sábado, 1 de agosto de 2020

Ventos de mudança?


Nunca pensei que o KGB alguma vez viesse a ser posto em causa por um defensor de um regime comunista que sempre me habituei a ver em Rui Tavares, embora lhe apreciasse a clareza de pensamento e as análises históricas que favoreciam a minha ignorância, caso deste texto. Mas fez-nos passear pela geografia e história dos povos que já viveram na dependência da anterior URSS e só lhe posso ficar grata. O mesmo não acontece com o comentador, julgo que russo, Victor Morozov, que entra em disputa educada com Rafael Guerra, talvez ofendido pela ingerência em temas que “não nos dizem respeito”, a nós, sobretudo, pobre povo tolhido a mandar bitaites sobre povos que talvez se orientem melhor, afirmação irrefutável, visto que pertencemos aos da cauda, como a do tal lagarto “a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.”

 

OPINIÃO: A Bielorrússia, o último reino do KGB, existe

Deveríamos preocupar-nos e mobilizarmo-nos pela Bielorrússia. Há sinais de que os bielorrussos podem estar a tolhidoficar imunes ao medo, se bem que ainda não à repressão.

RUI TAVARES

PÚBLICO, 24 DE JULHO DE 2020

Algo vai errado quando um governo europeu tem de se esforçar a provar que o seu país não é “a Coreia do Norte da Europa”. No entanto, é isso mesmo que o governo da Bielorrússia tem de fazer, de tal forma se tornou frequente o uso dessa comparação para ajudar a chamar a atenção para a situação de um país onde cerca de dez milhões de pessoas vivem sob o regime mais autoritário, opaco e repressivo do continente.poss

Há uma coisa, porém, que nem o governo de Alexander Lukashenkoo primeiro e até agora único presidente da Bielorrússia, desde 1994 — tem interesse em negar: o facto de a Bielorrússia ser o último reino do KGB na Europa. A polícia política de Lukashenko mantém o nome da sua antecessora soviética, no que é uma singularidade entre países internacionalmente reconhecidos (o KGB continua a ser KGB em redutos como a Transnístria ou a Ossétia do Sul, mas a Bielorrússia é o único Estado-membro da ONU que continua a ter o KGB como sua polícia política). É o KGB que se vê, nas poucas imagens a saírem da Bielorrússia, a meter manifestantes em carrinhas, depois de espancados pela polícia, ou até simplesmente a levar activistas da oposição que estejam a conversar com os poucos jornalistas estrangeiros que começam a interessar-se pelo que se passa no país.

Não será provavelmente apenas a mim que perturba o esquecimento a que foi lançado um país que tem o dobro da extensão de Portugal em pleno continente europeu. Fala-se da Ucrânia, a Sul da Bielorrússia. Fala-se da Polónia, a oeste da Bielorrússia. Fala-se da Rússia, a leste da Bielorrússia. Até se fala, de vez em quando, da Lituânia e da Letónia, a norte da Bielorrússia. Fala-se de tudo isso, só não se fala da Bielorrússia. É como se houvesse ali apenas um enorme buraco em torno da capital, Minsk.

Lukashenko vive, é claro, bem com o facto de não haver sequer uma base de conhecimento sobre a Bielorrússia que possibilite aos restantes europeus saberem o que se passa naquele país, preocuparem-se ou mobilizarem-se com isso.

E no entanto deveríamos, sim, preocupar-nos e mobilizarmo-nos pela Bielorrússia. O país vai a “eleições” no próximo dia 9 de agosto. Ponho “eleições” entre aspas porque é claro que estas eleições, como as outras antes destas, são tudo menos verdadeiras eleições, mas antes um pró-forma por que o presidente Lukashenko tem de passar antes de ter um novo mandato. Desde logo, os candidatos de oposição que poderiam fazer verdadeira mossa vêem as suas candidaturas invalidadas, como aconteceu desta vez com Viktar Babaryka, um homem de negócios, Valery Tsepkalo, o gestor de um parque tecnológico, e Siarhei Tsikhanouski, um blogger e youtuber que foi mandado para a prisão. Em vez deles, candidaturas de partidos tolerados ou de personalidades desconhecidas são oficializadas para dar um vislumbre de legitimidade à contenda. E quando chegar a hora das urnas, Lukashenko não hesitará em defraudar o voto para ser reeleito. Este é o tipo de ato eleitoral que nós tínhamos em Portugal antes do 25 de abril. O medo e a repressão fazem o resto.

Mas há sinais de que os bielorrussos podem estar a ficar imunes ao medo, se bem que ainda não à repressão. Embora a eleição presidencial seja pouco mais do que uma encenação, a verdade é que a aproximação da data, junto com a péssima gestão de crise pandémica por parte de Lukashenko (que garantiu que o vodka curava a covid-19), fizeram com que os bielorrussos fossem para as ruas e começassem a protestar dentro e fora do país, em muitos casos dando a cara, o que é um risco para os próprios e para as suas famílias. Quando isto acontece é em geral sinal de que as coisas estão a chegar a um ponto de ebulição. Lukashenko respondeu com pouca subtileza, lembrando aos seus concidadãos a ocorrência de massacres noutros países pós-soviéticos no caso de estes tentarem derrubá-lo através de uma revolução, e enviando as polícias para a rua para espancar os bielorrussos que tiverem a coragem de protestar.

