Mais um passeio de luxo que nos dá conta
das disparidades que vão por este mundo, tão atrapalhado ainda, nos seus
contrastes entre o belo e o feio. Como sempre, Salles da Fonseca, sem papas na língua, ou, neste caso, sem entraves na
escrita, ajuda a percepcionar esses contrastes, dando indicações para corrigir,
com uma estranha autoridade. Era bom que as suas propostas fossem seguidas, mas
a primeira coisa seria reduzir a natalidade, na Índia – e não só. Para bem do
mundo inteiro, também, que vai esgotando as suas reservas, nuns lados por
excesso populacional, noutros, por excesso industrial.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 02.06.20
Conheço
a Índia melhor do que a maior parte dos indianos.
Visitei a Índia pela primeira vez em
Janeiro de 2008 com
itinerário e hotéis tão bons quanto a agência de viagens identificou (5
estrelas ou luxo, conforme a disponibilidade em cada cidade visitada), tudo
marcado a partir de Lisboa, nada de improvisos num país que não conhecíamos.
Chegados
a Nova Delhi, esperava-nos um carro com motorista que nos levou ao
hotel onde descansámos um pouco seguido de uma volta pela cidade para ficarmos
com uma ideia dos principais pontos de interesse. Para além
da imponência vitoriana dos edifícios com significado político, ficámos com uma
ideia muito favorável da malha urbana sem que, contudo, o motorista-cicerone
nos mostrasse onde vivia o povo. O
que notei como inesperado foram as barricadas defensivas em pontos considerados
estratégicos contra um eventual ataque do inimigo tradicional, o Paquistão. Pacificamente, andámos por toda a cidade sem que fôssemos
incomodados por ninguém. Naquele fim de tarde, havia no hotel uma festa
(casamento? – já não recordo ao certo) cujos participantes eram por certo da
alta burguesia. Jantados e dormidos, partimos de manhã cedo no mesmo carro e
com o mesmo motorista rumo a Jaipur num percurso de 300 quilómetros. Talvez
fosse devido à época do ano mas não vimos grande actividade agrícola.
Vimos, isso sim, ao longo das estradas, cabanas onde pequeníssimos
agricultores vivem juntamente com uma ou duas búfalas cujo leite comercializam junto de cooperativas por que não passámos.
Chegados
a Jaipur, vimos lixo
por toda a parte e gente a tentar sobreviver no meio da maior imundície. Ao entrarmos no recinto asseado do hotel, notámos
que o carro desceu da camada de lixo acumulado na via pública e à saída do
hotel, o carro subiu para cima do lixo. O mesmo se diga em Samode onde
ao palácio se chega por ruas miseráveis cheias de buracos e lixo.
De
Jaipur rumámos a Agra onde o cenário de lixo era quase o mesmo, com
excepção do recinto do Taj Mahal e do do castelo. Como é
possível um político pedir votos a um eleitorado que, de antemão, se sabe
destinado ao desprezo e à sobrevivência no meio de tanta porcaria? Que
democracia tão estranha. Ou será que nem sequer é democracia? Parece-me um país
dirigido por classocratas auto legitimados por uma fantochada a que chamam
eleições.
Absolutamente
chocante, a convivência do luxo com tanto lixo.
Regressados
a Nova Delhi, tomámos o avião para Bombaim
e, daí, para Goa. Aqui, depois do que tínhamos visto em Maharastra e
no Uttar Pradesh, tudo nos pareceu limpo. Foi necessário
regressarmos a Bombaim e irmos conhecer um arredor da cidade para voltarmos
a ver lixo e miséria.
Visitei a Índia pela segunda vez em
Maio de 2017, desta vez
integrados num grupo de cerca de 40 pessoas, com guia profissional.
