sexta-feira, 5 de junho de 2020

Sem ilusões



Maria João Avillez sabe ao que se arrisca quando mostra conhecimentos ou pergaminhos ironicamente refutáveis pelos dos piedosos afectos democráticos hodiernos. Mas vai em frente na revelação daqueles, e simultaneamente do seu amor real pelo país natal. Uma bonita história que lhe mereceu as tais chufas, mas também o apreço dos que realmente importam, numa construção nacional como deve ser, feita de esforço, inteligência e arte.
Notícias do outro mundo (ou antes deste)/premium
Terão percebido que falei de outro Portugal que não o circunstancial, o do momento, o das actuais “autoridades”, mas sim de outra gente. Amante do risco, praticante do progresso e militante do país.
MARIA JOÃO AVILLEZ  OBSERVADOR 03 jun 2020
1Há uns meses, no mundo onde vivíamos – do qual nos queixávamos porque não conhecíamos este – ia pela baixa do Porto quando avisto João Alvares Ribeiro subindo a mesma rua. Foi como se subitamente diante de mim se se tivesse personificado a Quinta do Vallado, da qual é o CEO, com as suas terras e pedras debruçadas sobre o espelho líquido do rio, os agrestes socalcos de onde sai a uva e o vinho, o silêncio quieto daquela saga de suor e exaustão. O Douro enfim, onde estou sempre a voltar como quem regressa a uma civilização. O João sabendo bem isso “ainda bem que me encontrava, tinha uma boa história do Douro para contar”. Chovia muito, entrámos logo ali num café e eu tive muita sorte: a história era melhor que boa.
2Um belo dia no final do verão do ano passado, a Quinta do Vallado toma conhecimento de um facto assaz inusitado que chega pelo correio: o INSEAD, prestigiada escola internacional manifestava o seu “interesse” em que a Quinta “fosse objecto de um case study” que constasse no MBA do ano lectivo de 2019/20. O porta-voz era o brasileiro Felipe Monteiro, Senior Affiliate Professor of Strategy e Academic Director, Global Talent Competitiveness Index.
O convite era sobretudo um forte desafio: a reputação do INSEAD não lhe costuma permitir erros nas escolhas que faz. E a história da Quinta do Vallado escrita pelos descendentes de Dona Antónia Ferreira, e que tem há dez gerações o mesmo sangue e o mesmo apelido e que há pouco celebrou três séculos de vida, também não. A resposta foi sim e como se poderia dizer não a tal oportunidade remetida por gente tão reputada? Havia ainda o prestígio que a “operação” implicava, o eco que teria, e a estrada da internacionalização que, embora já aberta, o convite agora ampliaria. Por outras palavras, mais visibilidade para o Vallado mas também para Douro, os vinhos, o turismo, o país .
3“Não hesitei, nem podia”, disse-me naquele dia baço de chuva João Alvares Ribeiro, detalhando alguns dos passos desta aventura, sim, era também uma aventura (ele concordou o substantivo). Do Porto e da Régua começaram por seguir para França documentos e dossiers, num amplo manancial de informação sobre a Quinta do Vallado, o vinho, a região. Uma história pela qual passavam obviamente uns celébres rapazes de oiro que um dia deram um valente safanão ao Douro: mais conhecidos por “Douro Boys”, estão hoje menos “boys” e mais grisalhos, mas o oiro consta manter-se o mesmo. Ainda em 2019, Álvares Ribeiro foi a Fontainebleau gravar uma entrevista para o “Insead Knowledge”, o próprio Insead também se deslocou ao Vallado (através do próprio Felipe Monteiro e da sua equipa). Aprazaram-se iniciativas – reuniões, provas de vinhos, aulas – mas o venenoso “corona” veio a anular umas e trasladar outras para o branco écran do “on line”, símbolo do novo mundo para onde o vírus nos enxotou. Não importa, há boas notícias: o “case study” será apresentado esta semana, dia 4 de Junho, aos 150 alunos do MBA do Insead após o que os professores responsáveis farão “teaching notes” exclusivas para mestres e professores, divulgando-lhes como o “Vallado” deve ser “ensinado” noutras universidades. Como a de Harvard, por exemplo (mas haverá que concluir que nem sempre há tão bons feitos e efeitos a rematar boas histórias).
4Foram séculos de resistência e persistência, mitos, paixões e filoxeras, boas colheitas, más colheitas, boa fortuna e má fortuna. O Douro é isto. Um património de mel e fel. Lágrimas e glória. E já o escrevi aqui um dia, é assim mesmo. A paisagem submerge-nos e a beleza estonteia-nos. Mas por detrás daquela água que por entre caminhos, veredas e montanhas, passa e corre cá em baixo, correndo ora amena e amável, ora intempestiva e traiçoeira, quanta vontade daquela de antes morrer que desistir! Gerações disto que a saga é antiga. Tanta história, tanta gente. Paisagem telúrica, ex-libris nosso e singularíssimo. Descobri-lo, percorrê-lo, senti-lo e depois voltar, voltar sempre, devia ser um exercício (nobre exercício) para qualquer português. Durante alguns anos aluguei lá uma casa que tinha extraordinárias palmeiras no jardim e socalcos que se desdobravam quase até caírem ao rio. E hoje – excelente palmarés – conheço já um bom lote de casas e quintas onde prometo regressar (e costumo cumprir).
