sábado, 13 de junho de 2020

E por entre os gritos


Que uma sociedade que se pretende mais justa vai atiçando, em revolta e ódio - "O Grito" de Munch, resultante de outras angústias mais intimamente sentidas - este texto de Teresa de Sousa, lúcido e sério, a pretender respostas que só o tempo, à la longue, nos poderá trazer, o inesperado tantas vezes boicotando aspirações, desfazendo ilusões. O costume. Attendons.
ANÁLISE
Trump e a asfixia da democracia americana
“I can’t breathe” começou por ser o grito de revolta de uma minoria negra para se transformar num grito em defesa da democracia americana, partilhado por milhões de cidadãos. Trump dispara em todas as direcções à procura de uma saída.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 7 de Junho de 2020
1.“Quem quer que se preocupe com o estado da democracia na América deve ter ficado perturbado na segunda-feira passada com a imagem do chefe das Forças Armadas, general Mark A. Milley, avançando atrás de Donald Trump durante a demonstração de força do Presidente na Lafayette Square”, escreve Robert Kagan no Washington Post. E prossegue: “Em farda de combate e ao lado do Procurador-geral William Barr, do conselheiro nacional de segurança Robert O’Brien e de outros, o oficial com a mais alta patente do exército americano materializou a ameaça do Presidente de usar as forças armadas dos EUA para pôr termo ao ‘terrorismo doméstico’.
No mesmo dia, o general na reserva James Mattis, que serviu Trump como secretário da Defesa durante dois anos até se demitir, escreveu na revista The Atlantic a mais dura e concisa crítica ao seu antigo chefe: “Acompanhei, zangado e chocado, o desenrolar dos acontecimentos da última semana. As palavras ‘Justiça Igual sob a Lei’ estão gravadas no frontão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. É isso precisamente que os manifestantes estão a exigir (…) É uma exigência geral, saudável e unificadora – à qual todos nós devemos dar o nosso apoio (...) Temos de rejeitar e responsabilizar aqueles que, no exercício do poder, fizerem da nossa Constituição uma farsa.”
O vento mudou desde esse dia. O actual chefe do Pentágono, Mark T. Esper, que participou na “marcha presidencial” da Praça Lafayette, sentiu-se obrigado a dizer que tinha lá estado apenas porque Trump o chamara à Casa Branca, mas que não considerava “por enquanto” necessário o recurso às forças armadas para conter os protestos. Antes do “desfile” do Presidente até à Igreja Episcopal de St. John, de Bíblia contra o peito, William Barr deu ordem à policia para dispersar com gás lacrimogéneo e balas de borracha os manifestantes que se aglomeravam junto ao nº 1600 da Pennsylvania Avenue. A América seguiu em directo pelas televisões.
Uma semana depois, os militares continuam nos quartéis – Trump já veio dizer que, se calhar, não são precisos -, embora o novo armamento militarizado da polícia estacionada em frente do Memorial a Lincoln ou a Guarda Nacional nas escadarias da Casa Branca mantenham a imagem de um poder sitiado. Nas ruas e nas praças de 350 cidades americanas os protestos continuam, na sua maioria pacíficos. O assassínio de George Floyd em Mineápolis, no dia 25 de Maio, por um polícia local foi o rastilho. A História ensina que nunca se sabe exactamente que pequena faísca “pode incendiar a pradaria”. I can’t breathe” começou por ser o grito de revolta de uma minoria negra para se transformar num grito em defesa da democracia americana, partilhado por milhões de cidadãos. De todas as cores, crenças, ideologias e opções políticas. As imagens percorrem o mundo. Trump dispara em todas as direcções à procura de uma saída que volte a dar-lhe o controlo da situação. Vestiu definitivamente as vestes do Presidente da “lei e da ordem”. Num país em chamas, joga no medo. A “desordem” nas ruas tem a pandemia como pano de fundo. O que se passa na América?
2.Poucas vezes como hoje foi tão frágil a imagem dos Estados Unidos no mundo. E não por qualquer guerra perdida ou pelo ocaso, sempre vaticinado mas sempre desmentido, da sua economia, como aconteceu noutras alturas.
No final dos anos 1960, com o enorme desgaste moral e político da guerra do Vietname e os efeitos conjugados dos movimentos de contestação estudantil e da ressaca do movimento dos direitos cívicos, a América chegou a parecer-se com um país mergulhado em profunda crise, descrente de si próprio, em declínio inevitável. O legado desses anos haveria de durar até que Ronald Reagan, eleito Presidente em 1980, anunciasse a sua “guerra das estrelas” contra o comunismo e prometesse “uma cidade a brilhar no topo da colina.
