Novas perspectivas de abertura e interajuda,
bonitos sentimentos como nos convém que haja - e Teresa de Sousa simpaticamente vai explorando essas várias facetas
económicas por cá, na União Europeia, trazendo esperança, lembrando um recomeço
de industrialização mais saudável. Mas não sabemos o que está para além do covid-19
que, para já, tanta estranheza nos trouxe. E incómodo. E ruptura, afinal, nos
hábitos, na esperança. E o mundo para lá do nosso?
OPINIÃO: Não bastam biliões. É precisa uma visão do
mundo
A grande aposta europeia tem de
continuar a ser nos avanços científicos e tecnológicos, aproveitando a sua
dimensão e suas sinergias – coisa que, apesar da defesa constante do Mercado
Único, está ainda muito longe de acontecer.
TERESA DE SOUSA PÚBLICO, 7 de Junho de 2020
1. Na
quinta-feira passada, Christine Lagarde anunciou que o Banco Central Europeu
vai injectar mais 600 mil milhões de euros no seu programa de compra de dívida
dos países da zona euro, perfazendo um valor total de 1350 mil milhões desde o
início da pandemia. O mínimo
que se pode dizer é que Mario Draghi
tem uma herdeira à altura na francesa que já liderou o FMI e que foi escolhida
no final do ano passado para presidir ao BCE. No dia seguinte, a chanceler Angela
Merkel anunciou um pacote de estímulos à
recuperação da economia alemã da ordem dos 130 mil milhões de euros – 4% do PIB
alemão -, que se somam aos 353 mil milhões de ajuda de emergência de quando a
pandemia parou a economia, mais 820 mil milhões de empréstimos garantidos. Cerca de
10% da riqueza da maior economia da zona euro, que prevê para este ano uma
contracção de 6 a 7 por cento. Factor
curioso: o BCE recarregou a sua “bazuca” na
semana passada, como se o Tribunal Constitucional alemão não tivesse emitido um
parecer a pôr em causa a legitimidade da primeira carga, dando a Frankfurt três
meses para justificar a “proporcionalidade” do seu programa de compra de
activos.
2. Entretanto, como sabemos, a União Europeia
prepara-se para aprovar um plano de recuperação da economia da União da ordem
dos quase dois biliões de euros –
a soma do novo Quadro Financeiro Plurianual mais o
novo Fundo de Recuperação. Se
continuarmos a somar o pacote de ajudas de 540 mil milhões, sob a forma de
empréstimos, que o Eurogrupo adoptou há um mês, o
resultado é verdadeiramente impressionante.
A Alemanha foi o
primeiro país a anunciar o seu programa de estímulos para contrariar a quebra
abrupta e brutal da actividade económica, com todas as suas consequências
sociais. O programa, que o ministro da Economia classificou
como “o maior de sempre”, inclui a redução de impostos para estimular o
consumo, investimentos em infra-estruturas, ajuda directa às famílias, às
pequenas empresas e às comunidades. A
ordem é para gastar. E a
pergunta é o que pode explicar esta mudança de atitude, num país que passou a
última década a rejeitar todos os apelos europeus e internacionais a que
estimulasse o consumo e o investimento, de modo a funcionar como locomotiva da
saída da crise financeira, muito mais preocupado com as contas públicas
equilibradas, com a redução da dívida e com a obsessão pelos excedentes
comerciais.
A dimensão da crise? As suas
características absolutamente inéditas? Um outro olhar sobre a sua
responsabilidade europeia? As perguntas são tanto mais legítimas quanto a nova
“largueza” de Berlim não se ficou apenas pela Alemanha, mas foi decisiva para
que a Europa encontrasse uma resposta à crise de uma dimensão que excedeu as
melhores expectativas e com uma rapidez que se chegou a pensar impossível. As lições da resposta europeia à crise
financeira de 2008 e 2009 – que foi muito mais lenta, muito mais limitada e
muito mais penalizadora – terão servido de alguma coisa para aclarar o
pensamento das elites alemães e da sua chanceler e ajudar a esclarecer onde
está o seu interesse vital. Soma-se ainda o facto de a crise pandémica ter
atingido as economias europeias numa fase em que o equilíbrio das contas
públicas e a redução do endividamento estavam no bom caminho e a retoma do
crescimento económico permitia respirar mais à vontade.
3. A
crise também não foi culpa de ninguém, desta vez. Nem
de mercados totalmente desregulados que imperaram na era do neoliberalismo, nem
de decisões erradas dos governos nacionais, nem sequer de crises políticas bruscas,
de consequências incontroladas. Marine Le Pen não ganhou as eleições em França. Matteo
Salvini não lidera o Governo de Roma. Donald
Trump não chegou a desencadear uma “guerra
comercial” contra a Europa, apesar de ameaçar fazê-lo com relativa frequência.
Não houve em território chinês um novo Tiananmen, apesar de quase um ano de protestos democráticos em
Hong-Kong e apesar de Pequim exercer com cada vez maior despudor o seu
músculo económico um pouco por todo o mundo.
