…como o magnífico texto de António Barreto, sobre a manipulação não só dos dados
da História como dos objectos provindos de um passado que se supôs de esforço e
glória e que hoje são relegados para o sótão das velharias a desprezar – ou a
devolver – “como se as não tivéramos
merecido”,( tal como aconteceu com o enganado Jacob que teve de servir o velhaco Labão,
pai de Raquel, mais outros sete anos para poder finalmente usufruir dela em
plenitude, por ora trocada por Lia, sua mana, numa clara demonstração de que “chapéus
há muitos”), o magnífico texto de AB,
repito, sobre os “revisores
da História” e seus acólitos, mereceu tantos comentários depreciativos dos
tais revisores, cheios de bons princípios e das ironias com eles condizentes,
mau grado a preocupação dos restantes - a mesma que a de AB - pelo apagamento dos tais libertos da “lei da morte” até hoje, e na sua continuação - do hoje, digo. Leiamos, pois, “l’un et les
autres”, preferencialmente ao som e dança do magnífico “Bolero de Ravel” com que termina o também
magnífico filme de Claude Lelouch “Les
uns et les autres”, do nosso entendimento – ou o seu contrário – actual,
para fortalecermos as nossas respectivas opiniões, sobre os valores da História
e a falta deles, valores, da maioria cá do burgo.
OPINIÃO
Ainda não vimos nada!
Republicanos, corporativistas,
fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se
dedicaram com interesse à revisão selectiva da História, assim como à censura e
à manipulação.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 14 de Junho de 2020
É triste confessar, mas ainda estamos
para ver até onde vão os revisores da História. Uma coisa é certa: com a ajuda
dos movimentos anti-racistas, a colaboração de esquerdistas, a covardia de
tanta gente de bem e o metabolismo habitual dos reaccionários, o movimento de
correcção da História veio para ficar. Serão
anos de destruição de símbolos, de substituição de heróis, de censura
de livros e de demolição de esculturas. Até de rectificação
de monumentos. Além da revisão de programas escolares e da reescrita de
manuais. Tudo, com a consequente censura de livros considerados impróprios,
seguida da substituição por novos livros estimados científicos, objectivos,
democráticos e igualitários. A pujança deste movimento através do
mundo é tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos
censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.
Serão
criadas comissões de correcção, com a missão de rever os manuais de História (e
outras disciplinas sensíveis como o Português, a Literatura, a Geografia, o
Meio Ambiente, as Relações Internacionais…), a fim de expurgar a visão bondosa
do colonialismo, as interpretações glorificadoras dos descobrimentos e os
símbolos de domínio branco, cristão, europeu e capitalista.
Comissões
purificadoras procederão ao inventário das ruas e locais que devem mudar de
nome, porque
glorificam o papel dos colonialistas e dos traficantes de escravos.
Farão ainda o levantamento das obras de arte públicas que prestam homenagem à
política imperialista, assim como aos seus agentes. Já começou, aliás, com a
substituição do Museu dos Descobrimentos pelo Memorial da
Escravatura!
Teremos
autoridades que tudo farão para retirar os objectos antes que as hordas cheguem
e será o máximo de coragem de que serão capazes. Alguns concordarão com o seu
depósito em pavilhões de sucata. Outros ainda deixarão destruir, gesto que
incluirão na pasta de problemas resolvidos. Entretanto, os Centros
Comerciais Colombo e Vasco da Gama esperam pela hora fatal da mudança de nome. Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos
Descobrimentos e dos Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente
mudadas. Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com Albuquerque,
Gama, Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de, evidentemente, o Infante
D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de Camões e Fernando Pessoa
terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos exploradores e dos
negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até mais, pois
forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e imortal.
Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa Pinto, Ivens, Capelo e
Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem esquecer, seguramente,
uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, António de
Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho, Mário Tomé e Vasco Lourenço.
Não
serão esquecidos os cineastas, compositores, pintores, escultores, escritores e
arquitectos que, nas suas obras, elogiaram os colonialistas, cúmplices da
escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e livros serão retirados do
mercado. Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos, frescos e
painéis de todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e ácido.
