terça-feira, 9 de junho de 2020

“TERRA É DE CALECU”



Um vírus esclarecedor de tantos mais males de que se não tem falado, embora se desconfiasse.
IOPINIÃO - O suicídio indiano
O lockdow  indiano mostrou ser uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal.
AMIT SINGH    - Artigo traduzido para português por PEDRO RIBEIRO DA SILVA
PÚBLICO, 8 de Junho de 2020, 5:20
Actualmente, cadáveres estão espalhados por toda a Índia – maioritariamente trabalhadores e trabalhadoras imigrantes e pobres. Depois de dois meses de lockdown, enquanto desesperadamente tentaram voltar às suas casas, morreram de exaustão, fome, ataque cardíaco, acidentes de viação, entre outras causas. As suas vidas, vidas expostas cruamente, não são dignas nem de luto nem de ajuda – ao menos para o Governo e a classe média alta, que se referem a eles (junto dos muçulmanos) como propagadores do coronavírus na Índia. A maioria de trabalhadores e trabalhadoras migrantes ficou desempregada desde o lockdown nacional imposto há dois meses, desencadeando o maior movimento de migração intranacional visto na Índia desde 1947.
Enquanto o lockdown é estendido até 31 de Maio, surge nas redes sociais a hashtag #MigrantLivesMatter, propondo-se chamar a atenção para a crise humanitária que atravessa o país. Vídeos circulam na Internet mostrando o sofrimento desses trabalhadores. Num deles, vê-se uma criança tentando acordar a sua mãe já morta numa estação de comboio. A mulher era uma entre as trabalhadoras migrantes que chegaram até Muzaffarpur num comboio especial para trabalhadores, que partiu de Ahmedabad. Ela morreu devido ao calor, à fome e à exaustão, ainda a bordo do comboio, no dia 25 de Maio. Devido à inexistência de água e comida a bordo e longos atrasos (que chegam a atingir 40 horas) muitos podem estar, neste momento, a morrer nesses comboios.
Subitamente, o primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu, impôs um lockdown no dia 2 de Março, que se estendeu à totalidade da população indiana – foi feito sem planeamento ou consulta popular, em apenas quatro horas. Esse caos organizado governamental levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e a exclusão da população marginalizada da sociedade indiana.
Os mais atingidos pelo lockdown são a população mais pobre do país – migrantes temporários, cujo número se estima em mais de 100 milhões. Dias após o anúncio do lockdown, surgiram crónicas perturbadoras sobre a morte de migrantes, que morriam de fome, fadiga, acidentes, enquanto tentavam viajar – alguns percorrendo mais de 1000 quilómetros percorridos a pé – das cidades até às aldeias de origem.
Os terminais de autocarro no interior das cidades e nas fronteiras entre estados tornaram-se lugares de violentos confrontos entre migrantes e a polícia – esta recorria à violência brutal, espancando migrantes por violarem as regras do lockdown. A quantidade de violência estatal feita em nome da protecção do povo contra o povo é simplesmente ridícula, bizarra e inaceitável – seja por que critério for. Sataria Hembrom, de 31 anos, caminhou 1800 quilómetros até à sua aldeia em Chaibasa, tendo partido de Bombaim com mais seis pessoas. Dezasseis trabalhadores migrantes foram atropelados enquanto dormiam nos carris do comboio perto de Aurangabad. Muitos migrantes têm usado os carris como forma de regressar aos seus lares, através do duro Verão indiano.
Foi reportada a morte de mais de 300 pessoas directamente relacionadas com o lockdown: mortes causadas pela fome, pela dificuldade financeira, pela exaustão, pela violência policial, pela falta de atendimento médico. Há relatórios que informam a morte de 338 pessoas entre 19 de Março e 2 de Maio, todas relacionadas com o lockdown.
No dia 9 de Maio, a polícia recorreu à violência contra centenas de migrantes, enquanto estes circulavam pelas ruas do distrito de Surat, em Gujarat, exigindo condições para voltarem às suas casas ou emprego para sobreviverem. Mais de 100 trabalhadores foram detidos. É interessante notar que muitos estados tentaram impedir os trabalhadores que voltassem às suas casas. O governo de Karnataka retirou o pedido de comboios especiais, pois imaginaram que isso geraria escassez de mão-de-obra no estado.
