Um vírus esclarecedor de tantos mais males de que se
não tem falado, embora se desconfiasse.
I – OPINIÃO - O suicídio indiano
O lockdow indiano mostrou ser
uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra
trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal.
AMIT SINGH - Artigo traduzido para português por PEDRO
RIBEIRO DA SILVA
PÚBLICO, 8 de Junho de 2020, 5:20
Actualmente, cadáveres estão
espalhados por toda a Índia – maioritariamente trabalhadores e trabalhadoras
imigrantes e pobres. Depois de
dois meses de lockdown, enquanto desesperadamente tentaram voltar às suas
casas, morreram de exaustão, fome, ataque cardíaco, acidentes de viação, entre
outras causas. As suas vidas, vidas expostas cruamente, não são dignas nem de
luto nem de ajuda – ao menos para o Governo e a classe média alta, que se
referem a eles (junto dos muçulmanos) como propagadores do coronavírus na
Índia. A maioria de trabalhadores e trabalhadoras migrantes
ficou desempregada desde o lockdown nacional imposto há dois meses,
desencadeando o maior movimento de migração intranacional visto na Índia desde
1947.
Enquanto
o lockdown é estendido até 31 de Maio, surge nas redes sociais a hashtag #MigrantLivesMatter,
propondo-se chamar a atenção para a crise humanitária que atravessa o país.
Vídeos circulam na Internet mostrando o sofrimento desses trabalhadores. Num
deles, vê-se uma criança tentando acordar a sua mãe já morta numa estação de
comboio. A mulher era uma entre as trabalhadoras migrantes que chegaram até
Muzaffarpur num comboio especial para trabalhadores, que
partiu de Ahmedabad. Ela morreu devido ao calor, à fome e à exaustão,
ainda a bordo do comboio, no dia 25 de Maio. Devido à inexistência de água e
comida a bordo e longos atrasos (que chegam a atingir 40 horas) muitos podem
estar, neste momento, a morrer nesses comboios.
Subitamente,
o primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu, impôs um lockdown no dia 2 de
Março, que se estendeu à totalidade da população indiana – foi feito sem
planeamento ou consulta popular, em apenas quatro horas. Esse caos organizado
governamental levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo
desigualdades já existentes e a exclusão da população marginalizada da
sociedade indiana.
Os mais atingidos pelo lockdown são a
população mais pobre do país – migrantes temporários, cujo número se estima em
mais de 100 milhões. Dias após o anúncio do lockdown, surgiram crónicas perturbadoras
sobre a morte de migrantes, que morriam de fome, fadiga, acidentes, enquanto
tentavam viajar – alguns percorrendo mais de 1000 quilómetros percorridos a pé
– das cidades até às aldeias de origem.
Os terminais de autocarro no interior
das cidades e nas fronteiras entre estados tornaram-se lugares de violentos
confrontos entre migrantes e a polícia – esta recorria à violência brutal, espancando migrantes por violarem as regras do lockdown. A quantidade de violência estatal feita em
nome da protecção do povo contra o povo é simplesmente ridícula, bizarra e
inaceitável – seja por que critério for. Sataria
Hembrom, de 31 anos, caminhou 1800 quilómetros até à sua aldeia em Chaibasa,
tendo partido de Bombaim com mais seis pessoas. Dezasseis trabalhadores
migrantes foram atropelados enquanto dormiam nos carris do comboio perto de
Aurangabad. Muitos migrantes têm usado os carris como forma de regressar aos
seus lares, através do duro Verão indiano.
Foi reportada a morte de mais de 300
pessoas directamente relacionadas com o lockdown: mortes causadas pela fome,
pela dificuldade financeira, pela exaustão, pela violência policial, pela falta
de atendimento médico. Há relatórios que informam a morte de 338 pessoas entre
19 de Março e 2 de Maio, todas relacionadas com o lockdown.
No dia 9 de Maio, a polícia recorreu
à violência contra centenas de migrantes, enquanto estes circulavam pelas ruas
do distrito de Surat, em Gujarat, exigindo condições para voltarem às suas
casas ou emprego para sobreviverem. Mais de 100 trabalhadores foram detidos. É
interessante notar que muitos estados tentaram impedir os trabalhadores que
voltassem às suas casas. O governo de Karnataka retirou o pedido de comboios
especiais, pois imaginaram que isso geraria escassez de mão-de-obra no estado.