Até agora, estas atitudes só têm ajudado os opositores de Lukashenko a ganhar ânimo. A mulher de um dos candidatos presidenciais presos, Svetlana Tikhanouskaya, decidiu avançar com a sua candidatura, e foi apoiada pela mulher de outro dos candidatos, Veronika Tsepkalo, e por Maria Kolesnikova, dirigente da candidatura invalidada de Viktar Babaryka. Até agora, Lukashenko ainda não tomou o passo de proibir a candidatura de Svetlana Tikhanouskaya, que começa a mobilizar seriamente a população.

Por outro lado, os bielorrussos no exterior começam a organizar-se para mostrar ao mundo o que se passa no seu país. Hoje, em Lisboa, às 19h no Largo de Camões, alguns dos cerca de duzentos bielorrussos que vivem em Portugal estarão reunidos para exigir eleições livres e justas no seu país. Pela coragem que demonstram — ao darem a cara, as suas famílias podem estar em risco — e pela singeleza daquilo que pedem, apenas o direito de poder escolher, merecem bem que os apoiemos e acompanhemos. Para lhes dar protecção e a força de lutar por aquilo que nós já damos por tão banalmente adquirido. E ao menos para que se saiba que a Bielorrússia existe.

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COMENTÁRIOS:

JOAO EXPERIENTE:: Cá anda o Tavares a pregar e a mobilizar para mais uma “cruzada”. Até tremo com “cruzadas”. Há uns tempos andava aqui outro(?) a arranhar e a arranhar a ver se começava mais uma “cruzada” em Marrocos, com as arengas do costume, que aquilo coisa e tal, que talvez assim-assim, que devia ser assim e assado, etc. Até me arrepiei! Bom, se fizerem mais uma “cruzada” para aqueles lados pelo menos é longe, lá teremos de pagar quer em dinheiro quer dizendo com a cabeça que sim em Bruxelas. Paz às almas daquelas gentes. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: Se fores na Bielorrússia vê como é belo um regime inspirado da vizinha Rússia...

Victor Morozov INICIANTE: A Rússia não está a inspirar algo à Bielorrússia. O país não prospera, é verdade. Mas aquí nós falamos da imiscuição de outros nos assuntos internos doutros países. O exemplo da Ucrânia evidencia os resultados desta imiscuição. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: Rindo muito. Não inspira mas é pouco! A começar por um líder autocrata que se eterniza no poder, onde o KGB pode entrar na vossa casa a qualquer momento, onde a liberdade de imprensa e o jornalismo de investigação são uma fantasia, com o controle estrito dos media e, especialmente dos canais de TV que são totalmente controlados pelo Estado. Mas enfim, seria pedir demasiado a quem nunca conheceu a democracia nem a liberdade, e foi educado num nacionalismo cego. 24.07.2020

Victor Morozov INICIANTE: A enumeração dos «vícios do regime soviético» não passa de «espantalho de ameaça por parte do regíme da União Soviética». Actualmente, tanto a Rússia como a Bielorrússia não têm nada a ver com os horrores mencionados pelo Sr. Rafael.Guerra. Abaixo a guerra!24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: Sim,  para os cegos desses regimes, que podem circular que não há nada para ver. 24.07.2020

Victor Morozov INICIANTE: Não é sinal de boa educação chamar cego ao povo de um país que conseguiu derrotar o fascismo e alcançar êxitos na ciência, cultura, desporto e no desenvolvimento económico, embora tenhamos para onde crescer. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: O camarada pode continuar a adorar Stalin, um dos maiores criminosos da história da humanidade, e todos os regimes autocráticos que tais, que nós por cá nem com o seu cheiro podemos.

Victor Morozov INICIANTE Não há nada surpreendente, o Sr. vive nas trevas da propaganda: é de conhecimento geral que ainda na União Soviética o culto de personalidade de Estaline foi rejeitado e condenado. Agora, na Rússia, apenas 8 % da população vota no Partido Comunista (e em Portugal?). Quanto à eternização de presidente, sim a Rússia teve sorte de que na época mais difícil para o país foi eleito o presidente Putin. Caso contrário a Rússia transformar-se-ia "no posto de abastecimento" sem qualquer soberania. Actualmente, a Rússia conseguiu levantar-se de joelhos e o povo russo confia no seu presidente. Neste caso a democracia não se viola visto que o povo (demos) torna-se mais contente e próspero, embora tenhamos pel frente muitos problemas por resolver. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: Nas trevas vivem os jornalistas russos sob o regime de Putin. Anna Politkovskaya, 48 anos, morta em 2006. Natalia Estemirova, 50 anos, morta em 2009. Anastassia Babourova, 25 anos, e Stanislas Markelov, 34 anos, mortos em 2009. Pavel Cheremet, 44 anos, morto em 2016. A lista é extensa e conta com dezenas de jornalistas assassinados desde 2000. Sem contar com os que são calados com a prisão, após lhes terem montado rapidamente um dossier comprometedor ("Kompromat") de traidor, espião, terrorista, pedófilo, drogado, ou outra acusação falsa que tal. 24.07.2020

