segunda-feira, 22 de junho de 2020

Aprender até morrer



Helena Garrido está de pé atrás em relação às contas do Governo, com as manigâncias previsíveis resultantes de uma aliança deste à esquerda, que lhe dá a sustentabilidade do seu sustento. Ricardo Cabral, um dos sustentadores do sustento governativo, está mais optimista e receptivo à opacidade desse governo na tal questão económica. Nós por cá tentamos penetrar esses discursos da nossa sustentável leveza nessa mesma questão, garante da continuidade da nossa insustentável leveza nesse capítulo, de parceria com os mais que Helena Garrido tenta defender. E ensinar.
O défice democrático no Orçamento /premium
A regra cumpriu-se. Mais uma vez o Governo apresenta um Orçamento impossível de perceber. Uma opacidade ainda mais preocupante pela indiferença com que é aceite pela maioria dos partidos.
HELENA GARRIDO
OBSERVADOR, 22 jun 2020
Quanto custam as medidas adoptadas para mitigar os efeitos da pandemia? Não sabemos. O único partido que se preocupou em perguntar foi o Bloco de Esquerda pela voz da deputada Mariana Mortágua, no debate na generalidade do Orçamento suplementar. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) alerta no mesmo sentido. O novo ministro das Finanças João Leão respondeu genericamente que eram difíceis de calcular. À UTAO nem se deu ao trabalho de responder.
Podemos ter todas as instituições. Mas enquanto formos governados numa lógica de quem governa manda, como se o Estado Novo não tivesse saído de dentro de quem nos governa, nada nos valem as instituições. Como é que não é possível elaborar um quadro em que se apresentem os efeitos orçamentais das medidas discricionárias e o impacto na despesa e na receita da queda da actividade económica? Todos os países conseguem fazê-lo, o próprio Governo, quando quer promover as suas medidas, fá-lo – como acontece no Orçamento inicial de 2020 (ver página 61).
Temos o Conselho de Finanças Públicas, temos a UTAO e temos o gabinete de estudos do Banco de Portugal. Todos podiam contribuir para percebermos melhor o Orçamento do Estado e como é que o Governo está a gerir os recursos escassos para enfrentar, neste caso, a pandemia e apoiar a sobrevivência e recuperação da economia. Uns não conseguem avaliar devidamente as políticas por falta de informação, como a UTAO, outros não o podem fazer, como o Banco de Portugal. E assim se restringe o escrutínio do Governo, que até à Assembleia da República se dá ao luxo de não responder.
Já tínhamos um crescente problema de escrutínio, deste o do anterior governo, por causa da cumplicidade que a solução de apoio à esquerda gerou. Eram do BE e do PCP que vinham, regra geral, no passado, os principais alertas para os abusos dos governos e, no caso concreto dos orçamentos do Estado, os avisos para os truques ou para a falta de transparência. Com a entrada indirecta destes partidos na lógica do poder, perderam-se mecanismos de escrutínio dos governos, especialmente liderados pelo PS como agora acontece. Os partidos à direita do PS não têm revelado a mesma capacidade de escrutínio que tinham o PCP e o BE. O que deixa o regime especialmente frágil e exposto a abusos de poder.
O medo que se instalou na sociedade, com a pandemia, aliado à popularidade que o primeiro-ministro atingiu com a gestão eficaz que fez desta crise sanitária são factores adicionais de risco de abuso de poder. Não estão em causa, obviamente, os protagonistas do poder, já que ninguém duvida da sua cultura democrática. Mas a tentação do poder é enorme e é exactamente por isso que o sistema é construído numa lógica de pesos e contrapesos. Além disso, uma longa ditadura, como aquela que vivemos na nossa história recente, não pode deixar de deixar resíduos culturais no exercício do poder.
Aliás, a forma como o Governo reage às críticas é exemplificativa dessa tentação para o autoritarismo. A reacção às criticas segue frequentemente a lógica do “quem não é por mim é contra mim”. Evitam-se as perguntas difíceis e rapidamente se acusa quem questiona e tenta escrutinar de ter outros interesses ou de estar contra o interesse nacional.
É do interesse de todos perceber quanto se vai gastar afinal em medidas para garantir a sobrevivência da actividade económica até haver dinheiro europeu para se avançar com um plano de recuperação. Resta-nos a abordagem indirecta, agarrando em declarações e frases espalhadas pelos mais diversos documentos. E por via deles concluímos que a maioria do défice público é explicada pelo efeito de aumento da despesa e redução da receita provocada pela recessão. Na melhor das hipóteses, as medidas do Governo custarão 4 mil milhões de euros, ou 2% do PIB de 2019.
Se não, vejamos. O ex-ministro das Finanças Mário Centeno disse na Assembleia da República, durante a apresentação do Programa de Estabilidade que as “iniciativas de protecção dos trabalhadores e dos seus postos de trabalho, bem como de apoio às empresas” estão “orçamentadas em cerca de 2 mil milhões de euros por mês (1% do PIB de 2019), incluindo medidas com incidência única”. Os dados podem ser vistos no Programa de Estabilidade (página 55).
Se admitirmos que essas medidas vão durar dois meses – hipótese que pode pecar por excesso uma vez que os pouco mais de 500 milhões de euros para a saúde são anuais –, estamos perante medidas da ordem dos 4 mil milhões de euros, cerca de 2% do PIB de 2019, para usar a mesma referência de Mário Centeno. Ou seja, as medidas de apoio à sobrevivência da economia explicam menos de um terço (32%) do défice público de 12,6 mil milhões de euros projectado para 2020, de acordo com o Orçamento Suplementar.
Levemos agora em conta outras medidas de carácter temporário. O Orçamento inicial de 2020 (página 61) previa medidas temporárias — que incluem o Novo Banco – no montante líquido de 905 milhões de euros. Some-se agora o valor orçamentado para a capitalização da TAP (946 milhões de euros) e temos cerca de 1,8 mil milhões de euros, cerca de 0,9% do PIB de 2019.
Ou seja, com as medidas de apoio à economia e as que são temporárias, como o Novo Banco e a TAP, explicamos menos de metade do défice público (5,8 mil milhões em 12,6 mil milhões). Mais de metade do défice público parece assim ser explicado pelo efeito da recessão, o que facilitará a correcção do desequilíbrio orçamental, assim que a economia começar a recuperar.
Esta prudência na gestão das contas públicas é uma boa notícia para os credores do país e para as agências de avaliação do risco da República mas, em contrapartida, é uma péssima notícia para agradar aos partidos à esquerda do PS e aos cidadãos em geral, que esperam um Estado generoso. Talvez seja por isso que o Governo não quer que se saiba exactamente como estão feitas as contas do Orçamento do Estado suplementar, como gosta que se chame.
É pena. Porque o Governo podia contribuir ainda mais para que todos compreendessem que as contas públicas têm de ter uma perspectiva de longo prazo. É verdade que o tem feito, alertando que não se pode gastar demasiado, que ameaçar financeiramente o Estado em cima de uma recessão história seria uma tragédia. Mas podia contribuir mais, com um Orçamento transparente, para que todos compreendêssemos o que está a fazer e para que todos estivéssemos a construir instituições mais fortes. Esta opacidade é apenas utilitária, para garantir o apoio ao Orçamento dos partidos à esquerda do PS. Mas condena-nos a uma democracia com pouco escrutínio.
II - OPINIÃO:  As contas públicas mergulham de cabeça no abismo?
É já certo que a actividade económica no 2º trimestre de 2019 registará uma queda nunca antes vista
RICARDO CABRAL
PÚBLICO, 22 de Junho de 2020
O Orçamento do Estado “suplementar” (i.e., rectificativo) foi aprovado na generalidade a 17 de Junho. Prevê um défice de 6,9% do PIB, 13,7 mil milhões de euros em contabilidade nacional, fruto de uma queda da receita corrente de -3,1% (e da receita fiscal de -8,2%) e de um aumento da despesa total de +13,1%.
Em relação ao cenário macroeconómico, o Governo prevê no Orçamento do Estado suplementar uma queda do PIB real de 6,9%, em resultado da contracção do consumo privado (-4,3%) das exportações líquidas (-1,8%) e do investimento (-12,2%). Consumo público e investimento público evoluem favoravelmente contribuindo para amortecer a queda do PIB. As exportações caem a uma taxa muito superior (-15,4%) à taxa de contracção das importações (-11,4%), em resultado do choque esperado no sector do turismo. Contudo, em termos nominais, o PIB deverá cair (só) 6% em 2020 em relação a 2019.
É realista o quadro orçamental do Governo?
As contas públicas de 2020 beneficiam do bom andamento da economia no final de 2019 e nos primeiros dois meses de 2020. Como há um hiato no pagamento dos impostos, as contas públicas (em contabilidade pública) evoluem muito favoravelmente no início do ano. Entre Janeiro e Abril de 2020, a receita corrente aumenta 4,9%, i.e., praticamente o mesmo que a despesa corrente (+5,1%).
Em consequência dessa evolução das contas públicas no início do ano, o Orçamento do Estado suplementar tem subjacente que, entre Maio e Dezembro de 2020, a receita corrente irá cair a uma taxa nominal de 6,3% (i.e., uma queda de receitas correntes de 3,9 mil milhões de euros face ao período homólogo de 2019) e a despesa corrente irá crescer a uma taxa nominal de 14,0% (i.e., um aumento da despesa corrente de 8,2 mil milhões de euros face ao período homólogo de 2019).