Muitos estados indianos, como Uttar
Pradesh, Madhya Pradesh e Gujarat, avançaram com emendas à lei do trabalho,
aumentando as horas de trabalho diárias de oito para 12. Isso significa a
destruição dos direitos básicos dos trabalhadores. A Organização Internacional do Trabalho expressou
“profundas preocupações” em relação às mudanças, fundamentalmente opostas aos
direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes. De acordo com o
economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, a Índia gasta apenas 1% de seu PIB em
medidas de combate ao coronavírus – o que mostra que o Governo não está a fazer
o suficiente.
Enquanto cresce o número de infectados,
também cresce a miséria dos migrantes. O caso indiano faz-nos pôr em questão a
efectividade de estados “democráticos” na protecção dos direitos dos
marginalizados e vulneráveis em tempo de crise. O lockdow indiano mostrou ser
uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio
contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal. Mesmo que
milhões de migrantes ainda participem nos destinos do Estado indiano, o nível
de violência mostra que, na verdade, foram excluídos do sistema político –
expulsos para os lugares da indiferença e da abjecção.
No
momento em que termino este artigo, muitos mais trabalhadores migrantes morrem
em lugares remotos, e muitas dessas mortes serão noticiadas pela imprensa
tradicional. Os pobres são forçados a acabar com a própria vida, da forma mais
desumana. O primeiro-ministro, Narendra Modi, deve ser responsabilizado por
esses suicídios. A crise da covid-19 é uma dádiva para líderes autoritários,
permitindo-lhes brincar com a vida humana, em plena imunidade. A escritora Arundhati Roy disse: “Precisamos dos julgamentos da covid. Num
tribunal internacional”. Eu concordo – definitivamente.
TÓPICOS
OPINIÃO
CORONAVÍRUS
II - Coronavírus, migrantes e a Índia de Modi
Quase 70% da população indiana vive
com menos de dois dólares por dia. Como sobreviverão nesta pandemia? Um
trabalhador disse, e com toda a razão: a fome nos matará antes do coronavírus.
AMIT SINGH, Artigo traduzido para português por PEDRO RIBEIRO DA SILVA
PÚBLICO,13 de Abril de 2020
Estamos
condenados a viver no presente. Não há escapatória. Alguns estão mais bem preparados que outros para
enfrentar a crise do
coronavírus. Para uma minoria, ela pode significar uma longa
temporada sabática, com o luxo do ócio destinado à reflexão e ao fortalecimento
de laços familiares; mas para milhões dos desprivilegiados do Sul Global, a
actual crise significa uma lenta morte. O coronavírus coloca em risco
pessoas cujas condições de vida já eram terríveis, sem acesso a saneamento
básico e higiene – trabalhadores e trabalhadoras emigrantes, informais, explorados na Índia. Vivendo em favelas
superpovoadas, de acesso limitado à saúde e sem a possibilidade prática de
realizar medidas de distanciamento físico e social, esses grupos são
extremamente vulneráveis ao vírus. Com este pano de fundo, o que vemos
hoje na Índia é o primeiro-ministro, Narendra Modi, zombar e fazer descaso dos direitos e vidas de
milhões de pessoas pobres.
No
dia 24 de Março, o Governo
ordenou como medida preventiva contra a pandemia uma quarentena nacional de 21 dias, limitando o movimento à totalidade das 1,3 mil
milhões de pessoas que compõe a população da Índia. Sem
nenhum plano adequado, sem o acompanhamento de medidas de auxílio. A quarentena,
implementada subitamente, afectou desproporcionalmente a classe trabalhadora
pobre indiana, especialmente os milhares de trabalhadores e trabalhadoras
migrantes e informais, que se encontraram então sem trabalho, sem recursos e
longe de suas famílias e lares.
Ranveer
Singh trabalhava como entregador para um restaurante na capital indiana de Nova
Deli quando o Governo deu a todos o aviso de que, em quatro horas, a quarentena
nacional passaria a ser policialmente reforçada. Singh, sem outras opções, voltou à sua casa num vilarejo no
distrito de Morena, localizado a quase 320 quilómetros de onde se encontrava.
Com as linhas de transporte fechadas, decidiu-se por ir a pé. O homem, com 39
anos e pai de três, conseguiu chegar até Agra, a cerca de 200 quilómetros a sul
da capital, onde colapsou e morreu de um ataque cardíaco causado pela
exaustão.
Singh é apenas uma das dezenas de pessoas que pereceram a
meio das longas jornadas de volta a casa depois da imposição súbita da
quarentena, que não permitiu que ninguém se preparasse. Milhões de trabalhadores e trabalhadoras migrantes
na Índia foram deixados sem comida ou abrigo quando Modi fez seu decreto.
Nos arredores da cidade de Hyderabad, sete
trabalhadores migrantes e um bebé com apenas 18 meses foram mortos num acidente
rodoviário. Um grupo de quatro trabalhadores migrantes que partiam da cidade de
Vasai em direcção ao vilarejo de Rajasthan morreram atropelados por um camião
depois de terem sido forçados a retornar a Vasai por ordem policial.
Deve-se notar que quase 90% da força
de trabalho na Índia está na informalidade, sem acesso a férias pagas,
segurança social ou saúde. A maioria dos 470 milhões de trabalhadores e
trabalhadoras precárias do país vivem em cortiços; para eles, o distanciamento
social é impossível. Na Índia, além disso, onde divisões por casta e religião
são ainda efectivas e profundas, osDalit (a mais baixa casta no sistema de
castas indiano) e as comunidades muçulmanas são os grupos mais oprimidos,
tratados muitas vezes com incrível violência e discriminação. De modo a garantir o cumprimento da
quarentena, a polícia foi autorizada a actos de extrema violência, usando um
misto de humilhação e força para disciplinar quem se encontrava fora de suas
casas, até mesmo contra indivíduos que iam a caminho do trabalho em áreas
essenciais, ou à farmácia e ao supermercado.
Além
disso, essa quarentena mal planeada afectou gravemente a resposta possível do
sistema de saúde indiano; trabalhadores e trabalhadoras da área ficaram
impossibilitados de ir ao trabalho, a ausência de linhas de transporte
impossibilitou a distribuição de testes e outros equipamentos para os
hospitais. Nos últimos dias, diversas notícias e testemunhos dos trabalhadores
e trabalhadoras da saúde descreviam com sombrios detalhes a ausência de
qualquer preparação para o enfrentamento da mais grave crise dos nossos tempos.
As equipas médicas estão a arriscar a própria vida ao tratar doentes infectados
sem ter equipamentos adequados de protecção. A resposta incompetente do Governo
de Modi complicou já difíceis problemas, aprofundando-os.
No
dia 5 de Abril, a polícia de Ludhiana
registou uma queixa contra um homem, acusando-o de sedição depois de este,
alegadamente, ter publicado nas suas redes sociais que “não havia ventiladores
em Ludhiana para o tratamento dos doentes”. No distrito de Banda, no Estado de Utter Pradesh, equipas de saúde foram ameaçadas quando reclamaram
da escassez de material médico. Os seus salários foram reduzidos à
metade e o Governo ameaçou-os de demissão.
Os
gastos públicos com saúde representam, na Índia, apenas 1% do PIB, estando
muito abaixo da média mundial. A
infra-estrutura de saúde pública está em ruínas. O sector de saúde
privado é quase completamente “auto-regulado” e, por isso, inacessível à vasta
maioria da população. Enquanto a maioria dos indianos ricos e de classe
média conseguirão subsistir às três semanas de quarentena, os pobres do país e
o enorme número de trabalhadores e trabalhadoras migrantes, transientes, terão
dificuldades em sobreviver.
De
acordo com Ramanan Laxminarayan, vice-presidente do Research and Policies no
PHFI (Public Health Foundation of India), entre 300 a 500 milhões de indianos
podem ser infectados até o fim de Julho. Isto é preocupando. Até 10 de Abril, o número de infectados e infectadas
era de 7598, e a subir. Agora, a mais importante questão é:
como conseguirão estas pessoas trabalho após o fim da quarentena? Não
podemos esquecer-nos que é provável que haja uma extensão da quarentena.
68,8%
da população indiana vive com menos de $2 por dia. Mais de 30% vive com
ainda menos, cerca $1,25 diários. A maioria destas pessoas são
diaristas – ou seja, recebem por dia. Como
sobreviverão ao mundo nesta pandemia? Um trabalhador disse, e com toda a razão: a fome nos matará antes do coronavírus.
