade dos
números comprove que os seus efeitos foram idênticos aos das democracias
europeias. O desemprego disparou de um dos seus níveis mais baixos de sempre
para 15% – mais de 40 milhões de empregos foram perdidos em dois meses. Trump
perdia o seu grande trunfo eleitoral.
O rastilho provocado pelo homicídio
de George Floyd em pano de fundo de pandemia e de desemprego trouxe ao de cima
uma América que parecia estar definitivamente adormecida. O debate é hoje sobre
a gravidade da “doença” da maior democracia do mundo. Ou melhor, sobre a
dimensão dos danos provocados por um Presidente impreparado, ignorante da
Constituição, intrinsecamente autoritário. A cinco meses das eleições
presidenciais, o cenário em que vão ser disputadas mudou radicalmente. O mundo
assiste de respiração suspensa. Como se chegou aqui?
5. Quando
Donald Trump chegou à Casa Branca, depois da sua inesperada eleição em Novembro
de 2016, o pensamento dominante ditava ainda que as vestes fariam o monge. O que o candidato Trump dissera durante a
campanha eleitoral era uma coisa, o que faria em Washington seria
necessariamente outra. O staff de
conselheiros e os altos cargos da Administração limariam as arestas mais
autoritárias, xenófobas, isolacionistas do sucessor de Barack Obama. A América
não poderia ter mudado assim tanto. A grande democracia americana, com os seus checks and balances resistiria a
quaisquer percalços.
Durante
os primeiros anos do mandato do actual Presidente, vigorou maioritariamente
a tese segundo a qual os maiores danos seriam provocados na
política internacional, acelerando
a destruição a ordem liberal internacional construída pelos EUA e reconstruída
com sucesso depois da implosão da União Soviética.
Hoje o debate mudou de tom.
“Os episódios dos últimos dias levantam uma questão que tem perturbado os
cientistas políticos desde que Trump chegou ao poder”, escreve Max Fischer no New York Times. “Se o seu
comportamento, habitualmente presente em democracias frágeis com instituições
fracas traria a Trump os mesmos ganhos políticos e se provocaria o mesmo
desgaste às normas e às instituições que servem como fundamentos da democracia.”
A
colunista Katleen Parker confessa no Washington Post:
“Há quatro anos, escrevi que haveríamos de sobreviver independentemente de
quem ganhasse [as presidenciais]. Estava totalmente enganada. O meu exercício
de optimismo baseava-se na minha fé nas instituições.”
“O
Presidente aproximou-se nesta semana, mais do que em qualquer outro momento da
sua presidência, de reproduzir, na aparência mesmo que não na forma, alguns dos
traços dos ‘homens fortes’ pelos quais nunca escondeu a sua admiração”, escreve ainda Max Fischer. Já elogiou Putin pelo seu “controlo muito forte” sobre a Rússia e
chegou a dizer que o massacre de Tiananmen mostrou “o poder da força” do
regime chinês. Pode contar com um Senado cujos eleitos republicanos,
maioritários (perderam a maioria na Câmara dos Representantes nas eleições
intercalares de 2018), nunca deram qualquer sinal de pôr em causa as suas
decisões ou o seu comportamento.
“Porque são o produto de um partido que evoluiu politicamente nas últimas duas
décadas no sentido do populismo, cada vez mais dependente dos votos de uma
maioria branca conservadora desconfiada de Washington e da elite política e
intelectual – que nunca aceitou a eleição de um Presidente negro – e que teme vir
a ser suplantada pelo crescimento constante da imigração.”
“O Grand Old Party actual não tem
nada a ver com o passado. Muitas das suas figuras mais proeminentes, como o
senador Tom Cotton, são tão autoritárias e antidemocráticas como Trump. O resto, com algumas poucas excepções, são apparatchiks leais ou intimidados
até à obediência por uma base furiosa, que obtém a sua informação através da Fox News e do Facebook e que basicamente vive uma
realidade alternativa na qual os protestos e os manifestantes pacíficos contra
a polícia são apresentados como uma horda que dará inicio a uma insurreição
violenta a qualquer momento”, escreveu Paul Krugman.
O
Prémio Nobel da economia e colunista do New York Times admite
que haja na actual situação algumas semelhanças com a época que precedeu a
primeira eleição de Richard Nixon, em 1968, mas também sublinha as diferenças.
“Em muitos aspectos somos um país melhor, mas estamos mergulhados numa crise
política mais grave, porque um dos nossos dois grandes partidos deixou de acreditar
na própria ideia de América.”
6.
