sexta-feira, 5 de junho de 2020

Uma leitura imprescindível



Que bem faz rever passados históricos de evocação tenebrosa, como lança para a ribalta uma figura que há muito tem ajudado a engrenagem europeia a prosseguir na senda do seu progresso e simultaneamente a amparar tantos desamparados deste mundo fugidos ao caos das suas existências de opressão, fome e guerrilha, em busca de elos dourados de maior sobrevivência. Angela Merkel há muito atrai as devoções de tantos, que para nós se tornou mais presente aquando dos encontros com ela de Passos Coelho, que alguns quiseram denegrir como sintoma de humilhante postura deste, na sua senda de bem cumprir as suas (/nossas) obrigações de pagadores, que os chefes do governo posterior tornaram de postura aparentemente mais ousada, talvez porque o seu descaramento fosse maior, em face de uma dívida que vai trepando e agora mais.
É realmente uma leitura valiosa, esta da crónica de Francisco Assis sobre a chanceler alemã que Deus preserve por longos anos ainda, no seu cargo, contrariamente às ameaças de o abandonar. É uma figura humana que se impõe e tem ajudado toda esta engrenagem de povos dependentes da sua política de amparo – talvez de reparação, também, como informa Francisco Assis no seu brilhante escrito de louvor. Mas, apesar da admiração que também sentimos pela figura humana e intelectual do escritor, fica-nos sempre um sabor um pouco ácido a elogio por conveniência, o seu, que se alia mais uma vez à necessidade de auxílio financeiro, em que tantos nos movemos, mas em cuja retribuição não correspondemos, nós particularmente, como o fazem outros povos mais lestos no seu desenvolvimento económico.
OPINIÃO
A resposta alemã
A proposta que a Comissão Europeia apresentou esta semana no Parlamento Europeu, como resposta à crise que nos atinge, tem uma inquestionável marca alemã.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 30 de Maio de 2020
No passado dia seis de Abril dois antigos ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, o verde Joschka Fischer e o social-democrata Sigmar Gabriel, publicaram conjuntamente um artigo alertando para a necessidade do Governo germânico dar inequívocos sinais de solidariedade para com os seus parceiros europeus mais vergastados pela crise pandémica. Referiram explicitamente a Espanha e a Itália. Fischer e Gabriel são duas figuras de primeiro plano no campo da esquerda pró-europeísta do seu país e compreenderam precocemente as consequências trágicas que poderiam advir da uma qualquer hesitação alemã, que seria inevitavelmente lida noutros países como uma arrogante manifestação de egoísmo nacional. Se tal ocorresse o projecto europeu sofreria um tremendo abalo. Eles intuíram que, uma vez mais, os olhares europeus se voltariam para a Alemanha. Já havia sido assim aquando das crises do euro e dos refugiados.
Na segunda metade do século dezanove a unificação dos Estados germânicos, sob a liderança da Prússia, constituiu um acontecimento de tal modo transcendente no contexto dos precários equilíbrios europeus de então que originou de imediato uma vasta inquietação geral. Surgia, assim, a célebre “questão alemã”, que no fundo correspondia à dificuldade de lidar com a existência de uma potência tão poderosa no centro da Europa. Como a Historia o demonstrou a questão era bem real e quando não foi adequadamente tratada teve manifestações funestas.
No rescaldo da época nazi a Alemanha viu-se confrontada com o drama da sua divisão. Uma parte dela ficou condenada à submissão ao jugo soviético numa das mais delirantes e criminosas experiências históricas por que a humanidade passou. Sob a liderança de Konrad Adenauer a República Federal da Alemanha encetou com sucesso um processo de inclusão no espaço ocidental euro-atlântico, ao mesmo tempo que, aplicando o receituário ordo-liberal, iniciava uma impressionante recuperação económica. Os governantes da RFA agiram animados por uma vontade de recuperação da sua soberania nacional e de plena reintegração na nova ordem internacional. Conseguiram claramente alcançar tais objectivos.
Com o fim da Guerra Fria a Europa mudou radicalmente e a Alemanha reunificada adquiriu tal preponderância que a velha “questão alemã” ressurgiu com toda a força. Nas últimas décadas essa questão tem-se colocado de forma intermitente. Sempre que há uma crise na Europa a grande interrogação que espontaneamente surge é a de saber qual vai ser o comportamento dos alemães. Assim sucedeu também na presente crise.
