(se siga).Refere-se o
título da excelente crónica de João
André Costa à curiosa estátua énea (vocábulo a condizer com o meu
respeito, embora a designação “bronze” pareça mais imponente), estátua – vejo na
Internet - esculpida por Lagoa
Henriques, e inaugurada numa segunda-feira, 13 de Junho de 1988, em frente
à Brasileira do Chiado, local privilegiado
da intelectualidade portuguesa dos anos da Revista Orpheu e seguintes, onde sobressaiu o génio de Fernando
Pessoa, que Lagoa Henriques apresenta
sentado à mesa de um café, em linhas corporais geometricamente estabelecidas, a
condizer com a extraordinária amplitude de um tal espírito, seara de ideias ou raciocínios,
de uma clareza imaculada, por paradoxal que se apresente na sua extraordinária obra
que culmina com o “Livro do
Desassossego” do heterónimo Bernardo Soares. É deste Livro e de outras fontes, como as do citado historiador José Barreto, que são
transpostos os ditames racistas de um discurso não sofisticado, citado por JAC. Muitos mais dele poderiam ser
citados que o apontam como energicamente avesso ao primitivismo ignaro de tanta
mediocridade andante e falante. Mas é tarefa hercúlea, a escolha de qualquer excerto,
tal a enormidade discursiva de um pensamento alojado entre o real e o
transcendente, e a única coisa a fazer é prostrar-nos de veneração pelo que foi por ele escrito e nos deixa boquiabertos ante tanta subtileza quer lógica quer
paradoxal e tanta corajosa honestidade discursiva.
Não o farão, certamente, os que acima de
tudo prezam as detonações selváticas das suas ideologias, fundadas não em
leitura e estudo mas em mascarada de sensibilite, que não é mais do que
frustração. E ódio real, obviamente.
Fernando Pessoa e a estátua que se segue
Foram as frases retiradas de contexto?
É justo acusar Fernando
Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto, Pessoa
nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma linha de
doutrina racista
PÚBLICO, 12 de
Junho de 2020,
Em 2019, as vozes e os gritos
ecoaram, acusando Fernando Pessoa de racismo. A polémica estalou depois da
sugestão do nome de Pessoa para patrono
de um programa de intercâmbio semelhante ao Erasmus entre as Comunidades dos
Países de Língua Portuguesa.
À
data, citavam-se várias frases da sua autoria como a prova irrefutável de uma visão
racista do mundo, as quais
reproduzo em seguida: “um zulu [da África do Sul] ou um landim [de
Moçambique] não representam coisa alguma de útil neste mundo”; “O legítimo é
obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização”; “Ninguém
ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social”,
questionando de seguida: “Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei
natural da vida das sociedades sãs?”; “A escravatura é a lei da vida, e não há
outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem
escravos, e a outros a escravidão é dada”.
Infelizmente,
nos tempos que correm, este texto acaba aqui. Mais ninguém quererá saber sobre
o contexto das frases de Pessoa, a sua origem ou o porquê da sua publicação.
Não. Basta escrevê-las e apontar o dedo ao autor para, em breves
minutos, termos a estátua de Pessoa à frente da Brasileira prontamente
grafitada e decapitada em nome não de uma causa em tudo maior, mas da
ignorância, maior que tudo o resto e ainda mais.
Mas,
e porque ainda acredito na humanidade e na sua infinita capacidade de ultrapassar
as piores intempéries, dedicarei os próximos parágrafos à contextualização das
polémicas frases de Pessoa.
Começando
pelas primeiras duas frases, estas foram retiradas de um texto intitulado Introdução ao estudo do problema nacional (ou Império), que, de acordo com o Arquivo Pessoa, não tem
data. No texto, Pessoa fala sobre os “três graus” do imperialismo, cuja
parte final diz o seguinte: “Recordemo-nos sempre que o fim de
colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim
levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta,
mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria
civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo
algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A
escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa
alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra
forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é
obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo
é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo
envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude.
Povos, como o inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a
civilização”.
A
terceira frase faz parte de Régie,
Monopólio, Liberdade, escrito
por Pessoa em 1926. Neste texto, Pessoa debruçava-se sobre o papel do
Estado na regularização do mercado de tabaco, os monopólios e a concorrência
livre: “A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os
nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois
pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada
se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da
operação de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a
Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. Ora não há
certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida
individual. Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura
fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos
diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?
Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida
das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de
Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a
escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está
de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo. A essência do
que em política se chama “conservantismo” nasce directamente desta nossa”.
A última frase pode ser
encontrada no Livro do Desassossego, no seguinte parágrafo: “A escravatura é a
lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta
possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos,
e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade —
que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro
sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a
cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim,
ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que,
pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que
sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos
meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol
puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz
que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lances
de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os
bons-dias com o barbeiro ocioso?”.
Foram
as frases retiradas de contexto? É justo acusar Fernando Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto,
Pessoa nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma
linha de doutrina racista. Na verdade, ao falar em escravatura, Pessoa
refere-se “à ‘plebe’, ao operariado moderno, do qual fala quase sempre com
desprezo, traumatizado como ficou pelo sindicalismo revolucionário e pelo
anarquismo bombista da I República”.
Conclusão, para
Fernando Pessoa, os “escravos” eram os “operários em geral.
Sobre a escravatura propriamente
dita, Barreto não tem
conhecimento de nenhum documento no espólio pessoano que dê a entender que o
autor defendia a escravatura, em muitos casos atacando-a, desprezando o racismo
dos fascistas e dos nazis ou atacando o trabalho escravo perpetrado pelos
ingleses nas minas sul-africanas”.
A ignorância, no entanto, é o maior de todos os males, e se por um
lado não posso deixar de defender quem hoje luta contra séculos de opressão,
morte, tortura e estupro, por outro nem todos os meios justificam os fins,
ainda para mais quando os meios implicam o esquecimento das artes, da
literatura, da memória e do conhecimento de quem não teve outra culpa senão a
de criar. Receio, no entanto, ser o apelo ao raciocínio, à lógica e à calma uma
causa perdida em tempos tão conturbados. Tenhamos esperança, portanto, mas
também a certeza de uma outra estátua e um outro Pessoa para nos sentarmos a
seu lado quando o mundo acordar.
COMENTÁRIOS
Conta desactivada por violação das regras de conduta: Louvo a intenção do cronista. Mas numa sociedade
sensata isto nem deveria ser necessário pois mesmo que Pessoa tivesse escrito
coisas racistas isso não diminuiria o seu valor artístico. Numa sociedade
sensata -- escrevi eu ... pois, mas o bom senso tem vindo a dar lugar à emoção
de um turba anti-racista que, na verdade, é uma turba inimiga do racionalismo,
do livre debate de ideias, uma turba totalitária. 16.06.2020
Pedro Trova INICIANTE: Pessoa e Almada são os meus poetas favoritos. Por favor
não decapitem a sua estátua. Mas há que dizer a verdade. Os Futuristas
portugueses imitavam o inventor do Futurismo: Marinetti, que era fascista e
ideólogo principal do regime fascista de Mussolini. O editor da revista Orfeu
foi António Ferro, ministro da Propaganda de Salazar. António Ferro deu um
cheque ao Pessoa em troca da sua epopeia nacionalista "Mensagem".
Houve muitos grandes autores e artistas que se deslumbraram com o fascismo e
que depois reconheceram terem-se enganado: Pirandello, Shaw, Knut Hamsun (todos
prémios Nobel) Ezra Pound e Louis Ferdinand Céline (que no fim da sua vida
disse que escolher entre o fascismo e o comunismo é como escolher entre o
cancro e a sífilis). 14.06.2020
Colete Amarelo EXPERIENTE: Na minha análise dos excertos com
referências à contextualização de onde foram extraídos, não vislumbro qualquer
apologia da colonização ou do racismo. Pessoa é factual. Diz-nos o que é o
colonialismo e como funciona. Não o aplaude, nem o condena, antes revela-o
friamente, um processo que à luz do naturalismo é lógico e legítimo. O
colonialismo serve apenas o colonizador. Quanto à escravatura ele analisa-a num
sentido lato: "O amor cobarde que todos temos à liberdade — que, se a
tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do
peso da nossa escravidão' 12.06.2020
DCM EXPERIENTE. O
João é corajoso, provocou muitos estilhaços que lhe causarão um mar de críticas,
mas quanto a mim conseguiu sair incólume do campo minado em que se meteu. 12.06.2020
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