Victor Morozov INICIANTE: Na sua lista a morte mais recente é a de Pavel Sheremet que aconteceu na Ucrânia e até agora não foram detidos assassinos. Quanto a outras vítimas, sim, os crimes tiveram lugar, assim foi o período transitório. Os culpados foram castigados. Graças a deus, agora isto não acontece. E não vale a pena continuar a chamar as autoridades actuais russas «regime sangrento de Putin» ou falar tolices de género, está a soar ridículo. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: Falemos então do ridículo na Rússia de Putin. Interesse-se ao processo alucinante (outro "Kompromat" vergonhoso) contra Yoann Barbereau, que escapou recentemente às prisões siberianas. Trata-se do ex-director da Aliança Francesa em Irkutsk na Rússia, que fugiu da justiça russa depois de ter sido condenado a 15 anos de prisão num processo à moda da casa que nem de Kafkiano pode ser qualificado.

Quanto ao seu acto de fé: "Graças a deus, agora isto não acontece", não sei se devamos rir ou chorar. Ficamos pelo menos a saber que Putin não é Deus porque está no poder há mais de 20 anos e a lista de jornalistas assassinados não pára de crescer. Entre os casos conhecidos: Dmitry Tsilikin (também morto em 2016), Yevgeny Khamaganov, Nikolay Andrushchenko, Dmitry Popkov e Andrey Ruskov (mortos em 2017), Maksim Borodin, Maksim Borodin, Sergei Grachyov e Yegor Orlov (mortos em 2018). 24.07.2020

Victor Morozov INICIANTE: Sr. Rafael, parece que se esgotaram todos os argumentos que provem o facto de o regime de Putin é «sangrento» porque o referido «processo alucinante contra Yoann Barbereau» não foi mencionado mesmo no Ekho Moskvy (Eco de Moscovo), estação de rádio em oposição dura a Putin. 24.07.2020

rafael.guerra EXPERIENTE: O Russian Today em França noticiou em 10 de novembro de 2017, mas desde então é silêncio na rádio do Kremlin. O camarada Morozov deve ter sido atacado pelo mesmo síndroma da negação que o governo soviético durante a catástrofe de Chernobyl. A Rússia é uma grande nação, culturalmente e cientificamente, mas segue sendo incapaz de autocrítica, como o ilustra perfeitamente o camarada. 24.07.2020

Amélia. Obrigada INFLUENTE: Talvez este este site vos ajude a verificar o número de jornalistas assassinados. "Committee to Protect Journalists" ou "Comité para a Protecção dos Jornalistas". cpj.org. Façam o filtro para a Rússia e verifiquem a quantidade e os casos. "Acidentes" também os há. 25.07.2020

Victor Morozov INICIANTE: Com todo o respeito ao Sr. Rui, tenho que assinalar que o modo de vida de cada país determina o povo do mesmo (democracia) e meter o nariz onde não é chamado leva, regra geral, a desgraças, o que aconteceu na mencionada Ucrânia. O Ocidente (em primeiro lugar os EUA) tinha gostado de impor ao povo ucraniano a «democracia» e como resultado: pobreza, guerra civil, assassínios. O mesmo se pode dizer sobre «intenções boas» do Ocidente em relação aos povos da Líbia, Iraque, Venezuela, etc. Agora, o Sr. Rui cuida do destino do povo bielorrusso. Guarda-nos, Deus, destes cuidados! 24.07.2020

Leitor Registado EXPERIENTE: Fiquei com uma dúvida: provar que não é “a Coreia do Norte da Europa”....qual é o mal da Coreia do Norte segundo Rui Tavares? 24.07.2020

Opinativo INICIANTE: O pior que nos podia acontecer era uma situação de guerra civil na Bielorrúsia. Depois do fiasco da Ucrânia, se alguma potência ocidental meter um dedinho na Bielorrúsia, a Rússia toma conta do país todo e fica a fazer fronteira com a Polónia. Toda a gente sabe que a Bielorrúsia é uma ditadura, mas a sua localização não permite que façamos o que quer que seja. O mundo não é nem nunca será perfeito, Sr. Rui.

Suspicious Minds MODERADOR: Tenha um pouco de respeito pelo Dr. Rui Tavares, por favor! Para sua informação, tem um vasto conhecimento e curriculum em política internacional, e em geoestratégia. Logo a começar pelo Magrebe, em geral, e pela Líbia, em particular. 24.07.2020

 


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