Que bem faz rever passados históricos de
evocação tenebrosa, como lança para a ribalta uma figura que há muito tem
ajudado a engrenagem europeia a prosseguir na senda do seu progresso e
simultaneamente a amparar tantos desamparados deste mundo fugidos ao caos das
suas existências de opressão, fome e guerrilha, em busca de elos dourados de maior
sobrevivência. Angela Merkel há muito
atrai as devoções de tantos, que para nós se tornou mais presente aquando dos
encontros com ela de Passos Coelho, que alguns
quiseram denegrir como sintoma de humilhante postura deste, na sua senda de bem
cumprir as suas (/nossas) obrigações de pagadores, que os chefes do governo
posterior tornaram de postura aparentemente mais ousada, talvez porque o seu descaramento
fosse maior, em face de uma dívida que vai trepando e agora mais.
É realmente uma leitura valiosa, esta da
crónica de Francisco Assis sobre a
chanceler alemã que Deus preserve por longos anos ainda, no seu cargo,
contrariamente às ameaças de o abandonar. É uma figura humana que se impõe e
tem ajudado toda esta engrenagem de povos dependentes da sua política de amparo
– talvez de reparação, também, como informa Francisco Assis no seu brilhante escrito de louvor. Mas, apesar da
admiração que também sentimos pela figura humana e intelectual do escritor,
fica-nos sempre um sabor um pouco ácido a elogio por conveniência, o seu, que
se alia mais uma vez à necessidade de auxílio financeiro, em que tantos nos
movemos, mas em cuja retribuição não correspondemos, nós particularmente, como o fazem outros povos mais lestos no seu desenvolvimento económico.
OPINIÃO
A resposta alemã
A proposta que a Comissão Europeia
apresentou esta semana no Parlamento Europeu, como resposta à crise que nos
atinge, tem uma inquestionável marca alemã.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 30 de Maio de 2020
No
passado dia seis de Abril dois antigos ministros dos Negócios Estrangeiros da
Alemanha, o verde Joschka Fischer e
o social-democrata Sigmar Gabriel,
publicaram conjuntamente um artigo alertando para a necessidade do Governo
germânico dar inequívocos sinais de solidariedade para com os seus parceiros
europeus mais vergastados pela crise pandémica. Referiram
explicitamente a Espanha e a Itália. Fischer
e Gabriel são duas figuras de primeiro plano no campo da
esquerda pró-europeísta do seu país e compreenderam precocemente as
consequências trágicas que poderiam advir da uma qualquer hesitação alemã, que
seria inevitavelmente lida noutros países como uma arrogante manifestação de
egoísmo nacional. Se tal ocorresse o projecto europeu sofreria um tremendo abalo.
Eles intuíram que, uma vez mais, os olhares europeus se voltariam
para a Alemanha. Já havia sido assim aquando das crises do euro e dos
refugiados.
Na segunda metade do século dezanove a unificação dos Estados
germânicos, sob a liderança da Prússia, constituiu um acontecimento de tal
modo transcendente no contexto dos precários equilíbrios europeus de então que
originou de imediato uma vasta inquietação geral. Surgia, assim, a célebre
“questão alemã”, que no fundo correspondia à dificuldade de lidar com a
existência de uma potência tão poderosa no centro da Europa. Como a Historia o
demonstrou a questão era bem real e quando não foi adequadamente tratada teve
manifestações funestas.
No rescaldo da época nazi a
Alemanha viu-se confrontada com o drama da sua divisão. Uma parte dela ficou condenada à submissão ao jugo
soviético numa das mais delirantes e criminosas experiências históricas por que
a humanidade passou. Sob a liderança de Konrad Adenauer a República Federal da Alemanha encetou com sucesso
um processo de inclusão no espaço ocidental euro-atlântico, ao mesmo tempo que,
aplicando o receituário ordo-liberal, iniciava uma impressionante recuperação
económica. Os governantes da RFA agiram animados por uma vontade de recuperação
da sua soberania nacional e de plena reintegração na nova ordem internacional.
Conseguiram claramente alcançar tais objectivos.
Com o fim da Guerra Fria a Europa mudou radicalmente e a Alemanha reunificada
adquiriu tal preponderância que a velha “questão alemã” ressurgiu com toda a
força. Nas últimas décadas essa questão tem-se colocado de forma intermitente.
Sempre que há uma crise na Europa a grande interrogação que espontaneamente
surge é a de saber qual vai ser o comportamento dos alemães. Assim sucedeu
também na presente crise.