Dez anos depois, caia o Muro de Berlim, implodia a União Soviética, a América reinava sobre o mundo sem adversário à altura e preparava-se para eleger um Presidente que nascera para a política nos anos da contestação estudantil e da revolta contra a guerra. A democracia americana parecia revigorada. A sua economia preparava-se para renascer das cinzas de uma prolongada recessão. O mundo parecia perfeito.
Houve o 11 de Setembro, a “guerra ao terror” e a face mais negra da globalização. A primeira década do novo século terminou com uma crise financeira que nasceu nos Estados Unidos e que contaminou a economia global, com consequências económicas e sociais devastadoras. Mas a América preparava-se para eleger o seu primeiro Presidente negro, desafiando de novo o espanto e a admiração do mundo. A terra onde tudo era possível liderava a retoma da economia e a progressiva reforma de uma ordem internacional cuja liderança estava disponível para partilhar com as outras democracias em nome de uma “humanidade comum.” Obama anunciava que o século XXI ficaria marcado pela rivalidade estratégia entre a América e a China – a nova candidata a superpotência que desafiava a hegemonia americana.
3.Três anos e meio de Donald Trump e a emergência fulminante da China, desafiando o domínio dos valores ocidentais na ordem internacional, deixaram o mundo sem liderança e as democracias na defensiva. E depois chegou uma pandemia que ninguém previu e para a qual ninguém estava preparado. Pela primeira vez, os Estados Unidos abdicavam de liderar o mundo no combate a uma crise global.
A “America First” do actual Presidente, não apenas minou o prestígio e a influência dos EUA, como deixou o país mais poderoso do mundo sem uma política externa que ultrapasse a mera defesa dos seus interesses imediatos e em que a única regra que passou a contar foi a das relações de força entre as nações. As relações com a Europa, sem chegarem a um ponto de ruptura, arrastam-se à espera de melhores dias, na esperança de que o pesadelo passe no próximo mês de Novembro.
O confronto com a China, eleita desde 2018 por Donald Trump como o “inimigo” comercial a abater, agravou-se com a eclosão da pandemia na cidade de Wuhan. O “vírus chinês” foi uma maneira de desviar as atenções e de ir ao encontro do sentimento crescente de desconfiança da opinião pública – democratas e republicanos confundidos – em relação a Pequim.
Nada disso impediu que a pandemia cobrasse mais de 100 mil vidas e afundasse a economia – que foi até agora o seu mais forte e mais seguro argumento para garantir a reeleição. Trump não saiu do seu comportamento habitual: rejeitar as recomendações científicas, afastar arbitrariamente os responsáveis da sua administração que pensavam de maneira diferente, acusar de “cobardes” os governadores dos estados que prolongavam o confinamento ou insistiam nas medidas de protecção em detrimento do funcionamento da economia. Até que aconteceu Mineápolis.
4.A lei marcial ou algo próximo da militarização das cidades americanas é plausível?”, interrogava-se recentemente o correspondente do Financial Times, Edward Luce. “Nos últimos dias, os residentes de Washington ficaram familiarizados com helicópteros a voar a baixa altitude, Humvees cor de areia nas ruas, recolher obrigatório e homens de uniforme. Se estas cenas se desenrolassem em Hong-Kong, todos os think-tanks da capital americana estariam a agendar debates urgentes.”
Em Hong-Kong, apesar da nova lei de segurança imposta por Pequim, milhares de manifestantes celebraram silenciosamente o 31º aniversário do massacre de Tiananmen. “O Departamento de Estado apelou ao ‘povo amante da liberdade’ para confrontar a China pela imposição da lei nacional de segurança a Hong-Kong. Um funcionário chinês tweetou imediatamente ‘Não consigo respirar’”, escrevia o mesmo diário britânico em editorial.
Os analistas debruçam-se sobre o desgaste que as imagens que percorrem o mundo causarão inexoravelmente na política externa americana. “Os líderes internacionais, amigos ou não, estão a rever as suas estratégias para lidar com uma Administração não convencional mergulhada em profunda turbulência”, escreve Walter Russel Mead. “Moscovo e Pequim tentarão tirar a máxima vantagem. Berlim tentará ignorá-lo.” “Se a China resolver enviar tanques para Hong-Kong, o mundo dará alguma atenção ao que disser o Senado americano?”. Os danos são, portanto, incalculáveis.
Antes de 25 de Maio, as imagens que chegavam da América pareciam vindas de um país atrasado e incapaz de fazer frente à pandemia, mesmo que a realidade dos números comprove que os seus efeitos foram idênticos aos das democracias europeias. O desemprego disparou de um dos seus níveis mais baixos de sempre para 15% – mais de 40 milhões de empregos foram perdidos em dois meses. Trump perdia o seu grande trunfo eleitoral.
O rastilho provocado pelo homicídio de George Floyd em pano de fundo de pandemia e de desemprego trouxe ao de cima uma América que parecia estar definitivamente adormecida. O debate é hoje sobre a gravidade da “doença” da maior democracia do mundo. Ou melhor, sobre a dimensão dos danos provocados por um Presidente impreparado, ignorante da Constituição, intrinsecamente autoritário. A cinco meses das eleições presidenciais, o cenário em que vão ser disputadas mudou radicalmente. O mundo assiste de respiração suspensa. Como se chegou aqui?
5. Quando Donald Trump chegou à Casa Branca, depois da sua inesperada eleição em Novembro de 2016, o pensamento dominante ditava ainda que as vestes fariam o monge. O que o candidato Trump dissera durante a campanha eleitoral era uma coisa, o que faria em Washington seria necessariamente outra. O staff de conselheiros e os altos cargos da Administração limariam as arestas mais autoritárias, xenófobas, isolacionistas do sucessor de Barack Obama. A América não poderia ter mudado assim tanto. A grande democracia americana, com os seus checks and balances resistiria a quaisquer percalços.
Durante os primeiros anos do mandato do actual Presidente, vigorou maioritariamente a tese segundo a qual os maiores danos seriam provocados na política internacional, acelerando a destruição a ordem liberal internacional construída pelos EUA e reconstruída com sucesso depois da implosão da União Soviética.
Hoje o debate mudou de tom. “Os episódios dos últimos dias levantam uma questão que tem perturbado os cientistas políticos desde que Trump chegou ao poder”, escreve Max Fischer no New York Times. “Se o seu comportamento, habitualmente presente em democracias frágeis com instituições fracas traria a Trump os mesmos ganhos políticos e se provocaria o mesmo desgaste às normas e às instituições que servem como fundamentos da democracia.”
A colunista Katleen Parker confessa no Washington Post: “Há quatro anos, escrevi que haveríamos de sobreviver independentemente de quem ganhasse [as presidenciais]. Estava totalmente enganada. O meu exercício de optimismo baseava-se na minha fé nas instituições.”
O Presidente aproximou-se nesta semana, mais do que em qualquer outro momento da sua presidência, de reproduzir, na aparência mesmo que não na forma, alguns dos traços dos ‘homens fortes’ pelos quais nunca escondeu a sua admiração”, escreve ainda Max Fischer. Já elogiou Putin pelo seu “controlo muito forte” sobre a Rússia e chegou a dizer que o massacre de Tiananmen mostrou “o poder da força” do regime chinês. Pode contar com um Senado cujos eleitos republicanos, maioritários (perderam a maioria na Câmara dos Representantes nas eleições intercalares de 2018), nunca deram qualquer sinal de pôr em causa as suas decisões ou o seu comportamento. “Porque são o produto de um partido que evoluiu politicamente nas últimas duas décadas no sentido do populismo, cada vez mais dependente dos votos de uma maioria branca conservadora desconfiada de Washington e da elite política e intelectual – que nunca aceitou a eleição de um Presidente negro – e que teme vir a ser suplantada pelo crescimento constante da imigração.”
“O Grand Old Party actual não tem nada a ver com o passado. Muitas das suas figuras mais proeminentes, como o senador Tom Cotton, são tão autoritárias e antidemocráticas como Trump. O resto, com algumas poucas excepções, são apparatchiks leais ou intimidados até à obediência por uma base furiosa, que obtém a sua informação através da Fox News e do Facebook e que basicamente vive uma realidade alternativa na qual os protestos e os manifestantes pacíficos contra a polícia são apresentados como uma horda que dará inicio a uma insurreição violenta a qualquer momento”, escreveu Paul Krugman.
O Prémio Nobel da economia e colunista do New York Times admite que haja na actual situação algumas semelhanças com a época que precedeu a primeira eleição de Richard Nixon, em 1968, mas também sublinha as diferenças. “Em muitos aspectos somos um país melhor, mas estamos mergulhados numa crise política mais grave, porque um dos nossos dois grandes partidos deixou de acreditar na própria ideia de América.” 