Em relação ao cenário macroeconómico, de acordo com o INE, o PIB nominal no 1º Trimestre de 2020 caiu 0,7% face ao período homólogo de 2019. Essas estatísticas das Contas Nacionais do INE sugerem uma paragem brusca da actividade económica já no primeiro trimestre de 2020, facto tão mais surpreendente quanto se sabe que as medidas de confinamento social do Governo só se iniciaram a 16 de Março de 2020, i.e., na segunda metade do último mês do primeiro trimestre.
O PIB nominal estava a crescer a taxas elevadas até ao final de 2019. No último trimestre de 2019, em termos homólogos, cresceu +3,8% e o PIB nominal de 2019 foi 3,9% superior ao de 2018. Se se assumir que em Janeiro e Fevereiro o andamento da economia foi similar ao do final de 2019 (um crescimento nominal entre 2% e 3,8%), a queda do PIB nominal de -0,7% no 1ºT2020 sugere que em Março a taxa de contracção das exportações terá sido próxima de 20% e que o PIB nominal terá caído entre 6% e 10%.
É necessário aguardar mais um trimestre para ter a noção do impacto da covid-19, mas é já certo que a actividade económica no 2º trimestre de 2019 registará uma queda nunca antes vista.
Em suma, o quadro orçamental do Governo parece-me bem porque se me afigura optimista e no contexto actual é melhor que a política orçamental seja optimista do que pessimista ou prudente. A taxa de redução da receita corrente entre Maio e Dezembro (6,3%) parece subestimada. A taxa de aumento da despesa corrente no mesmo período (+14%) é generosa, mas ainda assim poderá subestimar a verdadeira taxa de aumento da despesa pública porque o Estado está injectar dinheiro ao sector privado numa forma em que não controla o aumento da despesa pública (nem a quebra de receita contributiva) e em que cria incentivos perversos, de que um bom exemplo é o regime de layoff. Afigura-se que o Governo está a procurar controlar o impacto nas contas públicas através da prorrogação limitada no tempo do programa de layoff e do seu âmbito (vide abaixo), mas dados os previsíveis atrasos nas transferências da Segurança Social, os impactos só se reflectirão nas contas públicas com um hiato de vários meses.
“Troika on steroids”
É mais uma ironia da História que a covid-19 tenha levado um governo minoritário PS – que beneficia do apoio tácito parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda – a implementar medidas económicas, temporárias, é certo, que a troika e o ministro das finanças Vítor Gaspar do Governo de Passos Coelho estiveram quase a implementar (em grau muito mais diminuto), mas foram forçados a recuar.
Quem se lembra das gigantescas manifestações públicas acerca da redução da taxa TSU para os empregadores? Bem, o regime de layoff faz isso e muito mais (cortes dos salários). Note-se que o Conselho de Ministros decidiu recentemente (Resolução n.º41/2020 de 6 de Junho) que as grandes empresas (com quebras de facturação) podem beneficiar durante mais dois meses (até Setembro) de uma redução da Taxa Social Única (TSU) em 50% e as restantes empresas da eliminação completa da TSU no quadro de novas medidas de “apoio à retoma” económica.
Como já defendi em artigo em co-autoria com Francisco Louçã de final de Março, o regime de layoff, ao reduzir o rendimento de um elevado número de trabalhadores, agrava o choque e a recessão económicas, propagando-as a milhões de famílias. A expectativa do Governo, supõe-se, seria que estas recorreriam às poupanças de que dispõem, não reduzindo o seu consumo. Mas, grande parte das famílias portuguesas não ganha o suficiente para poupar e quando perde rendimento, ou mesmo o emprego, necessariamente reduz o seu consumo, ou cai na pobreza.
Com a resolução do Conselho de Ministros n.º 41, de 6 de Junho, o Governo veio emendar parcialmente a mão, aumentando a remuneração dos trabalhadores em regime de layoff. E a referida resolução também reduz parcialmente os apoios às grandes empresas, ainda assim demasiado generosos.
No final de Abril, o número de trabalhadores em layoff era de 1,2 milhões e 372 mil portuguesesestavam registados como desempregados. No final de Maio, 800 mil trabalhadores ainda estavam em layoff.
Mas o Governo ainda corre atrás do prejuízo. O regime de layoff e e outras medidas adoptadas pelo Governo procuram complementar os estabilizadores orçamentais automáticos porque reconhece que, após anos de cortes, estes não eram suficientes para responder à situação actual.
O Primeiro-Ministro encarregou António Costa Silva de desenhar as medidas de política económica proactivas, i.e., o novo plano de desenvolvimento para o futuro do país.
As expectativas (e as necessidades) são muitas!
Economista

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