Enviada por email por João Sena. Extraída do blog A-bigorna de David
Martelo. Gente rija do passado, mostrando que, em questão de
estratégias e de estratagemas pouco mudámos. Realmente, falámos, na História, na
“Guerra do Peloponeso” com Alcibíades, sem, contudo, nenhuma
leitura de historiadores clássicos. Ficamos, por isso, gratos a David Martelo, por estes nacos de prosa clássica grega, que ele
traduziu.
ALCIBÍADES E A EXPEDIÇÃO À SICÍLIA (415 a.C.) por Tucídides
Nesta passagem da Guerra do
Peloponeso, Tucídides recria a intervenção de Alcibíades para contrariar a
anterior intervenção de Nícias desfavorável à ideia da expedição militar contra
a Sicília. No nosso tempo, o debate realizado em Atenas nessa ocasião foi comparado
ao que antecedeu a invasão do Iraque, em 2003, aparecendo a figura de Ronald
Rumsfeld, secretário da Defesa de George Bush, como comparável, na sua falta de
visão, à do jovem Alcibíades.
A
maior parte dos Atenienses que pediram para usar da palavra falaram a favor da
expedição, mostrando-se contrários à anulação da votação anterior. Alguns,
porém, manifestaram opinião oposta.
No entanto, o mais inflamado apoiante da expedição foi, de longe,
Alcibíades, filho de Clínias, o qual pretendeu
contrariar Nícias, não só na qualidade de seu opositor político mas também por
causa do ataque que ele lhe dirigira enquanto discursava. Além disso, porque
estava extremamente ansioso pelo comando de uma operação, através da qual
esperava submeter a Sicília e Cartago, delas saindo a ganhar pessoalmente, em
riquezas e fama, como fruto das suas vitórias. A posição que detinha no
conceito dos cidadãos levara-o a refinar os seus hábitos para além dos
recursos de que dispunha, tanto no que respeita à manutenção dos cavalos como
ao resto dos seus gastos. Estas circunstâncias, no futuro imediato,
teriam não pouco que ver com a ruína do estado ateniense. Alarmados com a dimensão da licenciosidade da sua
vida e dos seus hábitos e com a ambição que denotava em todas as empresas em
que se envolvia, a grande massa do povo tinha-o na conta de pretendente à
tirania, elegendo-o como inimigo. E embora publicamente a sua conduta da guerra
fosse tão boa como podia desejar-se, individualmente, os seus hábitos
ofendiam toda a gente, fazendo com que confiassem missões a outras mãos, e,
deste modo, em pouco tempo causando a ruína da cidade. Nestas condições,
Alcibíades pediu a palavra e deu aos Atenienses o seguinte conselho:
“Atenienses!
Tenho mais direito a exercer o comando do que outros – vejo-me forçado a
começar por aqui, face ao ataque que Nícias me dirigiu – e, ao mesmo tempo,
creio sinceramente ser merecedor de o fazer. As coisas pelas quais sou
injuriado trazem fama aos meus antepassados e a mim próprio e, além disso,
vantagens para a cidade. Os Helenos, depois de terem esperado ver a nossa
cidade arruinada pela guerra, concluíram que ela era ainda mais poderosa do que
realmente é, devido à magnificência com que eu a representei nos Jogos
Olímpicos, quando fiz concorrer sete carros, um número jamais apresentado por
nenhuma entidade privada, e ganhei o primeiro prémio, conquistando, ainda, o
segundo e o quarto lugares, e tendo o cuidado de apresentar tudo o mais num
estilo compatível com a minha vitóri (1). A
tradição impõe que se olhem estas demonstrações como honrosas e que não podem
ser feitas sem deixar atrás delas uma forte impressão de poder. Apesar disso,
qualquer nota de esplendor que eu possa ter exibido por cá, ao custear coros ou
outras actividades, é naturalmente invejada pelos meus concidadãos, mas aos
olhos dos forasteiros confere um ar de poderio, tal como no exemplo anterior. E
tudo isto não se trata de um desvario inútil, quando um homem, à sua própria
custa, beneficia não apenas a si próprio mas também a sua cidade. Tão-pouco é
uma injustiça que quem se orgulha da sua posição recuse ver-se colocado em pé
de igualdade com os demais. Quem se encontra empobrecido sofre sozinho a
sua infelicidade, pois ninguém é cortejado na adversidade. Aplicando o mesmo
princípio, percebe-se que se tem de aceitar a insolência da prosperidade, ou,
então, é preciso começar a conceder aos outros essa igualdade de tratamento que
reclamamos na desdita. O que eu sei é que pessoas desta espécie e todas as
outras que alcançaram alguma distinção, embora possam ser impopulares durante a
sua vida, no que concerne ao relacionamento com os seus semelhantes e,
especialmente, com os seus iguais, deixam para os que lhes sobrevivem o desejo
de reivindicar uma qualquer ligação com eles, mesmo quando inexiste razão para
tal, e são glorificados pelo país a que pertenceram, não como estrangeiros ou
malfeitores, mas como compatriotas e heróis. São essas as minhas aspirações, e,
apesar de por causa delas me injuriarem em privado, a questão é saber se alguém
trata dos assuntos públicos de forma melhor do que eu faço. Tendo unido os mais
poderosos estados do Peloponeso, sem grande perigo ou despesa vossa, compeli os
Espartanos a arriscar tudo por tudo, num só dia, em Mantineia, e, apesar de
vitoriosos na batalha, não conseguiram, desde então, recuperar completamente a
confiança em si próprios.”
1
Sublinhe-se que esta vitória de Alcibíades lhe trouxe uma popularidade ímpar
perante o povo ateniense, perfeitamente comparável à que, nos dias de hoje,
envolve as grandes estrelas do futebol mundial. A questão que importa
reter é que Alcibíades usou essa popularidade para fins políticos.
“Foi deste modo, com a verdura dos meus anos e aquilo
a que chamam a minha monstruosa insensatez, que encontrei os adequados
argumentos para lidar com o poder dos Peloponésios, sendo graças ao ardor das
minhas maneiras que conquistei a sua confiança e os levei a seguir os meus conselhos.
E não tenhais, agora, receio da minha juventude. Enquanto estou na plenitude do
meu vigor e Nícias parece bafejado pela fortuna, tirai o máximo partido dos
serviços de ambos. Não aceiteis rescindir a vossa decisão sobre a expedição à
Sicília com o argumento de que iríeis atacar uma grande potência. As cidades
da Sicília são povoadas por multidões heterogéneas que facilmente mudam as suas
instituições e adoptam outras em seu lugar. Consequentemente, os habitantes,
não sentindo nada de semelhante ao patriotismo, não se encontram providos de
armas pessoais nem se estabeleceram regularmente na terra. Cada homem pensa
que, através de lindas palavras ou das lutas partidárias, pode obter algo de
bom a expensas do erário público, pelo que, na hipótese desse plano fracassar,
pensam ir para outro país, opção para a qual se preparam atempadamente. Duma
massa de gente como esta não precisais de procurar unanimidade no conselho ou
acordo na acção. Mas o mais provável é que venham para o nosso lado, um por um,
à medida que lhes seja feita uma oferta razoável, especialmente se se
encontrarem envolvidos numa guerra civil, como nos têm dito. Além do mais, os
Siciliotas não possuem tantos hoplitas como se gabam de ter. Passa-se com eles
o mesmo que com o resto dos Helenos. Os números reais nunca batem certo com as
estimativas que cada estado faz das suas próprias forças, e é difícil dizer que
chegaram a ter, durante esta guerra, uma força de hoplitas digna desse nome.
Os estados da Sicília, consequentemente, de tudo quanto me foi dado ouvir,
serão encontrados nas condições que descrevi. E notai que não referi todas as
nossas vantagens, porque teremos ao nosso dispor a ajuda de muitos bárbaros, os
quais, devido ao ódio que nutrem pelos Siracusanos, se juntarão a nós para os
atacarmos. Por outro
lado, se pensardes bem, compreendereis que as potências nossas vizinhas não
constituirão qualquer obstáculo para nós. Os nossos pais, com estes mesmos
adversários – que agora foram referidos como ficando nas nossas costas quando
partirmos – e os Medas como inimigos, foram capazes de ganhar um império,
graças, unicamente, à sua superioridade no mar. Os Peloponésios nunca tiveram
tão pouca esperança num confronto connosco como nos dias de hoje. E ainda que
estivessem no máximo da sua confiança e com força suficiente para invadir o
nosso território, mesmo na hipótese de nos mantermos por cá, nunca poderão
causar-nos danos com a sua marinha, uma vez que deixamos cá ficar uma armada
que constitui um adversário plenamente à sua altura.” “Neste
estado de coisas, que razões podemos dar a nós próprios para nos contermos ou
que desculpas podemos oferecer aos nossos aliados na Sicília para não irmos em
seu auxílio? Tratam-se de confederados nossos e somos obrigados a prestar-lhes
ajuda, sem objectar que eles nos não ajudaram anteriormente. Nós não os aceitámos como aliados para que eles nos
viessem auxiliar na Grécia, mas para que pudessem fixar os nossos inimigos na
Sicília, de modo a impedir que cá viessem atacar-nos. Foi desta maneira que o
império foi construído, tanto por nós próprios como por outros que o seguraram,
por uma constante prontidão para prestar apoio a todos quantos, bárbaros ou
Helenos, solicitassem ajuda. Se todos resolvessem manter-se quietos ou fazer
uma escolha de quem iriam auxiliar, teríamos feito muito poucas novas
conquistas e teríamos posto em perigo aquelas que já estavam em nosso poder. Os
homens não ficam satisfeitos por se esquivarem ao ataque de um inimigo
superior, mas muitas vezes optam por desferir o primeiro golpe para evitar que
o ataque se concretize. Além disso,
não podemos determinar o ponto exacto onde o nosso império se deterá.
Alcançámos uma posição em que não podemos contentar-nos em reter o que temos,
sendo nosso dever a sua ampliação, porque, se pararmos de governar os
outros, corremos o risco de nos virem governar. Tão-pouco podeis encarar a
inacção do mesmo ponto de vista dos outros, a menos que estejais preparados
para modificar os vossos hábitos, assemelhando-os aos dos outros.” “Convencei-vos,
portanto, de que aumentaremos o nosso poder aqui através desta aventura no
exterior e façamos a expedição para abater o orgulho dos Peloponésios. Indo
para a Sicília, far-lhes-emos ver como pouco nos importa a paz de que agora
gozamos, e, ao mesmo tempo, ou nos tornaremos senhores – como muito facilmente
somos capazes – de todo o espaço helénico, através do domínio dos Sicilianos de
origem helénica, ou, de qualquer modo, causaremos a ruína dos Siracusanos, o
que será de não pequena vantagem para nós próprios e para os nossos aliados.
A faculdade de permanecermos, em caso de sucesso, ou de retornarmos será
assegurada pela nossa marinha,
uma vez que disporemos de superioridade no mar, mesmo contra todos os
Siciliotas juntos. E não permitais que a política de não-intervenção
advogada por Nícias ou a sua tentativa de abrir uma brecha entre jovens e
anciãos vos demova do vosso propósito. No bom velho estilo dos nossos pais –
que, com velhos e jovens em comunhão e através da convergência dos seus
conselhos, levaram a nossa prosperidade aos altos patamares do presente –,
esforçar-vos-eis por ainda os superar, compreendendo que nem os
jovens nem os anciãos podem fazer nada, sozinhos, sem a colaboração dos outros,
porque a leviandade, a sobriedade e o julgamento ponderado são mais fortes
quando unidos e que o mergulhar a cidade na inacção, como em tudo na vida,
acabará por a embotar, daí resultando que todas as suas aptidões entrarão em
decadência. Pelo contrário, cada novo combate será fonte de novas
experiências, tornando-a mais capaz de se defender, não por palavras, mas
através de acções. Em suma, é minha convicção que uma cidade não-inactiva
por natureza não pode escolher um caminho mais rápido para se autodestruir do
que, subitamente, adoptar uma política de lassidão e que a forma mais segura de
estar na vida é aceitar o carácter das instituições que temos, para o melhor e
para o pior, seguindo os seus ditames o mais estritamente que pudermos.”
Foram estas as palavras de Alcibíades. História da Guerra do Peloponeso – Livro Sexto
– Capítulo XVIII Tradução de David Martelo
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