domingo, 21 de junho de 2020

Malícias de gosto duvidoso



Uma croniqueta de Miguel Esteves Cardoso sobre as piadas mais ou menos toscas, mas que não deixam de acentuar a vivacidade de uma grosseria folgazã e repentista do povo português. MEC assim se diverte e nós com ele para disfarçar a repugnância que nos fez sentir Rui Tavares, no mesmo Público de 17 de Junho, sobre as manigâncias cometidas pelo governo português na distribuição dos dinheiros emprestados por conta de uma covid-19 mortífera, e que segue os destinos dos anteriores empréstimos, para paraísos fiscais arruinadores do país. Sim, sorriamos com MEC, ainda que num esgar de cansaço.
I - OPINIÃO - Pagar para ser roubados
Se o governo não deseja criar “constrangimentos” às empresas sediadas em offshores, isso significa que a existência deste tipo de companhias é tão frequente no nosso país que excluí-las das medidas do orçamento suplementar afectaria uma parte considerável do nosso tecido económico.
RUI TAVARES   PÚBLICO, 17 de Junho de 2020
Segundo uma piada sem graça nenhuma, um ladrão amador é aquele que nos diz “dê-me o seu dinheiro” e um ladrão profissional aquele que acrescenta “assine aqui em baixo”.
Assinar em baixo é aquilo que o nosso governo propõe, e o nosso Parlamento vai aprovar, que façamos em relação às companhias sediadas em paraísos fiscais, através do próximo orçamento suplementar. Ao passo que meia-dúzia de países da União EuropeiaÁustria, Bélgica, Dinamarca, França, Itália e Polónia —, com governos que vão da esquerda à direita, decidiram que não haveria para as empresas sediadas em paraísos fiscais subsídios nem benefícios no quadro das medidas de recuperação económica pós-pandemia, o governo português anunciou não seguir essa disposição para não criar “constrangimentos” a empresas que têm “actividade económica em Portugal e empregam trabalhadores no território nacional”.
Como é bom ser delicado! As empresas sediadas em  drenam, através de evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo, milhares de milhões de euros aos cofres do estado português, aquele dinheiro que faz falta aos nossos hospitais ou às nossas escolas? Pois bem, nós não queremos que eles se sintam “constrangidos” de forma alguma a ter de pagar impostos para nós lhe darmos agora subsídios extra, benefícios fiscais para alguma coisa que reste de imposto a pagar, garantias de estado para novos empréstimos, e o que mais se houver de inventar. Se o ladrão profissional é aquele que diz “assine aqui em baixo”, Portugal é a vítima-modelo que responde “com todo o prazer! — e se não for muito incómodo para si passe no próximo ano a buscar uma condecoração”.
Pela natureza das coisas, é evidentemente difícil saber ao certo quanto perdemos cada ano com evasão fiscal e planeamento fiscal agressivo. Mas em 2013, quando fui vice-presidente de uma comissão euro-parlamentar contra a criminalidade organizada, corrupção e branqueamento de capitais, e relator de um documento de trabalho sobre as relações entre branqueamento de capitais, evasão fiscal e paraísos fiscais, os dados a que tivemos acesso — alguns dos quais baseados em estudos encomendados pela Comissão Europeia — davam-nos um retrato enfurecedor. Naquele início de década, Portugal perderia cerca de doze mil milhões de euros por ano. É mais do que consignamos todos os anos à saúde no Orçamento do Estado. As perdas em evasão fiscal representariam o equivalente a três quartos dos nossos altos défices orçamentais de então — o que sugeria que, se tivéssemos recolhido o dinheiro que nos era devido, não teríamos precisado de resgate da troika, ou que pelos menos as condições deste seriam muito menos severas. E para cereja em cima do bolo, o dinheiro perdido todos os anos em impostos sonegados ao Estado português permitiria amortizar cerca de dez anos da nossa dívida pública.
Mas aquilo de que estamos a falar agora é ainda mais diabólico. Não se pede que Portugal acabe, por si só, com a roubalheira dos nossos recursos através dos paraísos fiscais. Pede-se apenas que, como outros países da UE já vão fazendo, que Portugal não responda à roubalheira oferecendo mais dinheiro, de graça ou em condições muito vantajosas, a quem nos anda a roubar. Será pedir muito? Ou seja, não só o dinheiro de que precisamos para os nossos hospitais e escolas existe e anda escondido, como o dinheiro extra que mesmo agora em situação de crise nos dizem que não há para a saúde — com um aumento de meros 500 milhões de euros, em época de pandemia —, ou para um rendimento básico de emergência, será agora disponibilizado àqueles por causa dos quais não há dinheiro em primeiro lugar.
Esta decisão — ou falta dela — do governo português só pode aliás querer dizer que o problema é mais grave ainda do que os cálculos que citei atrás, assumidamente conservadores, nos poderiam fazer crer. Se o governo não deseja criar “constrangimentos” às empresas sediadas em offshores, mesmo na actual definição restrita em que apenas doze países e territórios estão na lista negra dos offshores e jurisdições como os Países Baixos não fazem parte dela, isso significa que a existência deste tipo de companhias é tão frequente no nosso país que excluí-las das medidas do orçamento suplementar afectaria uma parte considerável do nosso tecido económico. Aquilo que nos faria pensar que é urgente passar à acção parece ser interpretado pelo governo — e, em breve, validado pelo Parlamento — como uma razão suplementar para se ficar quieto.
Ainda assim, a falta de vontade política é chocante. Seria assim tão difícil condicionar estas medidas do orçamento suplementar à repatriação, num prazo razoável, das companhias para um território que não seja um paraíso fiscal? É extraordinário que ninguém no governo ou no Parlamento se tenha lembrado de uma ideia tão básica. É, talvez, demasiado “constrangedora”.
Historiador; fundador do Livre
COMENTÁRIOS
nelsonfari EXPERIENTE: Continuação: Por cá, em Portugal, estamos em periferia. E estamos dominados por uma casta de políticos que, indiferentemente, desprezam a realidade. Há dias a Jornalista São José Almeida perguntava a Marcelo: Snr. Presidente, para quando a substituição deste modelo de distribuição da riqueza, ou seja, para quando a minoração das gritantes desigualdades? Marcelo, uma vez mais, não ouviu. Está radiante porque Portugal foi escolhido para ser palco da fase final de uma competição europeia de futebol, o que diz bem, diz Marcelo, do reconhecimento de como Portugal se tem comportado, nomeadamente no combate à pandemia, rodeado em Belém pelas figuras maiores do Governo. Esconder a realidade, não ser coerente, desprezar o trabalho científico de geógrafos e cientistas eis o obscurantismo de Belém.  O que o cronista escreve, define o que é a UE. Só alguns dos 27 países tentam, pelo menos, salvar a face. A questão é, por outro lado, simples: como sobreviver num mundo pouco exemplar? Logo, a resultante é que os estudos de Piketty et al sobre a desigualdade concluem que a Europa, ainda assim, é o bloco económico menos atingido pela desigualdade e pobreza relativa. O chamado modelo social europeu ainda é líder positivo num mundo dominado pela exacerbação das consequências do modo de produção capitalista. A guerra travada nos EUA é, à luz disto, muito fácil de analisar: Biden. tantas vezes apontado por Warren como defensor dos grandes interesses(e suspeito de ter recebido luvas das farmacêuticas) é somente o menor dos males. Repensar o sistema implica a sua destruição.  