quinta-feira, 25 de junho de 2020

Oxalá não



(se siga).Refere-se o título da excelente crónica de João André Costa à curiosa estátua énea (vocábulo a condizer com o meu respeito, embora a designação “bronze” pareça mais imponente), estátua – vejo na Internet - esculpida por Lagoa Henriques, e inaugurada numa segunda-feira, 13 de Junho de 1988, em frente à Brasileira do Chiado, local privilegiado da intelectualidade portuguesa dos anos da Revista Orpheu e seguintes, onde sobressaiu o génio de Fernando Pessoa, que Lagoa Henriques apresenta sentado à mesa de um café, em linhas corporais geometricamente estabelecidas, a condizer com a extraordinária amplitude de um tal espírito, seara de ideias ou raciocínios, de uma clareza imaculada, por paradoxal que se apresente na sua extraordinária obra que culmina com o Livro do Desassossegodo heterónimo Bernardo Soares. É deste Livro e de outras fontes, como as do citado historiador José Barreto, que são transpostos os ditames racistas de um discurso não sofisticado, citado por JAC. Muitos mais dele poderiam ser citados que o apontam como energicamente avesso ao primitivismo ignaro de tanta mediocridade andante e falante. Mas é tarefa hercúlea, a escolha de qualquer excerto, tal a enormidade discursiva de um pensamento alojado entre o real e o transcendente, e a única coisa a fazer é prostrar-nos de veneração pelo que foi por ele escrito e nos deixa boquiabertos ante tanta subtileza quer lógica quer paradoxal e tanta corajosa honestidade discursiva.
Não o farão, certamente, os que acima de tudo prezam as detonações selváticas das suas ideologias, fundadas não em leitura e estudo mas em mascarada de sensibilite, que não é mais do que frustração. E ódio real, obviamente.