Outras
comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras de arte e do
património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que se encontram
em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a fim de as remeter prontamente aos países donde são
provenientes.
Os
principais monumentos erectos em homenagem à expansão, a começar pelos
Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados com o cuidado de lhes
retirar os elementos de identidade colonialista. Os memoriais de homenagem aos
mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos a fim de serem transformados
em edifícios de denúncia do racismo. Não há liberdade nem igualdade enquanto
estes símbolos sobreviverem.
Muitos
pensam que a História é feita de progresso e desenvolvimento. De crescimento e
melhoramento. Esperam que se caminhe do preconceito para o rigor. Do mito para
o facto. Da submissão para a liberdade. Infelizmente,
tal não é verdade. Não é
sempre verdade. Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até
democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à
revisão selectiva da História, assim como à censura e à manipulação. E, se
quisermos ir mais longe no tempo, não faltam exemplos. Quando os
revolucionários franceses rebaptizaram a Catedral de Estrasburgo, passando a
designá-la por Templo da Razão, não estavam a aumentar o grau de racionalidade
das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi chamado de Altar da
Liberdade, caminharam alegremente da superstição para o preconceito. E quando
os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab, em São Petersburgo e apelidaram o
edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo, não procuravam certamente a
liberdade e o pluralismo. E também podemos convocar os Iconoclastas de
Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban de Bamiyan que destruíram símbolos,
combateram a religião e tentaram apropriar-se tanto do presente como do
passado.
Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos, políticos,
capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a sociedade, romper
com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores, santos e
revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o poder sobre o
presente tem de destruir o passado.
Muitos
de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era necessário rever os manuais,
repensar os mitos, submeter as crenças à prova do estudo, lutar contra a
proclamação autoritária e defender com todas as forças o debate livre. É
possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava substituir uma ortodoxia
dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era o de confronto de
ideias, de debate permanente e de submissão à crítica pública.
O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos preconceitos.
Não tenhamos ilusões. Se as democracias não souberem resistir a esta espécie de
vaga que se denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em
novas eras obscurantistas.
Sociólogo
TÓPICOS
COMENTÁRIOS:
TML
INICIANTE: chamar
"denegrir" o passado a questionar os mitos é um bocado exagerado, não
acha? Quem denigre o passado? Os que violaram e cometeram atrocidades em nome
da Fé e do Império, ou os que hoje estudam e falam sobre esses assuntos? Não se
pode "culpabilizar" a História e criar uns mitos de que foi tudo mau,
de acordo. Mas "glorificá-la" e criar uns mitos de que foi tudo bom
já se pode e é recomendado?
fernando
ferreira franco INICIANTE: Meu caro António Barreto, o que faz a
história são os actos, não a ideologia dos actos. O que algumas obras de arte
colocam na memória colectiva é a destruição de sociedades distintas, de
culturas únicas e de ecossistemas fundados no respeito pela natureza. Desta
forma, a destruição contra a qual hoje se eleva, não é distinta da que sofreram
os colonizados, às mãos dos que defendiam uma cultura do saque e que deu azo à
revisão da história, revisão sim!, forjada pelo interesse económico e que o
senhor quer perpetuar e manter. Saiba pois que as ideologias são perecíveis e
ainda bem, pois o que seria da democracia se um miserável legado histórico a
impedisse de ser justa. Convenhamos que nem a natureza tem esse perfil eterno
das coisas, o tempo também degrada as obras de arte.
mpro
EXPERIENTE: Penso que António Barreto não quererá perceber a diferença,
Fernando. Ele, como tantos outros, vivem bem com todos os actos praticados
pelos países na sua construção, dado que a evolução humanista, deve ser
condicionada aos interesses da ordem estabelecida e da qual faz parte. As
estátuas e, monumentos, devem estar em museus e locais onde possam ser
discutidas e valorados, mas não servir de culto ao cidadão, sem uma perspectiva
de enquadramento, social e político da altura.