Até agora, os eleitos republicanos no Senado e na
Câmara têm preferido o silêncio. O
que farão se a situação se agravar? O seu silêncio quer dizer que ainda não
perderam a esperança de Trump vir a ganhar com base na velha plataforma
política da “lei e ordem” que Nixon utilizou com sucesso, tirando proveito da
ansiedade dos subúrbios brancos das cidades.
Tudo
depende da forma como cada eleitor americano olhar para as imagens que as
televisões transmitem – protestos pacíficos que juntam americanos das mais
variadas proveniências ou apenas ruas e casas a arder. Polícias armados até aos
dentes que carregam sobre manifestantes ou policias que se ajoelham ao seu
lado, recusando identificar-se com aquele que matou George Floyd ou os que
mataram tantos outros antes dele.
No ano passado, a polícia abateu a
tiro 1040 cidadãos americanos. A maioria pertencia a minorias. Nos anos de
Obama, os números não foram muito diferentes.
Há 350 milhões de armas legais distribuídas entre a população. O incêndio
alastrou pelas mesmas razões que tantas vezes o atearam no passado. “A maioria dos afro-americanos continuam a viver
em lugares com as piores escolas, os piores serviços de saúde e os piores
empregos” escreve a Economist. “As
leis aplicam-se aos negros de forma diferente; a pandemia pôs em relevo que,
quando os americanos sofrem, os negros americanos sofrem mais.” A
pandemia expôs de uma forma brutal a incapacidade de Trump para liderar e unir
um país em crise e em sofrimento.
“A
América enfrenta o espectro de um longo Verão de protestos com um Presidente
apostado em alimentar a polarização”, escreve de novo Edward Luce. “As
palavras de George Floyd a morrer servem de metáfora a uma sociedade asfixiada
por políticas cada vez mais tóxicas. É difícil imaginar um cenário mais
contraditório e mais infeliz para a mais poderosa democracia do mundo tentar
decidir sobre o seu futuro”.
TÓPICOS
COMENTÁRIOS
fatima INICIANTE Que mania de meter o nariz nos assuntos dos outros quem os
elegeu democraticamente foram os americanos e os brasileiros o problema é
deles. 07.06.2020
Lars
Arens INICIANTE:
Pois é. A imprensa portuguesa devia
deixar de ter notícias do estrangeiro. Entretanto a Sra devia dedicar-se ao
futebol, fado e Fátima, e limitar a sua leitura aos artigos locais. Porquê
meter o nariz nos assunto dos outros? E o Hitler? Ah era assunto alemão só, não
afectou mais nenhum outro país ... o Bolsonaro destrua a floresta tropical toda
se achar bem, só vai afectar ao Brasil... a política do Trump só afecta aos
cidadãos dos EUA...
joorge INICIANTE :
Eles é que têm menos anos de esperança de
vida, eles é que não têm serviço público de saúde, eles é que se houver
desgraça ficam absolutamente indefesos. Abençoado Portugal e abençoada Europa.
Helder
Antunes EXPERIENTE: A sério? Mais um, o enésimo, artigo de pesar e queixume sobre a
qualidade da Democracia nos EUA, sempre em animado despique e competição com
outros que tais mas que têm como cenário o Brasil? Não está grande coisa e o
respectivo estado da nação ou nações, igual. Porque as forças políticas
perdedoras das eleições mais recentes em articulação com os seus satélites e
apêndices na sociedade civil, jornalistas à cabeça e em grande destaque,
encetaram uma luta sem fim, sem ética, pudor, vergonha, dignidade e sobretudo e
acima de tudo, em desrespeito total, espanto, pela Democracia. Melhor é
impossível. É o chamado fazer a festa, atirar os foguetes, apanhar as canas.
Dir-se-á que a qualidade da Democracia só será restaurada quando voltarem a
ganhar. Visões da esquerda sobre Democracia.
Nuno
Silva EXPERIENTE: O que importa de facto para Trump e apoiantes, é que os
milionários paguem menos taxa de imposto do que a família média americana. E
não é necessário vir a Ivanca dar entrevistas para lembrar o facto... Isto que
se está a passar agora, incluindo a extrema violência, serve a propósito...
Roberto34 INFLUENTE:
Excelente texto como sempre. Mas
infelizmente Trump irá apostar na polarização e na sua base fiel de eleitores
que muito provavelmente lhe irá dar novamente a vitória. Ainda a semana passada
relatava o The Guardian no bairro branco de Detroit que essa base fiel está
completamente a favor de tudo o que Trump tem feito e é contra estes protestos,
desvalorizando a situação e a desigualdade da comunidade afro-americana.
Portanto penso que nada mudará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário