O medo comanda a vida? Ou “L’ enfer c’est les autres”? Ou “Se queres conhecer o vilão, põe-lhe uma vara na mão”? A vara da força, a vara da riqueza, a vara, tout court…
OPINIÃO: O fantasma do radicalismo
Fátima
Bonifácio projecta no passado um modelo que é do século XX – o do medo do que
chama “esquerda radical” (o paradigma deste medo pode ser, entre outros, Hayek)
– mas que é também o da literatura contra-revolucionária do início do século
XIX: a demonização do adversário
FERNANDO DORES
COSTA PÚBLICO, 26 de Agosto de 2020
Para
os leitores da entrevista de Fátima Bonifácio [FB] publicada no
dia 15 ressaltou certamente a equiparação feita entre a “ala
setembrista radical e insuportável”,
existente no âmbito do conflito no interior do recém vitorioso regime liberal
entre as correntes cartista e setembrista durante a década de 1830, e os actuais
partidos de esquerda em Portugal (BE e PCP).
Este
tipo de paralelos é o oposto do que deve ser a História: serve
para tornar familiar o passado, equiparando os seus fenómenos a outros que
possam ser imediatamente percebidos pelos leitores. Dissolve a particularidade do horizonte em que se
moveram os agentes nesse passado – essa particularidade é o objecto da História
- e coloca-os a todos num presente indefinido.
O “radicalismo” é o elemento central do discurso de FB. Mas não será fácil aos leitores entender o que
seja. Diz FB que
é, com o conservadorismo
e o liberalismo, uma das
três correntes saídas da Revolução Francesa: “é o embrião do republicanismo, que tem princípios filosóficos e valores políticos
completamente distintos dos liberais. E incompatíveis.” Infelizmente, não nos diz quais são. O objectivo
de FB é excluir
que esta corrente seja uma ala esquerda do liberalismo, mas sim algo de
inconciliável com o liberalismo.
Acontece
que esta oposição política, que surgiu inesperadamente no interior do novo regime liberal em setembro de 1836,
pouco mais de dois anos depois da vitória sobre os miguelistas, replicou a
denúncia que nos anos de 1820 fora a matriz de afirmação política do
liberalismo face ao “antigo regime”: a ausência de uma
supervisão política dos governantes e, abaixo destes, dos magistrados e dos
detentores de cargos e postos, que os usavam para oprimirem os proprietários e
lavradores. A estes excessos opunham os
liberais a organização do poder através de uma lei constitucional, ou seja, de uma definição dos limites da autoridade que impediriam
esses abusos, a qual seria feita tanto pela diminuição
do número de empregados públicos como pela sua subordinação à lei. A “esquerda” liberal reclamou sempre que fosse
menos pesado o Estado, visto como sobrevivência do hábito aristocrático de
criação de lugares para a colocação das suas criaturas, como aliás assinalou o
então muito influente Jeremy
Bentham. Ora, o
grupo que ocupou o governo entre a vitória liberal na guerra civil em maio de
1834 e a revolução de Setembro de 1836 vai também ser acusado durante esta
revolução de impedir a efectiva afirmação desta nova “transparência” liberal. O “setembrismo” é o liberalismo-na-oposição, que
sempre acusa o liberalismo-no-governo
de ser insuficientemente liberal e traidor dos interesses nacionais. Por isso mesmo, é favorável ao proteccionismo
económico em nome
da defesa do “trabalho nacional”,
ou seja, da limitação da concorrência de produtos estrangeiros no
mercado interno, tal como os liberais de 1821 tinham previsto nos
debates sobre a proibição da importação de cereais. A subserviência face aos interesses ingleses era
sempre para a oposição o tema central da agitação política. O mesmo
acontecerá ao longo do século XIX com o tema da descentralização
administrativa: defendida pelos opositores que adiavam a sua aplicação quando
chegavam ao poder. São temas que capitalizam os descontentamentos e desgastam o
governo.
Prenunciam efectivamente o
republicanismo na medida
em que este é a versão do liberalismo sem rei e sem clero, sendo a Carta constitucional acusada de
constituir um compromisso entre os princípios liberais e o absolutismo, pelo
poder de dissolução da Câmara dos deputados dado ao rei .
Significativamente,
o “setembrismo” no poder criou uma constituição (a de 1838) que vigorou apenas uns três anos e já em 1839 era
uma corrente em desagregação, predominando no governo os chamados “ordeiros”.
O “radicalismo” desfazia-se espontaneamente.
Mas o termo “radical” é
aplicado por FB de modo muito extenso. Confirma
que Saldanha era no tempo do exílio dos liberais (1828) “radical” - mas o quer
isto dizer? É duvidoso que fosse ideológica a diferença entre os exilados
em Inglaterra e em França. Saldanha fora em 1826, quando D. Pedro
outorgara a Carta, a figura
central que forçara o seu acolhimento, sobre o qual se hesitava, e, feito ministro da regente Isabel Maria,
ensaiara sem êxito uma disciplinação do exército. Mas acabara abandonado pelos que haviam optado
pela via da fusão de partidos (que estava subjacente ao casamento
previsto de D. Maria com o tio D. Miguel)
que se revelaria ilusória e é muito provável que tenha sido esta a razão da fractura
no campo liberal. Não são as “ideias”, mas os modos de agir que fazem os grupos
divergir. “Radicalismo”
é um termo indefinido que serve para estigmatizar e por isso se aplica de
inúmeras maneiras, tal como os chamados autores contra-revolucionários tinham
feito com o termo “jacobinismo”.
Tudo
isto nos remete para a relação entre «ideias» e situações, ou seja, o modo como
os humanos se posicionam num determinado espaço e tempo. Em geral, procuram-se nas ideias proclamadas
(aquelas que conhecemos, já que as íntimas são incognoscíveis) a sua eficácia
organizadora.
A revolução
em Espanha de janeiro-março de 1820 reclamou
a vigência da Constituição liberal de 1812, mas o movimento tivera origem no
descontentamento suscitado pela formação de exércitos destinados a reprimir as
revoltas das colónias americanas. A inscrição na elevada esfera política
ocultava a motivação íntima e inconfessável, mas não era necessariamente falsa.
Dava-lhe um corpo que de outra forma não teria. No ano de 1834, no Portugal
da Carta vitoriosa, a Constituição de 1822 deixara de ser uma referência
congregadora. Dela já não se falava. Reapareceu (mas apenas como uma
formalidade) quando foi necessário convocar um texto em alternativa à Carta de
1826. As “ideias” usadas vão enfim mudando. Saldanha é um caso exemplar.
Mas também em 1820, o futuro duque de Palmela, que será uma figura central
do novo regime, não é sequer um liberal e defende que Beresford é um homem
indispensável para manter a ordem. Costa Cabral é um conhecido exemplo do indivíduo que começou na
chamada “extrema-esquerda” e se tornou o máximo expoente do autoritarismo cartista.
Tudo aponta para que não se possa considerar a coerência ideológica como
guia da acção da grande parte dos humanos ao longo do tempo de vida, mas sim a
sua opção de “localização”, feita no seu tempo e espaço ou, noutros termos, a
sua prática (ética) própria.
Mas não foi este conflito entre
correntes liberais a grande clivagem da época, mas a fractura entre liberais e
miguelistas que levou à guerra civil de 1832-1834 – para a qual FB
também usa o termo “radical”: diz que foi a “única coisa radical que nós
tivemos”. Como
conciliar a extensa repressão do regime policial miguelista com a
caracterização do país como algo “muito pequenino” onde “não se pode castigar
fulano, porque é amigo de sicrano”?
E tudo isto com a aceitação de que houve uma “revolução social” com as leis
de Mouzinho da Silveira, que aliás se sobrevaloriza, já
que no campo administrativo (o centralismo napoleónico) foi logo abandonada e
noutros teve efeitos que o autor das leis não esperava?
FB projecta no passado um modelo que é do século XX – o do medo do
que chama “esquerda radical” (o paradigma
deste medo pode ser, entre outros, Hayek) – mas que é também o da literatura
contra-revolucionária do início do século XIX: a demonização
do adversário, em que tudo, desde a reforma religiosa do século XVI até às
ideias dos diversos filósofos do século XVIII, confluía na vontade de
dissolução da própria sociedade humana. O
medo viaja no tempo.
Investigador do
Instituto de História Contemporânea — Universidade Nova de Lisboa
TÓPICOS
CULTURA-ÍPSILON HISTÓRIA CONSTITUIÇÃO D. JOÃO VI 200 ANOS DA
REVOLUÇÃO LIBERAL CULTURA
OPINIÃO
COMENTÁRIOS:
paula.o.rego.442120 INICIANTE: A doutora FB está
aliás mto bem sintonizada com os sombrios novos tempos que correm. Recuperada
da sua última argolada mediático/ racista, está de volta. Como bem diz o
Mafarrico quem tem um púlpito tem tudo Marafarrico EXPERIENTE: O problema em
Portugal é que os "historiadores" que têm púlpito e formam a opinião
pública, não usam o método científico e misturam resultados de investigações
com crenças pessoais. História é uma
ciência. Com o seu
método de verificação e correcção. Não é uma opinião. Cabe aos
jornalistas colocarem a mão na consciência e perceberem se querem continuar a
dar púlpito a autodenominados historiadores que escrevem livros sem revisão, ou
a investigadores modernos, cujas teses são verificadas pelos pares, antes de
publicação, em revistas internacionais. Há muitos investigadores nestas
condições. Mas, como têm o acesso à academia congelado há 20 anos, passam
despercebidos, à sombra dos "senhores professores" pedantes como Fátima Bonifácio
e amigos. Fowler Fowler
INICIANTE: Muito
bem. Subscrevo.
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