Conhecer como vai o mundo: "Rapport sur les inégalités mondiales", de Thomas Piketty et al, Éditons du Seuil, 2018 (elaborado por um grupo de economistas, em número de treze, conforme wir2018.wid.world). Lendo, aqui na periferia, sempre vamos aprendendo qualquer coisa. E podemos desprezar as sessões de propaganda do poder, encenadas pelo Presidente dos afectos, como foi o caso de ontem, dia 17, em Belém. Costa, Temido, Siza Vieira - o poder em Belém...a celebrar o futebol, mas esquecendo as verdadeiras causas da pandemia na região de Lisboa: a falta de transportes nas zonas de Sintra e Loures, a desigualdade de quem tem mesmo de apanhar o Metro ou a camioneta da Rodoviária. E, depois, eles, os trabalhadores pobres, têm pouco pão mas muito circo... 18.06.2020
Mário Areias INICIANTE: Obviamente que você vê o problema do seu ponto de vista de esquerda. Esqueceu-se de perguntar porque é que as empresas rumam a esses paraísos fiscais como a Holanda. Quando um português qualquer, você incluído, vai comprar um carro e vê o mesmo modelo em dois stands diferentes com uma diferença de 2000€ no preço, de certeza que vai comprar o mais barato. Se esse mesmo português tiver uma empresa onde paga em Portugal 30% de imposto e na Holanda 13% onde acha que ele vai sediar a empresa. Se optar por Portugal eu chamo-lhe burro e mau gestor. Caro Rui a isto chama-se concorrência. Neste caso entre países. Mas eu sei, a palavra concorrência não existe no seu léxico. Baixem os impostos significativamente em Portugal e o problema desaparece. 17.06.2020
Manuel Brito.205795 MODERADOR: Aquilo a que você chama concorrência chamo eu dumping fiscal, o que é uma forma de concorrência desleal que algum dia a União Europeia terá de proibir, se quiser sobreviver.
Colete Amarelo EXPERIENTE: No fundo, Portugal é o país onde se trabalha. Não passando disto. O dinheiro que o trabalho, e o negócio a ele associado, cria é privilégio de países de outro nível.
rafael.guerra EXPERIENTE: Se fossem só as empresas portuguesas a gozar com a nossa cara... A fiscalidade na UE é uma anedota sem graça. As americanas GAFA, entre as mais ricas do mundo, usam e abusam das brechas. Por ex., a Google atribui os rendimentos à sua subsidiária irlandesa, donde os lucros seguem como dividendos para a Google na Holanda e daí o dinheiro segue para as Bermudas, onde não são só navios e aviões que desaparecem misteriosamente... Os holandeses têm a mesma cultura das golpadas que os irlandeses ou ingleses, excepto para a música que é uma droga...
ricardo111 EXPERIENTE: Se não me engano o modelo que eles usam é o que em Finança e Contabilidade Internacional se chama a Sandwish Holandesa.   Caetano Brandão EXPERIENTE: Pergunto também: o BE em que votei varias vezes não levanta a sua voz em relação a mais uma roubalheira, aqui denunciada pelo RT?
Repórter Estrábico INICIANTE: O BE e o CDU só lá andam para fazer de muleta ao PS. Estão contra as offshores e corrupção descarada que se passa nos negócios entre estado e empresas privadas, mas quando chega a altura de votar na AR são submissos. Metade dos portugueses já abriu a pestana e nem sequer votam porque conhecem bem a máfia que se instalou na AR, eu sou um deles, ou abstenção ou nulo. Nas próximas eleições ou voto no Ricardo Salgado ou no Paulo Futre, ainda estou indeciso.
Colete Amarelo EXPERIENTE: Oportunidade para experimentar o Partido Livre...