Em contrapartida, a pandemia trouxe
consigo uma mensagem fundamental, que as democracias ainda estão a digerir, mas
que já terá tido o seu efeito: ninguém
foi poupado, ricos e pobres, Ocidente e Oriente, Norte e Sul, privilegiados e
desfavorecidos, democracias e autocracias, mesmo que os seus efeitos não
ficassem imunes à desigualdade social, ao lugar onde se nasce, à natureza do
regime sob o qual se vive. O instinto de fechamento e do “cada um por si” foi
sendo lentamente substituído por um sentimento de
solidariedade e de partilha de um destino comum perante uma provação igual – a mesma fragilidade humana perante um “inimigo”
invisível, incontrolável e fatal.
4. Mas
há outro debate que se
instala definitivamente na Europa, embora não seja totalmente novo, e que
comporta riscos geopolíticos e geoeconómicos que não podem ser ignorados. A
palavra “reindustralização” que entrava
ainda a medo no léxico do debate europeu sobre o futuro da sua economia e do
seu papel no mundo, instalou-se de armas e bagagens. Estará no
centro de muitas das políticas que a Europa vai adoptar na fase de recuperação
da sua economia, que pretende que seja em moldes novos – mais amiga do
ambiente, mais favorável ao combate às alterações climáticas e mais capaz de
tirar partido das tecnologias digitais para ser mais inovadora.
Há
duas maneiras de o fazer: inverter a globalização dos mercados que dominou a economia global nos últimos 30 anos;
ou apenas reconsiderar e corrigir alguns dos seus efeitos mais perniciosos.
Fará toda a diferença. A lição da dependência excessiva em relação à China
tinha de ser tirada, até como argumento para levar as autoridades chinesas a
perceber que a abertura e a cooperação exigem, em primeiro lugar, reciprocidade
e, em segundo lugar, regras de conduta. Produzir
na Europa bens essenciais ou reduzir a dependência tecnológica europeia em
relação, quer aos Estados Unidos, quer e cada vez mais à própria China ou ao
Sudeste asiático, faz todo o sentido. Cair
no extremo oposto do proteccionismo ou da auto-suficiência teria um efeito
desastroso na economia global e nas economias em desenvolvimento, com o
inexorável efeito de bumerangue sobre a própria economia europeia. A
globalização foi boa para a China, mas foi boa também para muitas economias
atrasadas, que encontraram forma de entrar nas cadeias de valores e na divisão
de trabalho, melhorando as condições de vida de muitos milhões de pessoas. A
grande aposta europeia tem de continuar a ser nos avanços científicos e
tecnológicos, aproveitando a sua dimensão e suas sinergias – coisa que, apesar
da defesa constante do Mercado Único, está ainda muito longe de acontecer.
Há um bom sinal que emerge
desta crise: a Europa não soçobrou, não se partiu, vai encontrando
um propósito comum no meio do caos que a pandemia provoca. Tantos zeros à direita não fariam qualquer sentido sem
um destino comum. Desde que seja aberto ao mundo e assuma as suas
responsabilidades internacionais. Até porque, do outro lado do Atlântico, vai
ser preciso tempo até que a América volte a reerguer-se, não tanto dos efeitos
devastadores da pandemia, mas das consequências de quatro anos de um Presidente
que elegeu o populismo e o nacionalismo como as suas únicas políticas. Não
bastam os biliões. É preciso uma visão comum que seja ao mesmo tempo universal
e solidária. Até porque é imenso o que está em causa.
“A questão
é, portanto, como vai alterar-se a distribuição do poder global em resultado da
crise da covid-19”, escreve Joschka
Fischer. “Mesmo apesar de três anos de
Trump, a relação da Europa com os EUA mantém-se muito mais próxima do que a
relação que alguma vez possa vir a ter com a China.” Manter
esta distinção crucial, prossegue o
antigo chefe da diplomacia alemã, “exige à Europa que evite tornar-se
tecnológica e economicamente dependente do grande rival do Ocidente.” Matéria
para reflectir. tp.ocilbup@asuos.ed.aseret
COMENTÁRIOS:
Gnôthi SautoneINFLUENTE: Gostei do
conjunto do texto. Destacaria a frase: "Tantos zeros à direita não fariam
qualquer sentido sem um destino comum.". Um destino comum. E, concomitantemente, uma visão do
mundo. Obrigado. 08.06.2020 rafael.guerra EXPERIENTE: "A crise
também não foi culpa de ninguém, desta vez"? Durante anos pré-COVID,
assistimos alegremente à maior expansão da dívida corporativa da História, com
vários alertas do risco de crise económica tendo sido dados por economistas
consagrados, incluindo na BCE. A maior bolha de todos os tempos exigia a maior quantidade de dívida para
permitir que a festa continuasse. A festa continua para Wall Street, mas o
custo na economia real vamos tardar a conhecê-lo. 07.06.2020
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