Muitos estados indianos, como Uttar Pradesh, Madhya Pradesh e Gujarat, avançaram com emendas à lei do trabalho, aumentando as horas de trabalho diárias de oito para 12. Isso significa a destruição dos direitos básicos dos trabalhadores. A Organização Internacional do Trabalho expressou “profundas preocupações” em relação às mudanças, fundamentalmente opostas aos direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes. De acordo com o economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, a Índia gasta apenas 1% de seu PIB em medidas de combate ao coronavírus – o que mostra que o Governo não está a fazer o suficiente.
Enquanto cresce o número de infectados, também cresce a miséria dos migrantes. O caso indiano faz-nos pôr em questão a efectividade de estados “democráticos” na protecção dos direitos dos marginalizados e vulneráveis em tempo de crise. O lockdow indiano mostrou ser uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal. Mesmo que milhões de migrantes ainda participem nos destinos do Estado indiano, o nível de violência mostra que, na verdade, foram excluídos do sistema político – expulsos para os lugares da indiferença e da abjecção.
No momento em que termino este artigo, muitos mais trabalhadores migrantes morrem em lugares remotos, e muitas dessas mortes serão noticiadas pela imprensa tradicional. Os pobres são forçados a acabar com a própria vida, da forma mais desumana. O primeiro-ministro, Narendra Modi, deve ser responsabilizado por esses suicídios. A crise da covid-19 é uma dádiva para líderes autoritários, permitindo-lhes brincar com a vida humana, em plena imunidade. A escritora Arundhati Roy disse: “Precisamos dos julgamentos da covid. Num tribunal internacional”. Eu concordo – definitivamente.
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OPINIÃO CORONAVÍRUS
II - Coronavírus, migrantes e a Índia de Modi
Quase 70% da população indiana vive com menos de dois dólares por dia. Como sobreviverão nesta pandemia? Um trabalhador disse, e com toda a razão: a fome nos matará antes do coronavírus.
AMIT SINGH,  Artigo traduzido para português por PEDRO RIBEIRO DA SILVA
PÚBLICO,13 de Abril de 2020
Estamos condenados a viver no presente. Não há escapatória. Alguns estão mais bem preparados que outros para enfrentar a crise do coronavírus. Para uma minoria, ela pode significar uma longa temporada sabática, com o luxo do ócio destinado à reflexão e ao fortalecimento de laços familiares; mas para milhões dos desprivilegiados do Sul Global, a actual crise significa uma lenta morte. O coronavírus coloca em risco pessoas cujas condições de vida já eram terríveis, sem acesso a saneamento básico e higiene – trabalhadores e trabalhadoras emigrantes, informais, explorados na Índia. Vivendo em favelas superpovoadas, de acesso limitado à saúde e sem a possibilidade prática de realizar medidas de distanciamento físico e social, esses grupos são extremamente vulneráveis ao vírus. Com este pano de fundo, o que vemos hoje na Índia é o primeiro-ministro, Narendra Modi, zombar e fazer descaso dos direitos e vidas de milhões de pessoas pobres.
No dia 24 de Março, o Governo ordenou como medida preventiva contra a pandemia uma quarentena nacional de 21 dias, limitando o movimento à totalidade das 1,3 mil milhões de pessoas que compõe a população da Índia. Sem nenhum plano adequado, sem o acompanhamento de medidas de auxílio. A quarentena, implementada subitamente, afectou desproporcionalmente a classe trabalhadora pobre indiana, especialmente os milhares de trabalhadores e trabalhadoras migrantes e informais, que se encontraram então sem trabalho, sem recursos e longe de suas famílias e lares.
Ranveer Singh trabalhava como entregador para um restaurante na capital indiana de Nova Deli quando o Governo deu a todos o aviso de que, em quatro horas, a quarentena nacional passaria a ser policialmente reforçada. Singh, sem outras opções, voltou à sua casa num vilarejo no distrito de Morena, localizado a quase 320 quilómetros de onde se encontrava. Com as linhas de transporte fechadas, decidiu-se por ir a pé. O homem, com 39 anos e pai de três, conseguiu chegar até Agra, a cerca de 200 quilómetros a sul da capital, onde colapsou e morreu de um ataque cardíaco causado pela exaustão.