TÓPICOS
III - OPINIÃO CORONAVÍRUS
Narenda Modi e
António Costa: um tango perigoso em tempos de covid-19
É desconcertante que esta aproximação
com Portugal esteja a acontecer quando direitos democráticos estão a ser cada
vez mais suprimidos na Índia e a sua imagem como democracia liberal tem vindo a
ficar comprometida.
JASON KEITH FERNANDES
PÚBLICO, 19 de Maio de 2020,
Fiquei
incrédulo perante o tweet do primeiro-ministro, António Costa, publicado a 5 de maio: “Tive hoje uma excelente
conversa telefónica com Narendra Modi a quem felicitei pelos bons resultados
alcançados na contenção da pandemia num país tão grande e populoso como a
#Índia.
Ao
contrário do que sugere este tweet, Narendra Modi, em vez de conter efectivamente a pandemia e
minimizar o desconforto dos cidadãos, escolheu com as suas decisões ignorar a
provisão de serviços essenciais, reforçar o nacionalismo Hindu num país
multicultural e afirmar o poder bruto do Estado. Em suma, estragou a resposta Indiana à pandemia
causando muitas mortes evitáveis.
Veja-se
que, logo que o governo Indiano se apercebeu que estávamos perante uma pandemia, no
dia 22 de março, a resposta de Modi foi declarar um recolher obrigatório de
catorze horas – das sete da manhã às nove da noite – em todo o país (Janata
curfew). O curfew foi um grande sucesso, pelo menos nas zonas
urbanas em que criou uma paralisação total do país. No entanto, às 17 horas do
mesmo dia em que foi implementado, testemunhou-se o pandemónio completo quando
cidadãos indianos saíram das suas casas formando procissões, batendo palmas,
utensílios de cozinha e tocando sinos – supostamente como forma da agradecer
aos funcionários públicos que prestam serviços essenciais.
Acções, talvez não coincidentemente,
muito parecidas com os rituais que segundo as crenças Hindus expulsam demónios.
Resultado da forma como Narendra Modi abordou o país, escolhendo apelar a
sentimentos nacionalistas e religiosos ao invés de explicar a lógica do
confinamento no combate ao vírus. As primeiras medidas de confinamento
resultaram, então, em eventos que paradoxalmente poderão ter ajudado à propagação do vírus.
COMENTÁRIOS
Colete Amarelo EXPERIENTE: Eu penso que para Costa é um imperativo a aproximação com a India. Infelizmente este imperativo coincide com uma India presidida por Modi. Deve isso refrear o nosso Primeiro, sabendo-se qual é a sua ascendência?
Colete Amarelo EXPERIENTE: Eu penso que para Costa é um imperativo a aproximação com a India. Infelizmente este imperativo coincide com uma India presidida por Modi. Deve isso refrear o nosso Primeiro, sabendo-se qual é a sua ascendência?
viana
EXPERIENTE: A
Índia é o pais que está mais próximo de replicar o que aconteceu nos anos 30 do
século passado na Alemanha. Está lá tudo: um governo que incentiva a xenofobia,
assinalando uma minoria como sub-humana (os muçulmanos); um líder carismático
que fará o que for necessário para se manter no Poder; uma situação económica a
degradar-se rapidamente; vários "inimigos externos" a quem apontar o
dedo, em particular o Paquistão, e fronteiras contestadas em comum com eles. Muito
preocupante. Sobre a posição do governo de Portugal, o Magritte já disse tudo.
Magritte
EXPERIENTE: Portugal
usa a sua posição relativa para lavar a imagem internacional de gente pouco
recomendável. Todos os Estados o fazem, dirão, e é verdade, mas há certas
linhas/áreas por onde o Estado português não deveria andar. Este tipo de
elogios é uma delas, como o autor defende e muito bem. Sabemos que a hipocrisia
é a moeda corrente dos assuntos internacionais, e enquanto as prioridades de
acumulação não forem substituídas pelos ideais democráticos, não há política
externa que não se vergue aos interesses financeiros e comerciais. Cabe-nos a
todos ter consciência disso e confrontar os nossos governantes: aqui a
comunicação social devia tomar a liderança. Perguntem a Costa, directamente, alguns
dos pontos aqui colocados.
ana
cristina MODERADOR: Terrível! Não aprendemos a lição com o caso de Angola?
Não dá boa coisa apoiar ditaduras. O António Costa não pode alegar que não
sabia. 19.05.2020
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