Aterrámos
em Chennai sob forte monção. A humidade em excesso não é
sinónima de salubridade mas isso não é desculpa para o desprezo da paisagem e
das pessoas. E se eu ficara chocado com o que vira em Maharastra e
no Uttar Pradesh, não sei
qual o estado em que fiquei ao atravessar o Tamil
Nadu durante oito dias em que pernoitávamos
em hotéis de grande luxo rodeados da mais vil miséria em que há pessoas que
nascem, vivem e morrem sem alguma vez terem tido um tecto sob que se abriguem.
Nem os bichos que arranjam tocas se devem sentir tão abandonados. E será
isto uma democracia? Claramente não. É
uma classocracia em que
uns quantos se auto legitimam através duma fantochada a que chamam eleições.
Democracia exige respeito pelas
populações e na Índia esse é preceito em falta.
De
tanto que já conheço do mundo, o grau superlativo da imundície e do desprezo
pela dignidade humana chama-se Tamil Nadu.
O
contraste com o Kerala onde a higiene pública é uma realidade evidente.
Nesta
segunda visita a Goa, o espaço público já não nos pareceu tão asseado como em
2208. Houve uma negativa indianização das cidades no que isso significa lixo e
falta de respeito pelo cidadão.
E, contudo, seria relativamente fácil limpar a Índia.
O lixo pode gerar fortunas desde que devidamente escolhido, ou seja,
fazendo um jogo de palavras, o lixo gera o luxo.
Na
situação caótica em que a Índia se encontra, o mais fácil será começar por levar
as indústrias de vidro, de metais ferrosos e de papel e cartão a reconhecerem
as enormes poupanças que podem obter se, em vez de utilizarem apenas as
matérias primas, usarem também os seus próprios materiais para reciclagem.
Por exemplo no vidro (garrafas e
frascos), uma tonelada de vidro usado gera uma tonelada de vidro novo enquanto,
para produzir essa mesma tonelada sem reciclagem, são necessários cerca de 1200
kgs de matérias primas e, simultaneamente, a poupança de energia com a
reciclagem ronda os 10%.
Com poupanças significativas mas noutras
percentagens, o mesmo se passa com os metais ferrosos, com o papel e com o
cartão.
Se
estas indústrias passarem a pagar o vidro velho, o ferro velho, o cartão usado
e o papel que alguém lhes ponha à porta das respectivas fábricas por um preço
algo inferior ao valor das poupanças alcançadas com a reciclagem, geram lucros
para si próprias e dão dinheiro a muita gente que passará a retirar esses
materiais do meio do lixo que infesta toda a Índia. E haverá muitos miseráveis
que assim encontrarão um modo de sobrevivência com efectiva utilidade para o
bem comum.
No mundo ocidental, esta
recolha selectiva é a razão de ser de muitas empresas que representam um lobby
importante e se constituem como parceiros fundamentais na definição das
políticas do ambiente.
Mas
os resíduos sólidos urbanos (vulgo, lixo das cidades) também se compõem de
outros materiais de que destaco duas categorias principais: os
orgânicos (restos de
comida…) e os inertes não recicláveis.
Os
orgânicos, uma vez submetidos à compostagem (fermentação, homogeneização,
secagem…) são destinados à produção de fertilizantes de uso agrícola; os inertes não recicláveis dividem-se em combustíveis
e inertes puros. Os que podem ser usados como combustível
(plásticos, p. ex.), à falta de outra utilização, podem ser queimados no âmbito
da produção de energia eléctrica; os inertes puros deverão ser transformados em blocos
para a construção ou, enquanto
não houver novas ideias nem novas tecnologias, depositados em aterro.
Com esta breve descrição se percebe
como a Índia anda a perder muito dinheiro ao não valorizar os seus próprios
resíduos sólidos urbanos.
É que ninguém é assim tão rico
que se possa dar ao luxo de desperdiçar as grandes fortunas escondidas no lixo.
Aqui fica a sugestão para que se
lance a campanha
CLEAN INDIA,
RECYCLE GARBAGE,
EARN FORTUNES
Junho de 2020
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca 02.06.2020: Igualmente publicado em «Niz Goenkar»
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