Singh é apenas uma das dezenas de pessoas que pereceram a meio das longas jornadas de volta a casa depois da imposição súbita da quarentena, que não permitiu que ninguém se preparasse. Milhões de trabalhadores e trabalhadoras migrantes na Índia foram deixados sem comida ou abrigo quando Modi fez seu decreto. Nos arredores da cidade de Hyderabad, sete trabalhadores migrantes e um bebé com apenas 18 meses foram mortos num acidente rodoviário. Um grupo de quatro trabalhadores migrantes que partiam da cidade de Vasai em direcção ao vilarejo de Rajasthan morreram atropelados por um camião depois de terem sido forçados a retornar a Vasai por ordem policial.
Deve-se notar que quase 90% da força de trabalho na Índia está na informalidade, sem acesso a férias pagas, segurança social ou saúde. A maioria dos 470 milhões de trabalhadores e trabalhadoras precárias do país vivem em cortiços; para eles, o distanciamento social é impossível. Na Índia, além disso, onde divisões por casta e religião são ainda efectivas e profundas, osDalit (a mais baixa casta no sistema de castas indiano) e as comunidades muçulmanas são os grupos mais oprimidos, tratados muitas vezes com incrível violência e discriminação. De modo a garantir o cumprimento da quarentena, a polícia foi autorizada a actos de extrema violência, usando um misto de humilhação e força para disciplinar quem se encontrava fora de suas casas, até mesmo contra indivíduos que iam a caminho do trabalho em áreas essenciais, ou à farmácia e ao supermercado.
Além disso, essa quarentena mal planeada afectou gravemente a resposta possível do sistema de saúde indiano; trabalhadores e trabalhadoras da área ficaram impossibilitados de ir ao trabalho, a ausência de linhas de transporte impossibilitou a distribuição de testes e outros equipamentos para os hospitais. Nos últimos dias, diversas notícias e testemunhos dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde descreviam com sombrios detalhes a ausência de qualquer preparação para o enfrentamento da mais grave crise dos nossos tempos. As equipas médicas estão a arriscar a própria vida ao tratar doentes infectados sem ter equipamentos adequados de protecção. A resposta incompetente do Governo de Modi complicou já difíceis problemas, aprofundando-os.
No dia 5 de Abril, a polícia de Ludhiana registou uma queixa contra um homem, acusando-o de sedição depois de este, alegadamente, ter publicado nas suas redes sociais que “não havia ventiladores em Ludhiana para o tratamento dos doentes”. No distrito de Banda, no Estado de Utter Pradesh, equipas de saúde foram ameaçadas quando reclamaram da escassez de material médico. Os seus salários foram reduzidos à metade e o Governo ameaçou-os de demissão.
Os gastos públicos com saúde representam, na Índia, apenas 1% do PIB, estando muito abaixo da média mundial. A infra-estrutura de saúde pública está em ruínas. O sector de saúde privado é quase completamente “auto-regulado” e, por isso, inacessível à vasta maioria da população. Enquanto a maioria dos indianos ricos e de classe média conseguirão subsistir às três semanas de quarentena, os pobres do país e o enorme número de trabalhadores e trabalhadoras migrantes, transientes, terão dificuldades em sobreviver.
De acordo com Ramanan Laxminarayan, vice-presidente do Research and Policies no PHFI (Public Health Foundation of India), entre 300 a 500 milhões de indianos podem ser infectados até o fim de Julho. Isto é preocupando. Até 10 de Abril, o número de infectados e infectadas era de 7598, e a subir. Agora, a mais importante questão é: como conseguirão estas pessoas trabalho após o fim da quarentena? Não podemos esquecer-nos que é provável que haja uma extensão da quarentena.
68,8% da população indiana vive com menos de $2 por dia. Mais de 30% vive com ainda menos, cerca $1,25 diários. A maioria destas pessoas são diaristas – ou seja, recebem por dia. Como sobreviverão ao mundo nesta pandemia? Um trabalhador disse, e com toda a razão: a fome nos matará antes do coronavírus.