AndradeQB
MODERADOR: Há quem gostasse de que ainda hoje houvesse sacrifícios humanos
ao deus sol. Gostos.
AndradeQB
MODERADOR: De facto, uma pandemia para que não é possível descobrir vacina
e em que a protecção de grupo é bem mais incerta do que a que se espera vir a
acontecer contra o Covid.
Francisco
Lemos INICIANTE: Excelente texto que convoca todos os não
fundamentalistas, a larga maioria, a não se deixar instrumentalizar e resistir
pela persuasão e pela acção, se necessário, aos novos inquisidores do século
XXI.
Macuti EXPERIENTE: Uma afronta aos “ heróis do mar, nobre povo e nação
valente”. Mas que nação é esta que denigre o seu passado? Qual a motivação para
o que está a acontecer, que só faz aumentar tensões raciais? Voltar a condenar
o colonialismo que terminou há quase cinco décadas? Ou a escravatura quando era
praticada por brancos e hoje quase só existe em países africanos?
Francisco Lemos INICIANTE: Excelente texto que convoca todos os não fundamentalistas, a larga maioria,
a não se deixar instrumentalizar e resistir pela persuasão e pela acção, se
necessário, aos novos inquisidores do século XXI.
Margarida Paredes, defensora do Serviço Nacional de
Saúde MODERADOR: António
Barreto, não era necessário descer ao nível das caixas de comentários.
rafael.guerra
EXPERIENTE: Só
nos resta o suicídio colectivo, como solução definitiva, para apagar da
História colonial todos os seus descendentes.
Amigo
da verdade INICIANTE: Espero que as "previsões" exageradas de
António Barreto sejam apenas retóricas, como certamente espera também o autor do
artigo, e nunca se concretizem. Mas seria bom que, ao menos, neste país se
parasse de erigir monumentos aos "heróis do Ultramar", que mais não
foram do que o braço armado do fascismo-colonialismo e em nome deste andaram,
em guerras injustas nas colónias, a lutar contra guerrilheiros que apenas
queriam a autodeterminação dos seus povos.
Margarida
Paredes, defensora do Serviço Nacional de Saúde MODERADOR: Não
é só retórica, e se fosse é disparatada. O movimento de Descolonização defende
que os museus façam uma análise crítica do passado colonial e isso significa
que a estatuária e objectos continuarão em exposição, mas contextualizados. O
que é glorioso para a história colonial, do ponto de vista do
"outro", do africano significou uma tragédia.
Mário
Areias INICIANTE: o problema é que uma posição extrema provoca sempre
outra também extrema. Quando essa outra chegar veremos muitos destes
revolucionários de pacotilha negarem 3 vezes que eles nunca tiveram nada a ver
com o assunto.
Fowler
Fowler INICIANTE: Não se preocupem com o derrube e conspurcamento das
estátuas. Logo, logo, o historiador Rui Ramos tratará de as reerguer e branquear.
Como diria Salazar em horas de aperto: “Hora a hora, Deus melhora!”. E o outro,
depois do adeus: “É só fumaça! O povo é sereno!”. Afinal, tanta conversa para
nada!
António
Borga INICIANTE: A propósito de estátuas: "Do rio que tudo arrasta
se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o
comprimem" (Bertold Brecht "Sobre a Violência")
Macuti:
EXPERIENTE: O
título diz tudo: Ainda não vimos nada. O caso Floyd foi apenas o rastilho para
uma campanha contra as democracias liberais, que permitem desmandos, e contra o
branco que colonizou e escravizou. Há ditaduras, hoje potências, que nunca
colonizaram e que estão interessadas nesta agitação social. Ainda não vimos
nada. Esta agitação também serve independências falhadas que têm e terão sempre
a colonização como bode expiatório.
Fowler
Fowler INICIANTE: Assim falou o vidente galardoado com as maiores
insígnias do Estado. Também merece uma estátua! Mesmo que depois venha a ser
derrubada pela turbamulta libertadora que ele abomina.
Nenhum comentário:
Postar um comentário