quarta-feira, 3 de junho de 2020

E as florestas a arder, entretanto…


Mais um passeio de luxo que nos dá conta das disparidades que vão por este mundo, tão atrapalhado ainda, nos seus contrastes entre o belo e o feio. Como sempre, Salles da Fonseca, sem papas na língua, ou, neste caso, sem entraves na escrita, ajuda a percepcionar esses contrastes, dando indicações para corrigir, com uma estranha autoridade. Era bom que as suas propostas fossem seguidas, mas a primeira coisa seria reduzir a natalidade, na Índia – e não só. Para bem do mundo inteiro, também, que vai esgotando as suas reservas, nuns lados por excesso populacional, noutros, por excesso industrial.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 02.06.20
Conheço a Índia melhor do que a maior parte dos indianos.
Visitei a Índia pela primeira vez em Janeiro de 2008 com itinerário e hotéis tão bons quanto a agência de viagens identificou (5 estrelas ou luxo, conforme a disponibilidade em cada cidade visitada), tudo marcado a partir de Lisboa, nada de improvisos num país que não conhecíamos.
Chegados a Nova Delhi, esperava-nos um carro com motorista que nos levou ao hotel onde descansámos um pouco seguido de uma volta pela cidade para ficarmos com uma ideia dos principais pontos de interesse. Para além da imponência vitoriana dos edifícios com significado político, ficámos com uma ideia muito favorável da malha urbana sem que, contudo, o motorista-cicerone nos mostrasse onde vivia o povo. O que notei como inesperado foram as barricadas defensivas em pontos considerados estratégicos contra um eventual ataque do inimigo tradicional, o Paquistão. Pacificamente, andámos por toda a cidade sem que fôssemos incomodados por ninguém. Naquele fim de tarde, havia no hotel uma festa (casamento? – já não recordo ao certo) cujos participantes eram por certo da alta burguesia. Jantados e dormidos, partimos de manhã cedo no mesmo carro e com o mesmo motorista rumo a Jaipur num percurso de 300 quilómetros. Talvez fosse devido à época do ano mas não vimos grande actividade agrícola. Vimos, isso sim, ao longo das estradas, cabanas onde pequeníssimos agricultores vivem juntamente com uma ou duas búfalas cujo leite comercializam junto de cooperativas por que não passámos.
Chegados a Jaipur, vimos lixo por toda a parte e gente a tentar sobreviver no meio da maior imundície. Ao entrarmos no recinto asseado do hotel, notámos que o carro desceu da camada de lixo acumulado na via pública e à saída do hotel, o carro subiu para cima do lixo. O mesmo se diga em Samode onde ao palácio se chega por ruas miseráveis cheias de buracos e lixo.
De Jaipur rumámos a Agra onde o cenário de lixo era quase o mesmo, com excepção do recinto do Taj Mahal e do do castelo. Como é possível um político pedir votos a um eleitorado que, de antemão, se sabe destinado ao desprezo e à sobrevivência no meio de tanta porcaria? Que democracia tão estranha. Ou será que nem sequer é democracia? Parece-me um país dirigido por classocratas auto legitimados por uma fantochada a que chamam eleições.
Absolutamente chocante, a convivência do luxo com tanto lixo.
Regressados a Nova Delhi, tomámos o avião para Bombaim e, daí, para Goa. Aqui, depois do que tínhamos visto em Maharastra e no Uttar Pradesh, tudo nos pareceu limpo. Foi necessário regressarmos a Bombaim e irmos conhecer um arredor da cidade para voltarmos a ver lixo e miséria.
Visitei a Índia pela segunda vez em Maio de 2017, desta vez integrados num grupo de cerca de 40 pessoas, com guia profissional.
Aterrámos em Chennai sob forte monção. A humidade em excesso não é sinónima de salubridade mas isso não é desculpa para o desprezo da paisagem e das pessoas. E se eu ficara chocado com o que vira em Maharastra e no Uttar Pradesh, não sei qual o estado em que fiquei ao atravessar o Tamil Nadu durante oito dias em que pernoitávamos em hotéis de grande luxo rodeados da mais vil miséria em que há pessoas que nascem, vivem e morrem sem alguma vez terem tido um tecto sob que se abriguem. Nem os bichos que arranjam tocas se devem sentir tão abandonados. E será isto uma democracia? Claramente não. É uma classocracia em que uns quantos se auto legitimam através duma fantochada a que chamam eleições.
Democracia exige respeito pelas populações e na Índia esse é preceito em falta.
De tanto que já conheço do mundo, o grau superlativo da imundície e do desprezo pela dignidade humana chama-se Tamil Nadu.
O contraste com o Kerala onde a higiene pública é uma realidade evidente.
Nesta segunda visita a Goa, o espaço público já não nos pareceu tão asseado como em 2208. Houve uma negativa indianização das cidades no que isso significa lixo e falta de respeito pelo cidadão.
E, contudo, seria relativamente fácil limpar a Índia.
O lixo pode gerar fortunas desde que devidamente escolhido, ou seja, fazendo um jogo de palavras, o lixo gera o luxo.
Na situação caótica em que a Índia se encontra, o mais fácil será começar por levar as indústrias de vidro, de metais ferrosos e de papel e cartão a reconhecerem as enormes poupanças que podem obter se, em vez de utilizarem apenas as matérias primas, usarem também os seus próprios materiais para reciclagem.
Por exemplo no vidro (garrafas e frascos), uma tonelada de vidro usado gera uma tonelada de vidro novo enquanto, para produzir essa mesma tonelada sem reciclagem, são necessários cerca de 1200 kgs de matérias primas e, simultaneamente, a poupança de energia com a reciclagem ronda os 10%.
Com poupanças significativas mas noutras percentagens, o mesmo se passa com os metais ferrosos, com o papel e com o cartão.
Se estas indústrias passarem a pagar o vidro velho, o ferro velho, o cartão usado e o papel que alguém lhes ponha à porta das respectivas fábricas por um preço algo inferior ao valor das poupanças alcançadas com a reciclagem, geram lucros para si próprias e dão dinheiro a muita gente que passará a retirar esses materiais do meio do lixo que infesta toda a Índia. E haverá muitos miseráveis que assim encontrarão um modo de sobrevivência com efectiva utilidade para o bem comum.
No mundo ocidental, esta recolha selectiva é a razão de ser de muitas empresas que representam um lobby importante e se constituem como parceiros fundamentais na definição das políticas do ambiente.
Mas os resíduos sólidos urbanos (vulgo, lixo das cidades) também se compõem de outros materiais de que destaco duas categorias principais: os orgânicos (restos de comida…) e os inertes não recicláveis.
Os orgânicos, uma vez submetidos à compostagem (fermentação, homogeneização, secagem…) são destinados à produção de fertilizantes de uso agrícola; os inertes não recicláveis dividem-se em combustíveis e inertes puros. Os que podem ser usados como combustível (plásticos, p. ex.), à falta de outra utilização, podem ser queimados no âmbito da produção de energia eléctrica; os inertes puros deverão ser transformados em blocos para a construção ou, enquanto não houver novas ideias nem novas tecnologias, depositados em aterro.
Com esta breve descrição se percebe como a Índia anda a perder muito dinheiro ao não valorizar os seus próprios resíduos sólidos urbanos.
É que ninguém é assim tão rico que se possa dar ao luxo de desperdiçar as grandes fortunas escondidas no lixo.
Aqui fica a sugestão para que se lance a campanha
CLEAN INDIA,
RECYCLE GARBAGE,
EARN FORTUNES
Junho de 2020
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca 02.06.2020: Igualmente publicado em «Niz Goenkar»

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