A esquerda alemã é hoje profundamente pró-europeia e muito influenciada pelo discurso filosófico daquele que é, provavelmente, o mais conhecido pensador germânico da actualidade. O conceito habermasiano de “patriotismo constitucional” foi, em grande parte, adoptado pela moderna social-democracia e pelos ecologistas e projectado no plano europeu. Corresponde a uma vontade de exorcizar os demónios etno-nacionalistas que adquiriram uma expressão absolutamente hedionda no período do Nazismo. Aliás, este conceito de patriotismo constitucional, que Jürgen Habermas difundiu amplamente, foi usado inicialmente pelo historiador Dolf Sternberger na década de 1970 no contexto da comemoração dos trinta anos da Constituição alemã de 1949. Trata-se de uma noção com uma enorme importância no debate jurídico-político germânico e facilmente transponível para a esfera da discussão política europeia. A adesão da actual esquerda alemã a esta linha de orientação permite-lhe estar na vanguarda do discurso europeísta contemporâneo.
Apesar deste importante contributo da social-democracia e dos verdes, a personalidade central da vida política alemã nos últimos quinze anos tem sido, sem sombra de dúvidas, Angela Merkel. Não sendo uma visionária no sentido profético, ela foi-se revelando uma personalidade política dotada de uma invulgar capacidade de compreensão dos acontecimentos e impregnada de convicções democráticas e pró-europeias de uma excepcional solidez. Por um lado, inscreve-se na continuidade da democracia cristã europeísta que tanta importância teve na criação das instituições europeias, por outro, vai mais longe do que isso ao afirmar categoricamente que a Alemanha tem especiais obrigações perante os demais povos europeus, dado o carácter moralmente imprescritível dos crimes nazis. A sua grande força radica na circunstância de ela ser hoje o símbolo e a voz de um vasto consenso existente na sociedade alemã. A democracia constitucional germânica tem uma vitalidade invejável e revela até que ponto um povo consegue aprender com os seus erros históricos. Este consenso alemão está momentaneamente materializado no próprio Governo de coligação entre a democracia cristã e a social-democracia. Numa hora de crise profunda como aquela que estamos a atravessar esse entendimento revelou-se de crucial importância.
A proposta que a Comissão Europeia apresentou esta semana no Parlamento Europeu, como resposta à crise que nos atinge, tem uma inquestionável marca alemã. Representa um extraordinário avanço no sentido da integração europeia, abre novas perspectivas que não deixarão de manifestar uma extrema fecundidade nos próximos anos. Talvez venha a constituir o grande legado daquela que a História poderá vir a consagrar como uma das maiores figuras políticas da Europa contemporânea Angela Merkel.
TÓPICOS
Daniel A. Seabra NICIANTE: Textos como este proporcionam, no âmbito da História e da Filosofia, uma boa oportunidade de aprendizagem a todos os leitores. 30.05.2020
cisteina EXPERIENTE: Exemplo de lucidez e conhecimento histórico e filosófico, este de uma dos melhores militantes socialistas de sempre (nem sei porque está afastado da governação). De facto, é o tempo de a Alemanha se afirmar, vigorosamente, como uma defensora de uma Europa unida e renovada. Não concordo com Jacob van der Sluis, na medida em que, ainda antes do conde von Bismark, sempre se meteu em aventuras guerreiras de conquista e perdeu fragorosa e estrondosamente, o que significa ser esta a hora de 'conquistar' a Europa, liderando-a, agora que o UK se foi, é uma oportunidade soberana que tem pela frente, os europeus agradecem e nem sequer é por causa do "saco cheio de dinheiro" que mudamos, o dinheiro faz falta mas não é tudo
Jacob van der Sluis INICIANTE: Até há pouco tempo, Alemanha foi sempre criticada na opinião pública em Portugal, muitas vezes com um saco cheio de preconceitos. Agora vem um saco cheio de dinheiro e as opiniões mudaram. 30.05.2020
Amigo da verdade INICIANTE: Infelizmente o Sr. tem alguma razão. Só alguma, porque nem toda a gente criticava a Alemanha. Os alemães podem ter defeitos, como todos os povos têm, mas também têm imensas qualidades. Os alemães de hoje são muito diferentes dos alemães de há 80 anos. Não devemos viver de estereótipos. Eu comecei a admirar os alemães depois de visitar a Alemanha várias vezes. 30.05.2020

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