quinta-feira, 18 de junho de 2020

Não, não há ambiguidade



No discurso de Francisco Assis, que, conquanto de uma elegância literária impoluta, não deixa de revelar as contradições de um pensamento unilateral de esquerda, ao concluir sobre o pensamento castrador do antigamente antidemocrático, quando, inicialmente, parecia empenhado na revelação do autêntico psitacismo “democrático” em que se tornou a sociedade actual, desmantelada de valores e apenas arruaceira, de descontrolo ingenuamente activista, fomentado, entre vários outros factores de perversão, pelos sindicatos extremistas da marginalização “à direita”, definitivamente retrógrada no seu racismo a merecer os uivos dos apedrejadores assim manipulados. Tenho pena pelo desacerto final do texto que ia lendo com verdadeiro prazer, pois que aliava a elegância cultural aos valores humanistas clássicos, fundamentados na lógica do pensamento, necessários a uma sociedade mais espiritualmente alimentada. Mas falou mais alto o rancor antigo, de ideologias fundadas em leituras intelectuais da pujança estudantil, e tornou-se desconcertante o conto, apenas linguarudo e provocador também, provavelmente movido por interesses que custam a engolir, vindos de um espírito que se julgava superior. Não é, pois, um discurso ambíguo, porque bem claro na intenção, como reconhece Mário Areias no seu comentário: ”Excelente artigo. Só não concordo no final porque, aliás como diz no seu texto, importa investigar e discutir a História como um todo e não só o colonialismo ou o racismo” ou Raquel Azulay no seu comentário interrogativo: um final areoso?”