Zut Mut MODERADOR: Concordo mais uma vez com a com a crónica do Rui Tavares, mas não com a falta de concordância no título da mesma: em vez de "Pagar para ser roubados" não ficava melhor "Pagar para ser roubado" ou "Pagar para sermos roubados"?   ana cristina MODERADOR: o problema é tomar uma má decisão, que não é assumida como opção por toda a coligação parlamentar. o problema é uma coligação de governação que não funciona como tal. se a extrema esquerda está contra as off-shore por que razão contribui para a aprovação de apoios financeiros a empresas off-shore?
ricardo111 EXPERIENTE: Se calhar a "extrema" esquerda não é assim tão de estrema e sentem que não podem inviabilizar o orçamento suplementar por causa deste ponto, especialmente tendo em conta que o PS e o PSD são ambos grandes amantes das grandes empresas que dão bons tachões a políticos amigos e absolutamente se juntariam para viabilizar o orçamento se o Bloco e o PCP tentassem para-lo por esta razão. Não concordo com eles que esta é uma luta de que se deve desistir sem sequer tentar, mas compreendo o porquê.
Margarida Paredes, defensora do Serviço Nacional de Saúde MODERADOR:  Obrigada pelo alerta. Que pena o LIVRE não estar no Parlamento.
Manuel Figueira INICIANTE: Foi a nabice política do Livre, eivada de basismo tolo, que deitou tudo a perder. Talvez isto nos ajude a compreender que certas posições maximalistas são o reverso da medalha que tem as off-shores na outra face. O RT parece perceber isto, mas não impediu, ou não quis impedir, a tola eleição basista da tola Joacine. Uma coisa é os princípios, que devem ser firmes, outra coisa é a forma como os implementamos, que deve se inteligente.     José Teixeira, cidadão mais descansado por saber que o SNS está a ser defendido pela Margarida Paredes INICIANTE: Expulsaram a Joacine, segundo ela por racismo. E nunca mais voltarão a eleger ninguém.   TML INICIANTE Realmente foi um sapo que muitos dos eleitores do Livre engoliram, com os resultados à vista. Teria feito falta no Parlamento uma pessoa com o nível do Rui Tavares.
ricardo111 EXPERIENTE: Se calhar, imaginem lá, deviam-se escolher as pessoas para serem deputados com base no mérito pessoal em vez da maximização das, como a Joacine as chamava, "especificidades".

II – CRÓNICA:  É só mandar vir
Gostamos de ir a uma tasca, que é mais um teatro de rua onde também se come. Como em tantos casais, o marido é o palhaço e a mulher é a comediante.
 MIGEL ESTEVES CARDOSO       PÚBLICO, 17 de Junho de 2020
Ainda bem que ainda há tascas onde ninguém finge ser o que não é e onde cobrar uns patacos depois da refeição é o único profissionalismo – esse altar impoluto dos nossos tempos onde até eu sou culpado de rezar.
Um dia (será hoje? Terá sido ontem?) vamos ter saudades desses lugares incorrigíveis onde todas as coisas se fazem pela melhor das razões: porque foi sempre assim que se fizeram.
Gostamos de ir a uma tasca, que é mais um teatro de rua onde também se come. Como em tantos casais, o marido é o palhaço e a mulher é a comediante. Odeiam-se um ao outro. A única coisa que os mantém juntos, para além do dinheiro, é a paixão que partilham desde a mocidade: uma embirração profunda com os lisboetas.
Pede-se um prego no prato. E ele: “Quer que eu ponha o prego num prato? Eu ponho. É assim que servem em Lisboa? Ouvi dizer que agora, no Mercado da Ribeira, servem os pregos em chávena...ha... ha... ha.”
Os copos são “mal lavados, mas com amor”. As cervejas servem-se assim: “Três imperiais! Uma é em copo limpo, se fazes favor!”
Também faz cozinha de fusão, mas com ditados: “Quem sai aos seus a mais não é obrigado.”
Outras piadas são: “Conquilhas ou sem elas?”, “Olha, estes querem tremoços sem cuspo” (aqui, a higiene é uma fonte inesgotável de chalaças) e “estas azeitonas são mais caras? Pois são – ainda não foram a mesa nenhuma”.
Um cliente casado com uma francesa: “Olha o Costa mais a Lacoste.” Para mim, ao notar a subida no preço da açorda: “É do pão duro, amigo. Então? Tem que pagar o tempo em que esteve parado.”
É assim.

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