Fernando Pessoa e a estátua que se segue
Foram as frases retiradas de contexto? É justo acusar Fernando Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto, Pessoa nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma linha de doutrina racista
PÚBLICO, 12 de Junho de 2020,
À data, citavam-se várias frases da sua autoria como a prova irrefutável de uma visão racista do mundo, as quais reproduzo em seguida: “um zulu [da África do Sul] ou um landim [de Moçambique] não representam coisa alguma de útil neste mundo”; “O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização”; “Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social”, questionando de seguida: “Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs?”; “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos, e a outros a escravidão é dada”.
Infelizmente, nos tempos que correm, este texto acaba aqui. Mais ninguém quererá saber sobre o contexto das frases de Pessoa, a sua origem ou o porquê da sua publicação. Não. Basta escrevê-las e apontar o dedo ao autor para, em breves minutos, termos a estátua de Pessoa à frente da Brasileira prontamente grafitada e decapitada em nome não de uma causa em tudo maior, mas da ignorância, maior que tudo o resto e ainda mais.
Mas, e porque ainda acredito na humanidade e na sua infinita capacidade de ultrapassar as piores intempéries, dedicarei os próximos parágrafos à contextualização das polémicas frases de Pessoa.
Começando pelas primeiras duas frases, estas foram retiradas de um texto intitulado Introdução ao estudo do problema nacional (ou Império), que, de acordo com o Arquivo Pessoa, não tem data. No texto, Pessoa fala sobre os “três graus” do imperialismo, cuja parte final diz o seguinte: “Recordemo-nos sempre que o fim de colonizar ou ocupar territórios não é civilizar a gente que lá está, mas sim levar para esses territórios elementos de civilização. O fim não é altruísta, mas puramente egoísta e civilizacional. É o prolongamento da sua própria civilização que o imperialismo expansivo busca e deve buscar; não é, de modo algum, as vantagens que daí possam advir para os habitantes desse país. A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude. Povos, como o inglês, hipocritizaram o conceito, e assim conseguiram servir a civilização”.
A terceira frase faz parte de Régie, Monopólio, Liberdade, escrito por Pessoa em 1926. Neste texto, Pessoa debruçava-se sobre o papel do Estado na regularização do mercado de tabaco, os monopólios e a concorrência livre: “A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo. Por o que conhecemos da operação de algumas dessas leis — por exemplo, a da hereditariedade —, a Natureza parece frequentemente timbrar em ser injusta e tirânica. Ora não há certeza que a Natureza seja mais terna para a vida social do que para a vida individual. Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo. A essência do que em política se chama “conservantismo” nasce directamente desta nossa”.
A última frase pode ser encontrada no Livro do Desassossego, no seguinte parágrafo: “A escravatura é a lei da vida, e não há outra lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que desejaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a monotonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor, se a doença é dos meus pulmões e não das coisas que me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem me diz que não estranharia a cama, ou a comida, ou não ter que descer os oito lances de escada até à rua, ou não entrar na tabacaria da esquina, ou não trocar os bons-dias com o barbeiro ocioso?”.
Foram as frases retiradas de contexto? É justo acusar Fernando Pessoa de racismo? Ora, de acordo com o historiador José Barreto, Pessoa nunca teve publicamente qualquer atitude racista, nem nunca publicou uma linha de doutrina racista. Na verdade, ao falar em escravatura, Pessoa refere-se “à ‘plebe’, ao operariado moderno, do qual fala quase sempre com desprezo, traumatizado como ficou pelo sindicalismo revolucionário e pelo anarquismo bombista da I República”.
Conclusão, para Fernando Pessoa, os “escravos” eram os “operários em geral.
Sobre a escravatura propriamente dita, Barreto não tem conhecimento de nenhum documento no espólio pessoano que dê a entender que o autor defendia a escravatura, em muitos casos atacando-a, desprezando o racismo dos fascistas e dos nazis ou atacando o trabalho escravo perpetrado pelos ingleses nas minas sul-africanas”.
A ignorância, no entanto, é o maior de todos os males, e se por um lado não posso deixar de defender quem hoje luta contra séculos de opressão, morte, tortura e estupro, por outro nem todos os meios justificam os fins, ainda para mais quando os meios implicam o esquecimento das artes, da literatura, da memória e do conhecimento de quem não teve outra culpa senão a de criar. Receio, no entanto, ser o apelo ao raciocínio, à lógica e à calma uma causa perdida em tempos tão conturbados. Tenhamos esperança, portanto, mas também a certeza de uma outra estátua e um outro Pessoa para nos sentarmos a seu lado quando o mundo acordar.
COMENTÁRIOS
Conta desactivada por violação das regras de conduta: Louvo a intenção do cronista. Mas numa sociedade sensata isto nem deveria ser necessário pois mesmo que Pessoa tivesse escrito coisas racistas isso não diminuiria o seu valor artístico. Numa sociedade sensata -- escrevi eu ... pois, mas o bom senso tem vindo a dar lugar à emoção de um turba anti-racista que, na verdade, é uma turba inimiga do racionalismo, do livre debate de ideias, uma turba totalitária. 16.06.2020
Pedro Trova INICIANTE: Pessoa e Almada são os meus poetas favoritos. Por favor não decapitem a sua estátua. Mas há que dizer a verdade. Os Futuristas portugueses imitavam o inventor do Futurismo: Marinetti, que era fascista e ideólogo principal do regime fascista de Mussolini. O editor da revista Orfeu foi António Ferro, ministro da Propaganda de Salazar. António Ferro deu um cheque ao Pessoa em troca da sua epopeia nacionalista "Mensagem". Houve muitos grandes autores e artistas que se deslumbraram com o fascismo e que depois reconheceram terem-se enganado: Pirandello, Shaw, Knut Hamsun (todos prémios Nobel) Ezra Pound e Louis Ferdinand Céline (que no fim da sua vida disse que escolher entre o fascismo e o comunismo é como escolher entre o cancro e a sífilis). 14.06.2020
Colete Amarelo EXPERIENTE: Na minha análise dos excertos com referências à contextualização de onde foram extraídos, não vislumbro qualquer apologia da colonização ou do racismo. Pessoa é factual. Diz-nos o que é o colonialismo e como funciona. Não o aplaude, nem o condena, antes revela-o friamente, um processo que à luz do naturalismo é lógico e legítimo. O colonialismo serve apenas o colonizador. Quanto à escravatura ele analisa-a num sentido lato: "O amor cobarde que todos temos à liberdade — que, se a tivéssemos, estranharíamos, por nova, repudiando-a — é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão' 12.06.2020
DCM EXPERIENTE. O João é corajoso, provocou muitos estilhaços que lhe causarão um mar de críticas, mas quanto a mim conseguiu sair incólume do campo minado em que se meteu. 12.06.2020


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