6. Até agora, os eleitos republicanos no Senado e na Câmara têm preferido o silêncio. O que farão se a situação se agravar? O seu silêncio quer dizer que ainda não perderam a esperança de Trump vir a ganhar com base na velha plataforma política da “lei e ordem” que Nixon utilizou com sucesso, tirando proveito da ansiedade dos subúrbios brancos das cidades.
Tudo depende da forma como cada eleitor americano olhar para as imagens que as televisões transmitem – protestos pacíficos que juntam americanos das mais variadas proveniências ou apenas ruas e casas a arder. Polícias armados até aos dentes que carregam sobre manifestantes ou policias que se ajoelham ao seu lado, recusando identificar-se com aquele que matou George Floyd ou os que mataram tantos outros antes dele.
No ano passado, a polícia abateu a tiro 1040 cidadãos americanos. A maioria pertencia a minorias. Nos anos de Obama, os números não foram muito diferentes. Há 350 milhões de armas legais distribuídas entre a população. O incêndio alastrou pelas mesmas razões que tantas vezes o atearam no passado. “A maioria dos afro-americanos continuam a viver em lugares com as piores escolas, os piores serviços de saúde e os piores empregos” escreve a Economist. “As leis aplicam-se aos negros de forma diferente; a pandemia pôs em relevo que, quando os americanos sofrem, os negros americanos sofrem mais.” A pandemia expôs de uma forma brutal a incapacidade de Trump para liderar e unir um país em crise e em sofrimento.
“A América enfrenta o espectro de um longo Verão de protestos com um Presidente apostado em alimentar a polarização”, escreve de novo Edward Luce. “As palavras de George Floyd a morrer servem de metáfora a uma sociedade asfixiada por políticas cada vez mais tóxicas. É difícil imaginar um cenário mais contraditório e mais infeliz para a mais poderosa democracia do mundo tentar decidir sobre o seu futuro”.
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COMENTÁRIOS
fatima INICIANTE Que mania de meter o nariz nos assuntos dos outros quem os elegeu democraticamente foram os americanos e os brasileiros o problema é deles. 07.06.2020
Lars Arens INICIANTE: Pois é. A imprensa portuguesa devia deixar de ter notícias do estrangeiro. Entretanto a Sra devia dedicar-se ao futebol, fado e Fátima, e limitar a sua leitura aos artigos locais. Porquê meter o nariz nos assunto dos outros? E o Hitler? Ah era assunto alemão só, não afectou mais nenhum outro país ... o Bolsonaro destrua a floresta tropical toda se achar bem, só vai afectar ao Brasil... a política do Trump só afecta aos cidadãos dos EUA...
joorge INICIANTE : Eles é que têm menos anos de esperança de vida, eles é que não têm serviço público de saúde, eles é que se houver desgraça ficam absolutamente indefesos. Abençoado Portugal e abençoada Europa.
Helder Antunes EXPERIENTE: A sério? Mais um, o enésimo, artigo de pesar e queixume sobre a qualidade da Democracia nos EUA, sempre em animado despique e competição com outros que tais mas que têm como cenário o Brasil? Não está grande coisa e o respectivo estado da nação ou nações, igual. Porque as forças políticas perdedoras das eleições mais recentes em articulação com os seus satélites e apêndices na sociedade civil, jornalistas à cabeça e em grande destaque, encetaram uma luta sem fim, sem ética, pudor, vergonha, dignidade e sobretudo e acima de tudo, em desrespeito total, espanto, pela Democracia. Melhor é impossível. É o chamado fazer a festa, atirar os foguetes, apanhar as canas. Dir-se-á que a qualidade da Democracia só será restaurada quando voltarem a ganhar. Visões da esquerda sobre Democracia.
Nuno Silva EXPERIENTE: O que importa de facto para Trump e apoiantes, é que os milionários paguem menos taxa de imposto do que a família média americana. E não é necessário vir a Ivanca dar entrevistas para lembrar o facto... Isto que se está a passar agora, incluindo a extrema violência, serve a propósito...
Roberto34 INFLUENTE: Excelente texto como sempre. Mas infelizmente Trump irá apostar na polarização e na sua base fiel de eleitores que muito provavelmente lhe irá dar novamente a vitória. Ainda a semana passada relatava o The Guardian no bairro branco de Detroit que essa base fiel está completamente a favor de tudo o que Trump tem feito e é contra estes protestos, desvalorizando a situação e a desigualdade da comunidade afro-americana. Portanto penso que nada mudará.


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