domingo, 28 de junho de 2020

“Je ne te hais point”


Também os ingleses falam de gatos e cães, depreende-se que enfurecidos, quando a chuva se faz sentir, para nós, “a potes”, expressão idiomática, coincidente com a nossa vocação para os inchaços e gorduras concretas - que as abstractas nos passam preferencialmente ao lado. Segue-se que também as expressões idiomáticas, característica de todas as línguas, disparate se traduzidas à letra, em todo o caso ajudam a definir idiossincrasias e atitudes delas provenientes. As expressões portuguesas que cita Miguel Esteves Cardoso, afirmativas como a do ”está bem, está!” pretendem exactamente significar o seu oposto, mostrando-se esta pessimista e até ameaçadora, dependendo do contexto; ou a do “olha, olha!” (// “olha-me esta!”), e as mais por ele citadas, de tipo interjectivo, muitas vezes exprimindo estados de alma, como raiva ou simples ironia, ao pretender significar exactamente o seu contrário, no espanto de repúdio, como coisa que não merece ser vista. Daí a surpresa dos ingleses relativamente ao “está bem, está!” de negação, ao contrário do que lhes parecia, que emparelha com o humor irónico contido na expressão “está bonito!” Trata-se de uma espécie de “litote”, cuja definição busco na Internet: “Uma litotes, também chamada litote, é uma figura de linguagem que combina, frequentemente num eufemismo, a ênfase retórica com a ironia, em geral sugerindo uma ideia pela negação do seu contrário.
Lembro-me de que tomei conhecimento dessa figura de retórica quando no meu 6º ano do liceu estudávamos “Le Cid“ de Corneille e lemos a declaração amorosa de Chimène a Don Rodrigo, como exemplo literário de litote: “Va, je ne te hais point”. No 7º ano, foi o início do belo poema de Victor Hugo, “Tristesse d’Olympio”, de reflexão sobre uma visita a lugares percorridos com uma sua amada morta, Juliette Drouet, que exemplificou o processo de litote:Les champs n'étaient point noirs, les cieux n'étaient pas mornes. Non, le jour rayonnait
Um delicioso texto, para todos os efeitos, este de MEC, sobre os idiotismos da nossa oralidade.

OPINIÃO
Está bem, está
É nestas expressões que melhor se estudam as atitudes que formam a nossa cultura – neste caso um cepticismo robusto e desconfiado, zombeteiro e aguerrido.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
PÚBLICO, 7 de Junho de 2020
Um casal de ingleses ouviu-nos a falar e, quando se levantaram da mesa, mascararam-se e vieram-nos perguntar qual era o significado daquela coisa que estávamos sempre a dizer um ao outro.
Qual coisa?
“Está bem, está”.
What does it mean?”
Lembrei-me da frase imortal com a qual a minha amiga Graça Ribeiro respondeu a um estrangeiro que procurava uma rua de que ela nunca tinha ouvido falar: “You ask well”.
Pergunta bem, indeed. É algum jeito que tem, sem dúvida. Ou aprendeu nalguma Alta Escola de Perguntar?
What do you mean, what does it mean?”, perguntámos.
Does it mean OK?” “No, no…” Tinham-lhes dito que “está bem, está” era OK mas não, não, olhem que não: “look that no”.
Bem que tentei explicar-lhes que “está bem, está” era mais “não está bem” do que outra coisa.
É como essoutro tesouro coloquial “olha, olha!” Também não quer dizer “look, look”. Mas é uma frase essencial, sobretudo para turistas que diariamente enfrentam os mais variados exemplos de bullshit ou BS como agora se diz.
Nem sequer tentei ensinar-lhes a versão full strength que é “Olha-me este...!”
É nestas expressões que melhor se estudam as atitudes que formam a nossa cultura – neste caso um cepticismo robusto e desconfiado, zombeteiro e aguerrido. Segue-se do “olha, olha!” para a universalidade abrangente do “Era o que faltava!”, com ou sem a inclusão de um enfático “só”.  A variante fenomenológica tem sempre “só” – e logo à cabeça: “Só me faltava mais esta!”
E não há razão nenhuma para não nos deliciarmos a alternar entre “Homessa!” e “Essa agora!”
Colunista


Nenhum comentário: