Tanto a sintetizada por Manuel Carvalho, como a da biografia referida por Nuno Ribeiro. Deram para apreciar um rei que teve
virtudes e fraquezas, mas que amou o seu país e o ajudou a recuperar muito do
prestígio que, afinal, a nobreza da monarquia contribui para preservar, em
educação, altivez e expressão de valores. Uma história do nosso tempo, que
fomos acompanhando embevecidos pelo fausto e beleza de uma sociedade que
definitivamente se nos escapou, a nós, portugueses, e que, de resto, nunca
chegara a existir com igual requinte de educação e respeito como o que vemos lá
fora, nos países que conservam o regime monárquico – pesem embora as ironias de
literatos denunciantes, quantas vezes com motivo, mas outras, apenas, com
inveja.
EDITORIAL
Espanha entre o virar de página e o fim
de uma era
O melhor mesmo é virar a página com o
exílio de Juan Carlos, esperar
que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de Estado de que a Espanha precisa para
navegar nestas águas turbulentas.
PÚBLICO, 4 de
Agosto de 2020
No
futuro, será certamente lembrado como o rei insensível que gastava
centenas de milhares de euros em caçadas, quando o seu povo sofria
as agruras da austeridade, o monarca que aceitou donativos multimilionários de
soberanos estrangeiros, quando a Espanha precisava de uma coroa imune aos
desvarios éticos para conservar o seu papel de cola contra os
nacionalismos e os extremismos, o chefe de Estado a viver uma vida
paralela que negava as exigências que se requerem a um monarca constitucional.
Mas
se esse destino é tão justo como incontornável, não faz sentido resumir o papel
histórico de Juan Carlos a esses comportamentos vis. Há um outro desempenho que
não pode nem deve ser esquecido: o que alavancou a transição pacífica de uma ditadura
violenta e anacrónica para uma democracia que deu origem a um país
vibrante, próspero e europeu.
Se
a Espanha é hoje o que é, com a sua influência cultural, o seu nervo económico,
a sua impressionante infra-estrutura ou o seu dinamismo social, deve-o muito ao
papel que Juan Carlos teve nos anos críticos da transição. E se a
Espanha quer continuar a ser o que é, com a sua abertura europeia, o seu
cosmopolitismo e o seu estatuto de Estado que acolhe a diversidade, tem de
saber valorizar o papel que o rei emérito desempenhou e o papel que a monarquia
continua a ter como cimento da sua diversidade.
O
rei que faltou aos seus deveres, que abdicou e agora se
exila aumenta as dificuldades de afirmação do herdeiro do trono e torna
ainda mais complexos os terríveis desafios que a Espanha enfrenta – seja o
do nacionalismo catalão, o do extremismo
político ou o dos danos da pandemia. Mas
acreditar que o exemplo sórdido de um rei exige que o modelo constitucional se
reinvente num quadro tão exigente e incerto como o de hoje é uma aposta de
risco com sérias probabilidades de correr mal.
É
por isso que o melhor mesmo é virar a página com o exílio de Juan Carlos,
esperar que seja escrutinado pela Justiça e acreditar que Felipe VI é o chefe de
Estado de que a Espanha precisa para navegar nestas águas turbulentas. Por
deplorável que seja, o triste fim de Juan Carlos não basta
para se questionar os fundamentos de um regime que construiu a Espanha moderna
e democrática que gostamos de ter como vizinha.
TÓPICOS
Juan Carlos. Fuga em dor maior
Na juventude,
viveu as passas do Algarve, educado por velhos conselheiros e militares.
Superou as limitações, mudou o regime e acabou, já idoso, a ser um problema.
Estranho percurso de quem foi inesperada solução para o fim da última das
ditaduras europeias. Análise de Nuno Ribeiro ao percurso de Juan Carlos, o rei
emérito que abandonou Espanha devido às repercussões das revelações sobre as
suas contas bancárias em paraísos fiscais.
PÚBLICO, 4 de
Agosto de 2020
Há
uma imagem de Juan Carlos, no Outono de 1947, com dez anos, que parece retirada de um filme do neo-realismo,
apesar de ter sido captada pelo câmara do No Do, as actualidades da ditadura
franquista. É a sua chegada a Espanha, que pisa pela primeira vez, para ser
educado pelo regime numa ignóbil operação política. O regresso da monarquia,
quando a vida se cansar de Francisco Franco, não respeitando a ordem natural
monárquica. Ultrapassando o sucessor dinástico, Don Juan de Borbon, pai de Juan
Carlos, no exílio no Estoril.
Não
é esta circunstância política que chama a atenção. É a cara de um miúdo de dez
anos, normal na altura, casacão fechado, olhos tristes, rosto amedrontado, uma
criança rodeada de velhos, à distância dos regulamentos militares. Sem afecto,
a carregar nos seus ombros um peso que desconhecia, o de um país, a Espanha, há pouco mais de uma década saída do mais terrível
conflito, uma guerra civil.
Uma
infância truncada em nome da política, sem futuro plausível sem ser o da espera
de ser, vivida em colégios austeros, nos corredores das academias militares e
numa faculdade da Complutense de Madrid, à margem da vida académica do seu tempo.
Sujeito a um afastamento dos outros, quando não de apupos e às mais variadas
formas de hostilidade.
O palco que o
franquismo lhe reservava era terrível. Sempre atrás de Franco, como
ser obediente e sem vontade própria, mera figura decorativa, acessório daqueles
tempos em que o regime comemorava, dia-a-dia, a vitória sangrenta sobre a
República. Era o protagonista, anunciado, da passagem da ditadura à
monarquia sem visitar a democracia.
Papel
triste. Na Espanha do final dos anos 60 do século passado, havia jogos de
talheres, piadas impiedosas, sobre Juan Carlos."No és cuchillo (faca), no
és tenedor (garfo), no és cuchara (colher), no pincha ni corta (não pica nem
corta), quien és? Juan Carlos”. Um humor de mesa que lhe dava a condição de
inutilidade, de peça sobrante. Franco não lhe concedia outra.
A
vida ajustou contas com o ditador, em 20 de Novembro de 1975, Dois dias depois,
Juan Carlos é coroado, jura sobre os Evangelhos, há comoção no regime pelo
desaparecimento do seu criador,
e a esperança dos democratas espanhóis era visitar o Portugal de Los Claveles,
da Revolução de Abril, então na azáfama do Processo Revolucionário em Curso. Os
dois países ibéricos viviam tempos diferentes: a cor da alegria, em Lisboa, o
cinzentismo pintava Madrid; o futuro junto ao Coroado para a continuidade, com
umas Forças Armadas a policiar os seus movimentos, e a oposição política
desconfiada. Santiago Carrillo,
o secretário-geral do PCE, então no exílio na Roménia de Ceausescu, apelidou o
reinado iniciado com certeza marxista. Seria momentâneo, sem futuro, e o seu
protagonista passaria para a história como Juan, o breve.
Os
comunistas espanhóis, a principal força da oposição, com trabalho clandestino
em Espanha, através da central sindical Comisiones Obreras, tinham perdido o
contacto com a realidade complexa que o país vivia. Estavam à margem das
aspirações de sectores do regime, já libertos da presença de Franco.
Juan
Carlos I conhecia-os. E foi com mestria de bisturi, que pica e corta, abriu os
restos do regime, levou as Cortes franquistas ao seu haraquíri, à dissolução,
rodeou-se de três ministros da Opus Dei – López Rodo, López Bravo e López de
Letona, de um novo presidente do Governo, oriundo do Movimiento, Adolfo
Suárez, e foi apoiado pelos novos
interesses económicos, há muito desavindos com a autarcia franquista.
É uma colaboração improvável, a que
une a Igreja, os modernos do regime e os competitivos da economia a olharem
para além dos Pirenéus. A meta era a Europa, democrática e desenvolvida. A
pressão nas ruas aumentava com greves e manifestações de estudantes e pelo coro
crescente contra a violência dos grises, a polícia de choque.
A tentativa golpista de 23 de Fevereiro de 1981,
com os tanques na rua, e com o monarca, trajado como Chefe das Forças Armadas a
deslegitimar a provocação, reconciliou os cépticos com a monarquia. Havia uma
Constituição democrática, eleições, partidos, liberdade de imprensa.
Com a transição democrática e a homologação da Espanha aos países
europeus, do fim da pena de morte ao pluralismo autonómico, Juan Carlos coroou
o seu trabalho. Os espanhóis colocaram, então, a monarquia no topo das
instituições fiáveis, e o monarca bonacheirão, próximo, era apontado pela
imprensa britânica como modelo para a sua soberana.
Caderno de encargos de Felipe VI
“Como
estás, Jorge?”, perguntou Juan Carlos com um sorriso aberto ao Presidente da
República, Jorge Sampaio, no início de uma visita de Estado a Espanha. O
rei não governa, mas a sua função de mediador disponível, de inegável simpatia,
de um natural salto do protocolo não levantam suspeita. Disse o
monarca, referindo-se à Rainha Sofia, sua mulher, “que ela sim, é uma profissional”.
Referia-se
à discrição, porque em meados dos anos 90 do século passado, apareceram
críticas na imprensa ao comportamento social do monarca, aos perigos de alguns
que buscavam a sua proximidade, como o ex-banqueiro Mário Conde, à prenda de um
iate por empresários das Baleares celebrando a paixão do rei pelo mar das suas
ilhas.
Num
país pouco dado à intromissão da vida privada dos seus dirigentes como é a
Espanha, estes sinais ainda não tinham efeito nas sondagens. O
país vivia entre o terrorismo, as crises económicas e o ressurgimento das
paixões nacionalistas. Um cocktail então
pouco avaliado pelos conselheiros da Casa Real. Foi o que, aparentemente, não
criava problemas que provocou os primeiros desgastes.
O
fim do casamento da infanta Elena com Jaime de Marichalar e, sobretudo, o escândalo financeiro que envolveu a infanta Cristina
e o seu marido Iñaki Urdangarin num história de tráfico de
influências, comissões e fuga ao fisco, foi ainda mais mortal. Por fim, em
plena crise económica, a revelação de que o monarca tinha ido para o Botswana
com uma amiga alemã para uma caçada aos elefantes, a 50 mil dólares a peça, que
caiu da cama e partiu o fémur, somou desgraça aos problemas.
“Não voltará a acontecer, peço desculpa”,
disse o monarca aos espanhóis em comunicação televisiva. Mas já não foi a
tempo. O Palácio da Zarzuela tinha perdido solenidade e arrastava a
credibilidade da monarquia numa Espanha com crescentes actores políticos,
como os radicais de esquerda, os republicanos e os nacionalistas que não
viveram a transição e queriam novos tempos.
Foi tempo de abdicar para Felipe VI para salvar a Coroa. Em 19 de
Junho de 2014, Felipe VI, sem a presença de seu pai, Juan Carlos, a partir de
então rei emérito, faz o discurso de proclamação perante as Cortes espanholas,
o conjunto do Parlamento e do Senado. Cerimónia sóbria, discurso de meia hora,
juramento mãos sobre a Constituição e não sobre os Evangelhos.
“A
Coroa deve velar pela dignidade das instituições, preservar o seu prestígio e
observar uma conduta íntegra, honesta e transparente”, disse o novo rei. A
mensagem era para a irmã Cristina e o cunhado Urdangarin, mas colocou uma
fasquia. Tanto mais, que sublinhou: “Um rei deve respeitar sempre a
separação de poderes (...) e respeitar sempre a independência do poder judicial.”
O bom comportamento ético e social
da monarquia era, assim, razão da sua perenidade para uma causa maior. “Quero
reafirmar, como rei, a minha fé una unidade de Espanha de que a Coroa é
símbolo, unidade que não é uniformizada, pois desde 1978 a Constituição
reconheceu a sua diversidade”, destacou.
Há
seis anos foi desenhado este caderno de encargos que o monarca tem
vindo a cumprir à risca. Primeiro
foi o afastamento de Cristina e Urdangarin, um distanciamento prudente face a
Elena e, agora, o rei emérito. Que saiu no
domingo com a mesma dor que experimentou aos dez anos, à sua chegada.
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