5Muita coisa mudou e a Quinta do Vallado foi, obviamente com outras, um dos marcos da forte mudança que desde o final dos oitenta varreu de vento (quase) vertiginoso aquelas encostas íngremes. Houve a consciência de que alguma coisa teria que se alterar para que conservando o essencial de uma herança e de um património únicos, houvesse rasgo e mãos para ganhar o futuro. Mudaram-se hábitos, modelos, critérios, prioridades. Outra filosofia, maior fôlego, uma visão feita de objectivos que assegurassem chão sólido por de baixo das vinhas. “Ou se desistia, ou se criava uma marca” lembro-me de ouvir dizer a João Álvares Ribeiro, há um bom par de anos. Como nas paragens durienses não se desiste, também a família Ferreira não desistiu. Começava outra vida e João foi um dos motores de arranque dessa imensa empreitada. Não está nem esteve sozinho no desafio, o novo fôlego do Douro deve-se a muitos e os louros também mas hoje é do “case study” Vallado que aqui se trata.
6 E trata-se porque gosto de gostar e depois dizer que gostei e quando se trata do Portugal que vale a pena, gosto mais. E em tempo fechado, feito de espinhosos dias e baça incerteza, gosto mais ainda.
O que me suscita a lembrança de uma conversa interessante que tive a propósito desta mesmíssima história com alguém com quem costumo (por vezes) falar a mesma língua. Dizia-me esse amigo que lhe parecia haver sempre um ar a meio caminho entre o provincianismo deslumbrado e a saloiice, numa notícia em que os portugueses se gabassem de uma distinção vinda de fora. Ele nunca lhe daria jeito fazê-las além de haver várias empresas nacionais já alvo de case studies (subentendido: e não ficou tudo de boca aberta.) E se fosse assim? Teria ele razão? Uma escriba travestida em saloia deslumbrada? Fiquei a pensar naquilo. Mas depois decidi-me pelo contar desta história. As páginas económicas dos jornais porão certamente em relevo factos e factores para os quais não tenho competência – nem de os elencar, nem analisar, nem contabilizar. É aliás por essa mesmíssima razão que aqui não dou notícia dos andamentos e fundamentos do próprio “case study”; simplesmente não estaria a altura. O que puxou por mim foi a notícia em si mesma. Acho que terão percebido que falei de outro Portugal que não o circunstancial, o do momento, o das actuais “autoridades”, mas sim de outra gente. Amante do risco, praticante do progresso e militante do país. E inscrita por direito próprio na mais poderosa paisagem do país. CRÓNICA  DOURO  OBSERVADOR  PAÍS
COMENTÁRIOS
Pedro J.: São estas empresas que constroem o país - pagam salários e impostos e têm resiliência a muitos anos de desgovernos dos nabos partidários. Tantas e tantas empresas que foram destruídas pelo Estado, tomado por partidos que o manipulam desde o 25 de Abril, numa voragem que mistura cegueira ideológica, ganância, sede de poder, incompetência e ladroagem.  Carlos Almeida Gostei da sua crónica Maria João que fala de personagens de outro tempo que não do actual. Para bom entendedor meia palavra basta|   Cisca Impllit > Carlos Almeida: Não de outro tempo, mas se quiser que seja - não importa!Não sabem alguns, se calhar por isso mesmo deste tempo, quantos trabalhos e canseiras este "glamour", para nós uma maneira de ser tão-só, nos grisalham os cabelos e, quase sempre, nos empobrecem alegremente (já é tão antigo tanto quanto nos tomarem por parolos ou convencidos)  Ana Brit: Muito boa a sua crónica,  Maria João Avillez.    Joaquim Rodrigues Esta só sabe do Portugal ali entre a Lapa e Cascais. É esse o mundo dela. Quando de lá sai, é em TURISMO para ver a paisagem e o mundo é sempre outro.    Carlos Chaves: Caríssima Maria João, obrigado por mais uma excelente crónica tenho a felicidade de conhecer a quinta do Vallado os seus produtos e a região e sim, são estas gentes que nos vão mantendo Portugal, o real não o da propaganda    Ana Ferreira: Ler esta crónica é viajar a um mundo ficcional distante só acessível a meia dúzia de afortunados que a ele têm acesso. Como em toda a ficção acaba depressa a sensação boa e, para quem tem os pés bem assentes no chão, fica o amargo sabor do embuste. Viva a realidade!   Pedro J. > Ana Ferreira: E onde anda o José Maria, anda a Ana Ferreira, os Dupond e Dupont dos avençados do Partido, e como ele, também ela sofre quando a estrela que brilha não pertence ao Partido. Uma história de um empresário de sucesso, que sobrevive APESAR do Estado e dos aparelhos partidários? Ficção, grita ela! Grita ficção, e até embuste, dá vivas à realidade que é a sua fantasia, numa demência típica de quem vive da novilíngua...       Manuel Magalhães > Ana Ferreira: Lá tinha que vir a parvoíce...    josé maria: Amante do risco, praticante do progresso e militante do país. O pessoal médico e enfermeiros, todos os técnicos e auxiliares de saúde, do INEM e os bombeiros ou não são suficientemente selectos para serem lembrados nesta fase pandémica em que todos vivemos?     Pedro J.> josé maria: Se uma crónica arrisca mostrar que algo funciona apesar do Estado logo aparece o inefável José Maria, a soldo do Partido, a gritar que não pode ser assim, que homenagens só ao Estado e às suas pessoas; que os outros pelintras até podem ser animais, mas não são dos que são mais iguais que os outros... é um lápis azul suave, mas não deixa de ser um lápis azul. Ele sabe que é verdade caro Paulo Ferreira.     Madalena Magalhães Colaço: A família do lado da minha mãe é do Douro, de uma aldeia onde se vê toda a Serra do Marão e fica a 10 km da Régua. As minhas férias eram passadas no Douro, região que conheço muito bem. Sempre achei curioso o domínio das mulheres na região. Tal como D. Antónia Ferreira, numa época em que as mulheres estavam longe dos negócios, no Douro muitas quintas eram geridas por mulheres.

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