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III - OPINIÃO CORONAVÍRUS
Narenda Modi e António Costa: um tango perigoso em tempos de covid-19
É desconcertante que esta aproximação com Portugal esteja a acontecer quando direitos democráticos estão a ser cada vez mais suprimidos na Índia e a sua imagem como democracia liberal tem vindo a ficar comprometida.
JASON KEITH FERNANDES
PÚBLICO, 19 de Maio de 2020,
Fiquei incrédulo perante o tweet do primeiro-ministro, António Costa, publicado a 5 de maio: “Tive hoje uma excelente conversa telefónica com Narendra Modi a quem felicitei pelos bons resultados alcançados na contenção da pandemia num país tão grande e populoso como a #Índia.
Ao contrário do que sugere este tweet, Narendra Modi, em vez de conter efectivamente a pandemia e minimizar o desconforto dos cidadãos, escolheu com as suas decisões ignorar a provisão de serviços essenciais, reforçar o nacionalismo Hindu num país multicultural e afirmar o poder bruto do Estado. Em suma, estragou a resposta Indiana à pandemia causando muitas mortes evitáveis.
Veja-se que, logo que o governo Indiano se apercebeu que estávamos perante uma pandemia, no dia 22 de março, a resposta de Modi foi declarar um recolher obrigatório de catorze horas – das sete da manhã às nove da noite – em todo o país (Janata curfew). O curfew foi um grande sucesso, pelo menos nas zonas urbanas em que criou uma paralisação total do país. No entanto, às 17 horas do mesmo dia em que foi implementado, testemunhou-se o pandemónio completo quando cidadãos indianos saíram das suas casas formando procissões, batendo palmas, utensílios de cozinha e tocando sinos – supostamente como forma da agradecer aos funcionários públicos que prestam serviços essenciais.
Acções, talvez não coincidentemente, muito parecidas com os rituais que segundo as crenças Hindus expulsam demónios. Resultado da forma como Narendra Modi abordou o país, escolhendo apelar a sentimentos nacionalistas e religiosos ao invés de explicar a lógica do confinamento no combate ao vírus. As primeiras medidas de confinamento resultaram, então, em eventos que paradoxalmente poderão ter ajudado à propagação do vírus.
COMENTÁRIOS
Colete Amarelo
EXPERIENTE:
Eu penso que para Costa é um imperativo a aproximação com a India. Infelizmente este imperativo coincide com uma India presidida por Modi. Deve isso refrear o nosso Primeiro, sabendo-se qual é a sua ascendência?
viana EXPERIENTE: A Índia é o pais que está mais próximo de replicar o que aconteceu nos anos 30 do século passado na Alemanha. Está lá tudo: um governo que incentiva a xenofobia, assinalando uma minoria como sub-humana (os muçulmanos); um líder carismático que fará o que for necessário para se manter no Poder; uma situação económica a degradar-se rapidamente; vários "inimigos externos" a quem apontar o dedo, em particular o Paquistão, e fronteiras contestadas em comum com eles. Muito preocupante. Sobre a posição do governo de Portugal, o Magritte já disse tudo.
Magritte EXPERIENTE: Portugal usa a sua posição relativa para lavar a imagem internacional de gente pouco recomendável. Todos os Estados o fazem, dirão, e é verdade, mas há certas linhas/áreas por onde o Estado português não deveria andar. Este tipo de elogios é uma delas, como o autor defende e muito bem. Sabemos que a hipocrisia é a moeda corrente dos assuntos internacionais, e enquanto as prioridades de acumulação não forem substituídas pelos ideais democráticos, não há política externa que não se vergue aos interesses financeiros e comerciais. Cabe-nos a todos ter consciência disso e confrontar os nossos governantes: aqui a comunicação social devia tomar a liderança. Perguntem a Costa, directamente, alguns dos pontos aqui colocados.
ana cristina MODERADOR: Terrível! Não aprendemos a lição com o caso de Angola? Não dá boa coisa apoiar ditaduras. O António Costa não pode alegar que não sabia. 19.05.2020

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