Vivências, amizades, de um passado que
se estimou e que se foi, como coisas cediças que já não fazem préstimo. A verdade
é que nem todos sentiram esse passado com o mesmo júbilo. O presente de hoje
adivinhava-se no fungagá desse passado, que Maria João Avillez acompanhou com
garra e virtude.
Estranhezas que afinal eram tristezas /premium
Chega-se à conclusão de como,
apesar do tumulto daqueles anos iniciais da liberdade, a política era
compatível com coragem, frontalidade, combate, palavra, verdade. Com decência,
por outras palavras.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR 24 jun
2020
1Foi
um exercício delicado, levar alguns dias a escrever sobre a História recente
com a embaraçante impressão de que muito poucos conhecerão essa História,
perceberão o que conto, ou se interessarão sobre o que evoco. Falo sobre Francisco
Sá Carneiro, no ano em que se cumprem 40
anos sobre a sua morte, a poucos dias da
data do seu aniversário natalício, e escrevi a convite da “Brotéria”, para a
próxima publicação da revista. Mas escrevi embalada pela estranheza. No
plural: a estranheza de, falando sobre algo que me foi muito próximo – quase
íntimo, de tão vivido profissionalmente no meu quotidiano -, ter como
destinatária uma plateia que se teme semi-esquecida, ou se antevê
semi-desinteressada. A estranheza mais embaraçante ainda, de eu estar a
rever algo que essa mesma plateia tenderá a “ler” como pouco tendo a ver hoje,
em 2020, com o que é evocado sobre o “ontem” da década de 70, do século passado.
E afinal… não só tem mais a ver do que suspeita, como
ela deve muita coisa a Sá Carneiro. Não
foi só Mário Soares que trouxe a liberdade, o Estado de Direito, o modelo de
democracia onde vivemos, a Europa. Foi essencialmente Soares, mas foi também Sá
Carneiro. Não posso, seriamente, evocar mais nenhum outro líder civil com a
mesma decisiva importância nesses tempos de guerra e não terá sido por acaso
que cada um deles, a seu modo e em seu lugar, iniciou essa guerra antes de
Abril de 1974. Nenhum esperou pela data, nem que os militares lhe abrissem a
porta.
Sá Carneiro, portanto: vale a pena
voltar a falar dele, na impossibilidade de lhe agradecer a sua parte de
responsabilidade no modo como vivemos.
E,
finalmente, a última estranheza: mesmo militando eu contra os que “choram sobre
o leite derramado” e não me costumando pendurar no passado, confesso a mais
triste das estranhezas: a da comparação com a política produzida nesses anos e
os infectados dias que correm. Não, não falo da infecção Covid, falo do vírus
que parece ter atacado -mortalmente? – a política que hoje se faz, o modo como
se faz e com quem se faz. Chega-se à deprimente conclusão de como, apesar do
tumulto e das chamas daqueles anos iniciais da liberdade, a política era
inteiramente compatível com a coragem, a frontalidade, o combate, a palavra, a
vontade, a verdade. Com a decência, por outras palavras.
Mas
isso talvez já sejam outras histórias. Hoje fico-me pela estranheza. No
plural.
2Um deleite. Intelectual, político,
civilizacional. Deleite
português (e será aí que quero chegar). Foram horas diante do computador, com a
curiosidade acesa e o interesse avivado, ouvindo as palavras escolhidas para
recordar José Cutileiro. Escolhidas
para que melhor se encaixassem, melhor se aproximassem, mais luz despejassem
sobre um merecedor de luz como ele era (e haverá, certamente, poucas coisas tão
jubilosas quanto lidar com as palavras). A iniciativa era partilhada pelo
Instituto de Defesa Nacional (IDN) e o Instituto Diplomático, (ID), que assim
honrava um dos seus mais invulgares servidores, e a ideia partiu, se não estou
em erro, de Ricardo Alexandre, jornalista da TSF, que durante anos conversou
semanalmente com o embaixador Cutileiro sobre o Mundo e a vida e não se
esqueceu do que ouviu. Não se podia deixar José Cutileiro morrer de vez, em
Portugal morre-se sempre de vez.
3Foi
dentro dos acanhados quadradinhos dos ecrãs onde hoje nos confinamos (e
provamos que existimos), que os homenageadores deixaram a memória correr ao
encontro do homenageado: o Ministro dos Negócios Estrangeiros e quatro
embaixadores lembraram o “diplomata” (o painel foi moderado com a particular,
aguda subtileza de que o embaixador Freitas Ferraz parece ter o segredo);
académicos, governantes e intelectuais evocaram o “estratega”, conduzidos pela
professora Helena Carreiras, directora do IDN. Isabel Lucas conversou com gente das letras,
conhecedores e habitués do “intelectual” que escrevia sempre bem (o seu
penúltimo livro, Abril e outras Transições –
Dom Quixote -, sobre o qual trocámos, ele e eu, deliciosa correspondência
electrónica, é uma pequena obra prima).
Felizmente,
a ninguém ocorreu escolher se Cutileiro brilhou mais como intelectual,
serviu melhor como diplomata, ou foi mais indispensável como estratega.
Importava reter, mais do que escolher, e foi nesse sentido que falei em
deleite. O deleite de ouvir um naipe de eleitos (a lista é, hélas,
demasiado longa) radiografar um cavalheiro que decompunha o seu próprio génio e
depois o utilizava com a mesma inteira e intacta aplicação nas tão diversas
vidas e missões com que a vida o interpelou (ou deveria dizer o brindou?). O
deleite, enfim, do que se foi ouvindo. E por isso, apenas duas breves notas:
uma sobre Manuel Lobo Antunes,
nosso actual representante em Londres, cuja evocação me tocou especialmente: a
aguarela que pintou de José Cutileiro expôs, num mesmo traço, a tonalidade
delicada do sentimento e as cores graves da razão (não era qualquer um, mas
falamos de um Lobo Antunes). A outra para Carlos Gaspar, que se “ocupou” do fino, lucidíssimo estratega que
foi Cutileiro. A sua análise, porventura nunca antes assim exposta – a influência
da visão estratégica de “estrangeirados” como Cutileiro, Cunha Rego,
Manuel Lucena, Medeiros Ferreira, Pulido Valente
no (bom) rumo do país a caminho de uma democracia pluripartidária,
ocidental, integrada na Nato e na União Europeia – mereceria segundo episódio,
isto é, bem-vindos desenvolvimentos: pelo contributo ainda pouco, digamos,
manuseado para a leitura da História recente, o interesse que esta tese suscita
e quem sabe, a controvérsia que suscitará.
4Se
tudo isto foi bom de ouvir, se a ideia se aplaude e a iniciativa se louva, à
medida, porém, que a jornada escorria, uma estranheza – outra! – meio
constrangida ia tomando conta do ecrã e perturbando o meu entendimento: que
Portugal era aquele que, de repente, tanto destoava do que nos servem nos
telejornais? E que não “cabia” no exausto e exaustivo perímetro onde se agitam,
omnipresentes, as nossas “autoridades” e os seus vexatórios faux-pas? Dará
certamente que pensar esta coexistência, difícil de definir e ainda mais de
explicar.
Com
esta, já eram duas estranhezas que afinal eram tristezas. Para um só dia, havia
pelo menos uma a mais.
P.S.: O
aeroporto da capital está transformado num covil de bandidos e no lugar mais
temível de Lisboa? Após a história obscena do assassínio de um ucraniano, ainda
mal contada e nunca esclarecida, agora há também ladrões à solta? Com ambos –
bandidos e ladrões – fardados?
COMENTÁRIOS
Graciete Madeira: Excelente texto, como é habitual em M.J.A.
d f: PS: Sobre o aeroporto, além dos assassinos do SEF e dos
polícias de fronteiras gatunos das bagagens, não esquecer a mafia dos táxis. Não
se compreende por que motivo continuam lá ano após ano e ninguém os põe na
ordem.
Ana Brito: A tia de 80 anos hoje está a falar de quê?
Maria Eduarda Vaz Serra > Ana Brito: De coisas que algumas pessoas não têm nem sabedoria
nem grandeza de alma para entenderem.
Antonio Bentes > Ana Brito: Que pobreza de espírito. Só lhe fica ridículo fazer
comentários no Observador porque não consegue influenciar nenhum dos leitores.
A figura triste é sua, apenas sua. Mas, esqueci-me que a esquerda não preza o
indivíduo, apenas o colectivo. Por isso, deve achar estranho alguém com 80
anos, e a ser verdade, que magníficos 80, ainda estar a escrever como escreve.
De facto, é muita areia para o seu camião. Vá para o DN.
Maria Nunes: É um prazer ler MJA.
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