A
esquerda alemã é hoje profundamente pró-europeia e muito influenciada pelo
discurso filosófico daquele que é, provavelmente, o mais
conhecido pensador germânico da actualidade.
O conceito habermasiano
de “patriotismo constitucional” foi, em
grande parte, adoptado pela moderna social-democracia e pelos ecologistas e
projectado no plano europeu. Corresponde a uma vontade de exorcizar os demónios
etno-nacionalistas que adquiriram uma expressão absolutamente hedionda no
período do Nazismo. Aliás,
este conceito de patriotismo constitucional, que Jürgen
Habermas difundiu
amplamente, foi usado inicialmente pelo historiador Dolf
Sternberger na década de 1970 no contexto da
comemoração dos trinta anos da Constituição alemã de 1949. Trata-se de uma noção com uma enorme importância no
debate jurídico-político germânico e facilmente transponível para a esfera da
discussão política europeia. A adesão da actual esquerda alemã a esta linha de
orientação permite-lhe estar na vanguarda do discurso europeísta contemporâneo.
Apesar
deste importante contributo da social-democracia e dos verdes, a personalidade
central da vida política alemã nos últimos quinze anos tem sido, sem sombra de
dúvidas, Angela Merkel. Não
sendo uma visionária no sentido profético, ela foi-se revelando uma
personalidade política dotada de uma invulgar capacidade de compreensão dos
acontecimentos e impregnada de convicções democráticas e pró-europeias de uma
excepcional solidez. Por um lado, inscreve-se na continuidade da democracia
cristã europeísta que tanta importância teve na criação das instituições
europeias, por outro, vai mais longe do que isso ao afirmar categoricamente que
a Alemanha tem especiais obrigações perante os demais povos europeus, dado o
carácter moralmente imprescritível dos crimes nazis. A sua grande força radica na circunstância de ela ser
hoje o símbolo e a voz de um vasto consenso existente na sociedade alemã. A
democracia constitucional germânica tem uma vitalidade invejável e revela até
que ponto um povo consegue aprender com os seus erros históricos. Este consenso
alemão está momentaneamente materializado no próprio Governo de coligação entre
a democracia cristã e a social-democracia. Numa hora de crise profunda como aquela
que estamos a atravessar esse entendimento revelou-se de crucial importância.
A proposta que a Comissão
Europeia apresentou esta semana
no Parlamento Europeu, como
resposta à crise que nos atinge, tem uma inquestionável marca
alemã. Representa um extraordinário avanço
no sentido da integração europeia, abre novas perspectivas que não deixarão de
manifestar uma extrema fecundidade nos próximos anos. Talvez venha a constituir
o grande legado daquela que a História poderá vir a consagrar como uma das
maiores figuras políticas da Europa contemporânea – Angela Merkel.
TÓPICOS
Daniel A.
Seabra NICIANTE: Textos como este proporcionam, no âmbito da História e
da Filosofia, uma boa oportunidade de aprendizagem a todos os leitores.
30.05.2020
cisteina EXPERIENTE: Exemplo de lucidez e conhecimento histórico e
filosófico, este de uma dos melhores militantes socialistas de sempre (nem sei
porque está afastado da governação). De facto, é o tempo de a Alemanha se
afirmar, vigorosamente, como uma defensora de uma Europa unida e renovada. Não
concordo com Jacob van der Sluis, na medida em que, ainda antes do conde von
Bismark, sempre se meteu em aventuras guerreiras de conquista e perdeu
fragorosa e estrondosamente, o que significa ser esta a hora de 'conquistar' a
Europa, liderando-a, agora que o UK se foi, é uma oportunidade soberana que tem
pela frente, os europeus agradecem e nem sequer é por causa do "saco cheio
de dinheiro" que mudamos, o dinheiro faz falta mas não é tudo
Jacob van
der Sluis INICIANTE: Até há pouco
tempo, Alemanha foi sempre criticada na opinião pública em Portugal, muitas
vezes com um saco cheio de preconceitos. Agora vem um saco cheio de dinheiro e
as opiniões mudaram. 30.05.2020
Amigo da
verdade INICIANTE: Infelizmente o Sr. tem alguma razão. Só alguma, porque
nem toda a gente criticava a Alemanha. Os alemães podem ter defeitos, como
todos os povos têm, mas também têm imensas qualidades. Os alemães de hoje são
muito diferentes dos alemães de há 80 anos. Não devemos viver de estereótipos.
Eu comecei a admirar os alemães depois de visitar a Alemanha várias vezes. 30.05.2020
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