No mesmo “PÚBLICO” em que a crónica de João Miguel Tavares – “Dinheiro fresco para os velhos vampiros” - desvenda
segredos da imutabilidade do nosso ADN luso, na questão de dinheiros
estrangeiros desenrascantes, nestes tempos de covid-19, iguais aos dos
anteriores enrascanços, exigentes da mesma pecúnia compincha, aqueles destinados a “alimento fresco para os velhos vampiros”,
segundo designação do cronista, o artigo seguinte de Teresa Sofia Serafim traz-nos o
prazer de uma leitura que nos leva muito atrás no tempo, revelando imagens
benéficas de potes e pergaminhos e grutas, como desafio para uma outra
curiosidade mais recuada e menos amarfanhante nas trevas dos nossos hábitos
comportamentais. Leiamos, pois.
Genética
desvenda (alguns) mistérios dos Manuscritos do Mar Morto
Análises a ADN antigo em fragmentos
dos Manuscritos do Mar Morto revelaram que muitos deles eram feitos de pele de
ovelha.
PÚBLICO, 6 de
Junho de 2020
Há
mais de 70 anos começaram a ser encontrados fragmentos dos Manuscritos
do Mar Morto, que
incluem as versões mais antigas da Bíblia hebraica ou outros textos apócrifos. Juntamente com esta grande descoberta veio o enorme desafio
de encaixar esses fragmentos como se os manuscritos fossem um puzzle. Para
conseguir encaixar mais algumas peças, uma equipa internacional de cientistas
analisou as “impressões digitais” das peles de animais em que os manuscritos
foram escritos. Num a rtigo publicado esta semana na revista científica Cell,
revela-se que a maioria dos fragmentos dos pergaminhos analisada era feita de
pele de ovelha. Levantou-se ainda o véu de outros mistérios sobre a
origem destes pergaminhos.
Até
agora, já se encontraram mais de 25 mil fragmentos dos Manuscritos do
Mar Morto. Estes fragmentos
com mais de 2000 anos foram sobretudo descobertos
entre 1947 e 1956 dentro de potes escondidos em 11 grutas em Qumran,
junto ao mar Morto, no deserto da Judeia.
Também foram encontrados outros pergaminhos desta colecção noutras
localizações, como Massada e Nahal Hever (também no deserto da Judeia). Há
académicos que defendem que foram elaborados pelos essénios, uma seita
judaica esotérica e ascética. Existem ainda alguns especialistas que referem
que terão tido diferentes autores.
Durante
os primeiros 40 anos depois da sua descoberta, a análise destes fragmentos
esteve concentrada em menos de uma dúzia de estudiosos, o que fez com que não
fosse possível uma rápida publicação destes manuscritos. No início dos anos
90, a Autoridade de Antiguidades de Israel adoptou novas medidas para que se
avançasse com a publicação dos Manuscritos do Mar Morto. Essa publicação envolveu
cerca de 100 estudiosos de todo o mundo e teve como director Emanuel
Tov, professor no Departamento da Bíblia na Universidade Hebraica de Jerusalém.
Em 2001, a maioria das edições oficiais desse projecto foram publicadas
e enviadas para bibliotecas de instituições académicas. Anos mais tarde, em
parceria com a Google, a Autoridade de Antiguidades de Israel disponibilizou online alguns fragmentos
dos manuscritos.
“Poeira” raspada
Há
muitos mistérios que envolvem estes manuscritos. Desde a sua descoberta que especialistas têm tentado
encaixar vários dos seus fragmentos, mas tal tarefa tem-se revelado um puzzle complexo.
“A descoberta dos Manuscritos do
Mar Morto é uma das descobertas arqueológicas mais importantes
alguma vez feitas”, considera em comunicado Oded Rechavi, biólogo molecular
da Universidade de Telavive (em Israel) e um dos autores do artigo. “Contudo,
coloca-nos dois grandes desafios.”
Um dos desafios deve-se precisamente ao facto de os manuscritos terem
sido encontrados em fragmentos e agora esses terem de ser encaixados como se
fossem um puzzle (mas com peças em falta) sem se saber como o texto original
devia ser lido. “Dependendo
da classificação de cada fragmento, a interpretação de um dado texto pode mudar
drasticamente”, alerta Oded Rechavi. O outro desafio está
relacionado com o facto de muitos manuscritos não terem sido obtidos
directamente das grutas de Qumran, mas terem sido conseguidos através de negociantes
de antiguidades. Portanto, isto faz com que não seja claro saber de onde os
fragmentos vieram exactamente e dificulta a tarefa de os juntar e lhes atribuir
um contexto histórico.
Para
contornar estas dificuldades, tem-se tentado saber mais sobre os fragmentos
manuscritos através das suas propriedades biológicas. Como os fragmentos são muito frágeis, a equipa
analisou amostras minúsculas de “poeira” raspada da parte detrás dos
manuscritos fornecidas pela Autoridade de Antiguidades de Israel. A partir dessas
amostras sequenciou-se ADN antigo da pele de animais usada nos manuscritos. Não
foi uma tarefa fácil, porque esse ADN já estava muito degradado e
contaminado por ADN humano.
Mesmo
assim, o ADN antigo revelou que 24
dos 26 fragmentos
dos pergaminhos analisados eram feitos de pele de ovelha (Ovis aries) e dois
deles eram feitos de couro de um bovino domesticado (Bos
taurus). Os investigadores relacionaram assim que fragmentos
compostos da pele da mesma ovelha deveriam encaixar-se, excluindo a pele de
ovelhas diferentes ou de outras espécies de animais.
Ao
escrutinar a linguagem de dois fragmentos que encaixavam, a equipa acabou por
se surpreender: um dos pedaços era feito de pele de ovelha e outro de bovino.
Contudo, esses fragmentos representavam o Livro de Jeremias (um dos mais antigos dos manuscritos) e, na
altura em que esse livro foi redigido, não eram criados bovinos no deserto da
Judeia nem há provas de que aí se fizesse processamento de couro. O que teria
acontecido? A equipa sugere que
esses dois fragmentos pertencem não só a diferentes manuscritos como também a
diferentes versões deste livro que foram escritas em locais diferentes e que
circulavam em paralelo.
Também
se analisaram diferentes cópias do manuscrito dos Cânticos do
Sacrifício do Sabat encontrados
em Qumran e Massada. Verificou-se que as cópias encontradas em Qumran estão
estreitamente relacionadas a nível genético e eram distintas das cópias
de Massada. Esta descoberta sugere que este manuscrito já circulava muito na
altura por diferentes sítios.
A
equipa verificou ainda que havia fragmentos que tinham uma origem
incerta e que, provavelmente, não eram provenientes das grutas de Qumran.
Por exemplo, o ADN de uma cópia do Livro de Isaías sugere que seria, de facto, originário de outro
local. Desta forma, especula-se que poderá existir um local onde estejam
mais fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto ainda por descobrir.
Manuscritos falam por si
“A
nossa investigação possibilitou-nos iluminar com uma nova luz muitos mistérios
antigos permitindo, que a materialidade dos manuscritos falasse por si mesma –
e surpreendentemente disse-nos muito”, considera Noam Mizrahi, professor de
estudos bíblicos da Universidade de Telavive e um dos autores do trabalho,
citado pelo site da CNN. O investigador adianta que não ficará por aqui: “Cada
um dos fragmentos possui os seus próprios mistérios, e planeamos investigar
muitas mais amostras que poderão ajudar a esclarecer várias questões
enigmáticas.”
Quanto
às lições que tira deste trabalho, Noam Mizrahi explicou ao jornal El
País: “O judaísmo contemporâneo caracteriza-se por uma uniformidade textual
da Bíblia hebraica, o que quer dizer que cada cópia (seja escrita à mão ou
impressa) de qualquer livro bíblico, em qualquer parte do mundo, é praticamente
idêntica quase letra a letra”. Já nos manuscritos agora analisados, acrescenta,
encontraram-se textos diferentes do mesmo livro. “A sociedade do Judaísmo do
Segundo Templo [judaísmo situado entre a construção do Segundo Templo em
Jerusalém por volta de 515 a.C. e a sua destruição pelo romanos no ano 70 d.C.]
foi muito mais plural e multifacetada do que muitos tendem a pensar”,
considera.
Nem todos concordam que este estudo
traga grandes novidades. Ira Rabin,
especialista nos Manuscritos do Mar Morto do Instituto Federal para a
Investigação e Teste de Materiais (na Alemanha) e que não fez parte do
trabalho, afirmou ao jornal The Guardian que esta investigação não revela
novos detalhes e que já se sabia que alguns dos manuscritos não eram
provenientes de Qumran. “[Geralmente] não é preciso ADN para se ver se
um fragmento é de bovino ou de ovelha”, considerou, referindo que outros
estudos até nem tinham detectado vestígios de pele de ovelha. Os autores do novo
trabalho justificam isso devido às limitações nas técnicas de ADN antigo e os
diferentes fragmentos usados nos estudos anteriores.
Já
Matthew Collins, professor da Bíblia hebraica na Universidade de Chester (em
Inglaterra) e que também não participou no estudo, considera que a análise
das relações genéticas entre as peles dos diferentes fragmentos pode permitir
identificar a origem dos manuscritos.
Mesmo assim, avisa: “É importante lembrar que esta sequenciação de ADN
apenas nos mostra a proveniência do pergaminho e não o local onde os
manuscritos foram escritos.”
Oded
Rechavi realça precisamente que este estudo “revela apenas parte do retrato e
não resolve todos os mistérios”. Por isso, pretende-se obter e analisar mais amostras para que se possa ter um
“genoma” mais completo dos Manuscritos do Mar Morto. Afinal, a equipa acha que
pode aplicar o mesmo método agora usado a outros artefactos com ADN intacto
suficiente ou com moléculas biológicas que o permitam fazer.
“Embora tenhamos tido a sorte de ter um número
significativo de amostras da Autoridade de Antiguidades de Israel, elas são
apenas uma fracção do número total dos cerca de 25 mil fragmentos, que se pensa
fazerem parte de cerca de 930 diferentes manuscritos”, refere ao PÚBLICO Oded
Rechavi. “Milhares desses fragmentos ainda não se conseguiram identificar com
fiabilidade ou enquadrar nos manuscritos a que se pensa que pertencem. Resolver
este tipo de mistérios poderá ser um grande desiderato para futuras fases desta
investigação.” As suas intenções não terminam nos Manuscritos do Mar Morto.
O biólogo molecular espera conseguir usar as ferramentas científicas deste
trabalho para resolver mistérios de outros manuscritos.
COMENTÁRIOS
Sima Qian, INFLUENTE: Num templo ortodoxo que visitei há dois anos na Etiópia
havia um livro sagrado bem volumoso todo feito de pele de ovelha. O que anotei
foi o facto de cada página corresponder a pele de uma ovelha. 07.06.2020
rafael.guerra EXPERIENTE: O maior mistério é como esses manuscritos e o velho
testamento deram origem a religiões que foram seguidas cegamente por centenas
de milhões de humanos. De acordo com Christopher Hitchens, o velho
testamento contém um mandato para o tráfico de seres humanos, compra de noivas,
escravidão, limpeza étnica e massacre indiscriminado. Mas acrescenta que
não estamos vinculados a nada disso porque os textos foram elaborados por
mamíferos humanos, brutos e sem cultura. 06.06.2020
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