OPINIÃO
Anti-racismo e democracia
Quando grupos de fanáticos precariamente alfabetizados invadem e confiscam o campo do debate público, passa a haver sérios motivos de preocupação.
PÚBLICO, 3 DE JUNHO DE 2020
Uma sensação estranha e algo sinistra percorre o mundo ocidental. Uma desmesurada violência inunda as ágoras reais e virtuais comprometendo, assim, a primazia da razão dialógica e crítica que constitui o elemento mais brilhante da civilização em que nos integramos. Assistimos à transformação do espaço público democrático numa arena ocupada por gladiadores dogmáticos e embrutecidos. Não parece haver já lugar para o questionamento inteligente ou para o reconhecimento da ambiguidade que envolve todos os acontecimentos históricos. De todos os lados surgem novos inquisidores do pensamento e das opiniões individuais apetrechados com as suas intolerantes cartilhas. Convencidos do carácter redentor das missões que se auto-atribuíram empenham-se nas discussões com o ardor obsessivo dos fanáticos. Usam a linguagem pestífera que antecedeu e que acompanhou no passado os maiores desastres humanos.
É inquestionável que os EUA, mau grado a solidez teórica das suas fundações institucionais demo-liberais, continuam confrontados com o problema racista que tem acompanhado a sua história. Essa é mesmo a grande tragédia americana. O assassinato bárbaro de um homem negro por um celerado agente policial suscitou uma reacção de indignação pública legítima e indispensável. Gerou-se um ambiente de verdadeira comoção nacional. As manifestações e os actos de repúdio que se sucederam só são possíveis num Estado democrático onde as liberdades fundamentais estão garantidas. O insuportável discurso de Trump, que uma vez mais revelou a sua imensa mediocridade intelectual e pequenez moral e política, foi veementemente contraditado, quer no mundo político, quer numa imprensa que não abdica da sua independência, quer por grande parte da opinião pública. A nação vive um tempo de sobressalto cívico de enorme importância. Como é natural, foram devidamente repudiados os actos de vandalismo praticados por grupos extremistas que aproveitam todas as ocasiões para atacar as instituições democráticas. A invocação do anti-fascismo não pode constituir um factor atenuante para comportamentos que colidem grosseiramente com os princípios e as regras do Estado de Direito. No plano estritamente moral isso representa até um elemento agravante.
A contestação ao crime cometido em Minneapolis extravasou a sociedade americana e exprimiu-se em múltiplos países, com compreensível preponderância na Europa. No nosso continente a condenação do racismo rapidamente conduziu a uma contestação retrospectiva do fenómeno colonial. Em inúmeras cidades ocorreram manifestações e, nalguns casos, foram vandalizadas e derrubadas estátuas de personagens históricas, supostamente identificadas com o processo da colonização europeia. Daí resultou uma tal polarização do confronto político que impossibilita a discussão séria de um tema que merece e deve ser debatido.
A Historia assenta num permanente diálogo entre as várias temporalidades e no reconhecimento de que o presente e o passado se iluminam reciprocamente. Não há, por isso, uma representação histórica perene e indiscutível. Mudando diacronicamente os imaginários prevalecentes numa sociedade é inevitável que daí decorra uma alteração da interpretação e da valoração dos acontecimentos passados. Admitida esta tese há duas atitudes que ficam automaticamente desqualificadas: a absolutização de uma narrativa histórica pretensamente oficial e a tentativa de projecção anacrónica de valores do presente noutros contextos epocais.
Quando grupos de fanáticos precariamente alfabetizados invadem e confiscam o campo do debate público passa a haver sérios motivos de preocupação. É o que começa a suceder. Não desvalorizemos alguns sinais alarmantes. Os extremistas de direita e de esquerda abominam igualmente o modelo demo-liberal e não perdem uma ocasião para o pôr em causa. Por isso mesmo não devemos ignorar alguns sinais inquietantes que insidiosamente se vão desvelando, pois a partir deles é possível detectar orientações doutrinárias e políticas muito perigosas.
Na manifestação anti-racista realizada aqui há dias em Lisboa ouviram-se a dado passo, de acordo com o noticiado na imprensa, as seguintes palavras de ordem: “Racista, fascista, o teu nome está na lista”. Tal parece, à primeira vista, apenas uma puerilidade juvenil relativamente inócua. Ocorre, porém, que a História nos alerta para a nocividade do mecanismo mental que lhe está subjacente. Quem tem o poder de nomear, isto é, de elaborar “a lista”, adquire a faculdade demiúrgica de formular contra quem quer que seja uma acusação infamante. Tudo assenta num raciocínio circular - tu és fascista porque estás na lista e se estás na lista não podes deixar de ser fascista. Foi assim que milhares de cidadãos soviéticos entraram na lista que os levou directamente ao Gulag. O camarada Estaline nunca se enganava. Porquê? Porque era o camarada Estaline!
A extrema-direita, na senda do que sempre fez, procura impedir qualquer debate útil e rigoroso sobre o racismo e o colonialismo imputando aos seus promotores um crime de lesa-pátria. Como anti-democratas que são, reclamam-se plenamente identificados com a essência de uma portugalidade mítica, o que lhes conferiria o direito de exclusividade no domínio da interpretação histórica. Definem-se a si próprios como “os portugueses de bem” lançando sobre todos os demais o anátema do anti-patriotismo. Foi assim que durante quarenta e oito anos silenciaram o país e perseguiram, torturaram e prenderam quem deles discordava. Tudo em nome do respeito por uma sacrossanta versão da História nacional - a deles.
A cultura ocidental desenvolveu como nenhuma outra a capacidade de se auto-questionar, pelo que está em boas condições para prosseguir e desenvolver um amplo debate sobre o racismo e o colonialismo. O que não pode é fazê-lo nos termos e nas condições determinados por grupos que notoriamente não estão comprometidos com a afirmação dos valores e dos princípios democráticos.
Militante do PS
TÓPICOS
Joaquim Rodrigues.915290 INICIANTE: Francisco Assis é o único ser "pensante" dentro do PS. 13.06.2020
Raquel Azulay: EXPERIENTE: sim, concordo, os dois neurónios do sr Assis, quando se encontram, fazem uma festa. 13.06.2020
Mário Areias INICIANTE: Excelente artigo. Só não concordo no final porque, aliás como diz no seu texto, importa investigar e discutir a História como um todo e não só o colonialismo ou o racismo. 13.06.2020
Raquel Azulay EXPERIENTE: um final areoso? 13.06.2020
Virgínia Crato EXPERIENTE: Bom artigo. Uma curiosidade: foi ontem preso em Espanha um traficante de carne humana. Era negro, da Costa do Marfim, praticava esse crime há vinte anos e vivia em Portugal. Abandonou crianças no meio da estrada por não terem como lhe pagar. Traficou mais de mil homens. Onde estão as manifestações e a repulsa nas ruas?


Nenhum comentário: