segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Bonitas lições inoperantes

 

Mais um texto da curtição de António Barreto, rigoroso na construção frásica, de uma racionalidade certeira mas inoperante na informação crítica. Alguns comentadores o exporão.

OPINIÃO

A democracia tem medo

A democracia é o regime de todos, incluindo não democratas, revolucionários e antidemocratas. Defende-se com o reforço e o alargamento, não com a fortaleza.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO, 16 de Agosto de 2020

A democracia portuguesa não corre riscos excessivos. Mas os democratas têm medo. E, quando têm medo, ficam crispados e fecham-se. Tentaram mudar regras e limitar os seus debates. Felizmente que o Presidente da República deu duas lições aos deputados (ao governo e aos partidos) que não resistiam a diminuir a democracia.

Toda a gente sabe que os debates parlamentares são de má qualidade. É um lugar-comum sublinhar o facto. Já vem, aliás, desde o século XIX. Qualquer escritor que se prezasse tinha de dizer as últimas dos debates parlamentares, da falta de educação e de cultura dos deputados e dos seus estranhos hábitos.

A República fundou um Parlamento que era uma algazarra dominada por um ou dois partidos despóticos. O Estado Novo criou uma Assembleia Nacional de gente sem coluna, por vezes com sabedoria, mas sempre pronta a obedecer. Com excepção de uns raros momentos, aquela Câmara transformou-se numa imensa sala mortuária. Com a democracia, nasceu uma Assembleia da República onde se discutiu, escreveu uma Constituição e prepararam os alicerces para um Estado de direito. Com altos e baixos, o Parlamento foi vivendo. Mas o declínio anunciou-se cedo. O poder dos governos acentuou-se. A partidocracia instalou-se. Os cargos na Administração Pública e nas empresas privadas foram tendo mais interesse. Os vencimentos nas profissões liberais e nos grupos económicos revelaram uma tentadora disparidade. As máquinas partidárias impuseram a sua lei. Cada dia que passa um deputado é mais dependente. Com a perda de poder, o Parlamento sente-se ameaçado e fecha-se. O Governo acompanha-o.

Os debates parlamentares conheceram um declínio seguro. Houve algumas excepções, mas o seu teor vai-se degradando há algum tempo. A gritaria aumenta. O despropósito cresce. Os bons argumentos racionais e políticos minguam. A pose para a televisão consolida-se. O irrelevante afirma-se. Perante isto, os próprios grupos sentiram necessidade de reformar. Esperava-se que os deputados organizassem um plano de melhoramento dos debates: a frequência, a relevância temática, a duração das réplicas, a capacidade de intervir espontaneamente, a possibilidade de fazer intervenções independentes e a eliminação de grande parte da disciplina paralisante eram temas em que se pensava. Havia tanto a fazer! Tanto a reflectir! Que fizeram alguns grupos, designadamente o PS e o PSD? Reduziram os debates e fizeram dezenas de alterações de pormenor, geralmente com o sentido de manter o predomínio dos partidos sobre os deputados, dos grandes sobre os pequenos e do governo sobre todos. Reforçou-se a disciplina e a burocracia que condicionam a iniciativa individual e apurou-se a técnica dos pesos e medidas que limita a liberdade de cada deputado.

Foi assim que os deputados diminuíram os debates parlamentares sobre a Europa. Reduziram as possibilidades ou a obrigatoriedade de debater em plenário as petições dos cidadãos. Em colaboração com o Governo, diminuíram para menos de metade o número de debates periódicos com a presença do primeiro-ministro.

O Presidente da República vetou a primeira decisão sobre os debates europeus, assim como a segunda sobre as petições. Quanto aos debates com a presença do primeiro-ministro, o Presidente não teve poderes para intervir. Mas merece nota o facto de ter sido o Presidente a impedir que Parlamento e Governo diminuam a já de si reduzida capacidade de debater.

Outros acontecimentos recentes puseram em causa a democracia, sobretudo o receio dos democratas. Estes têm medo do partido comunista que quer fazer uma festa em condições de privilégio quando as actividades colectivas culturais, religiosas, recreativas, associativas e outras estão praticamente interditas! Não é evidentemente a provocação deles que é uma ameaça, o que é perigoso é a reacção das instituições. Os comunistas sempre tiveram a certeza de merecer um estatuto especial na sociedade e um privilégio indiscutível. Nunca se imaginou que esse conceito fosse tão alargado até englobar regras sanitárias especiais! Nem que as autoridades cedessem.

Os deputados exibiram ainda medo das pessoas que querem dar nas vistas, como o deputado Ventura que deseja candidatar-se a Presidente da Republica, sem perder o mandato de deputado.

Outro facto relevante foi a declaração de Rui Rio sobre a eventual mudança do partido Chega e a hipótese de haver um acordo entre este partido e o PSD. Que o partido Chega se aproxime do PSD, é natural. Quem quer crescer a qualquer preço é capaz de tudo. Que o PSD lhe abra as suas portas, é surpreendente. E errado. Que o Chega tome iniciativas é lá com ele. Que o PSD ou qualquer outro partido democrático se aproxime dele é um problema e é connosco! O PSD merece ser politicamente castigado só porque o seu presidente se predispôs a tal cambalhota!

Finalmente, uns grupelhos racistas e xenófobos, uma ou duas dezenas de indivíduos, decidiram manifestar-se diante de partidos de esquerda e de associações anti-racistas. Além de se manifestar, ameaçaram pessoas e deputadas, atitudes raras entre nós, mas que merecem evidentemente atenção. Parecem provocação, mas vale a pena a democracia e a justiça estarem atentas. A liberdade e a integridade dos cidadãos são fronteiras de alarme.

A fragilidade e os perigos para a democracia não resultam directamente destas ameaças, estão antes, isso sim, nas respostas das instituições políticas e judiciais e do sistema democrático. Está errado protestar com excessiva veemência e com a proibição do que seja mera opinião. A justiça deve intervir perante acções e comportamentos, não diante de opiniões. É muito fácil perceber-se que a defesa da democracia pode rapidamente degenerar em redução da democracia. Os deputados devem defender a democracia através do seu desenvolvimento e do seu enriquecimento, não por intermédio do seu fechamento.

A democracia é o regime de todos, incluindo não democratas, revolucionários e antidemocratas. Defende-se com o reforço e o alargamento, não com a fortaleza. O antifascismo não acaba com o fascismo. Pelo menos não substitui o fascismo pela democracia. Tal como o anticomunismo não destrói o comunismo. Nem um nem outro fazem a liberdade. O que constrói a liberdade é a democracia. O que destrói o fascismo e o comunismo, substituindo-os pela liberdade, é a democracia.

Sociólogo

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COMENTÁRIOS:
António GS
INICIANTE:
Há aqui um José cúmplice dos crimes de Estaline, Maduro e Jong, e ele tem o descaramento de criticar o voto popular que não dá confiança à sua agremiação de múmias. É tempo de acabar com anti democratas de esquerda e direita que se servem da democracia para sugerir ditaduras. É preciso ilegalizar tudo o que é extremista à esquerda e à direita.

albergaselizete EXPERIENTE: Com o devido respeito, discordo do articulista quando escreveu que a democracia è o regime de todos em Portugal. O problema é ser de alguns, os beneficiários da alta corrupção, que destruiu economicamente o país, esquivando-se sistematicamente a consultar o povo, tomando sempre decisões que são autênticos crimes de alta traição, sempre em prejuízo de Portugal e da maior parte do seu povo. Portanto, aquilo a que se tem assistido, há mais de 40 anos, é um pequeníssimo número de pessoas imporem a quase todo o povo, as suas ideias, decisões, irresponsabilidade, com inimputabilidade. Na Suíça, todas as grandes decisões são referendadas, aqui sim, a democracia é o regime de todos. Ou nos países nórdicos onde é possível ver políticos que até são capazes de andar nos transportes públicos. 16.08.2020

Jose EXPERIENTE: Cara(o) Albergaselizete António Barreto não tem razão em quase tudo na sua vida, mas está carregado de razão quando afirma que "a democracia é de todos". Há 46 anos o PS,PSD,CDS ocupam os cargos de topo de todas as hierarquias do Estado e da Sociedade. Isso é assim por causa de mais de 80% dos eleitores portugueses que votam votarem no PS, PSD, CDS. Esses deputados têm o poder legislativo e elegem o poder executivo bem como os Juízes do TC, o PGR, o Provedor da Justiça, o presidente da concertação social e todos os cargos. O topo das hierarquias do absoluto poder interno das empresas é PS, PSD, CDS. Todo o poder formal é desses partidos há mais de 45 anos por decisão do soberano sufrágio universal. Fazem políticas contra os trabalhadores e o povo, mas com os votos. É preciso mudar o voto! 16.08.2020

DuarteSousa INICIANTE: «O PSD merece ser politicamente castigado só porque o seu presidente se predispôs a tal cambalhota!» Será que o PS mereceu ser castigado por ter feito uma «cambalhota» com o PCP? 16.08.2020

José Cruz Magalhaes MODERADOR: A democracia só pode ter medo perante as análises e conclusões redutoras como aquelas que António Barreto, lega aos seus compatriotas e leitores do Público. Em sua opinião, a diminuição e a constrição da democracia é devida, em partes iguais aos movimentos fascistas e anticomunistas, versus antifascistas e comunistas. Na sua análise de cátedra, não consegue visualizar mais do que isto, nem percepcionar que a redução simplista e equívoca, com que sempre nos brindou, deixa em claro que nacionalistas, supremacistas brancos, xenófobos, racistas, nativistas, anti-globalizadas nominais e toda uma outra panóplia de uma fauna em que se sedimenta uma direita e uma extrema direita, arrivista e retrógrada, constituem a principal ameaça para a liberdade e para a democracia. 16.08.2020

Anjo Caído MODERADOR: Discordo. A grande ameaça é a corrupção, o caciquismo, o alheamento dos cidadãos face à política, as teias de poder entre política e poder económico. É isso que mina a democracia, por dentro, e a apodrece. Não são os alegados fascistazitos que agora saem do armário, nem os comunistas empedernidos que se julgam sempre senhores da razão. Não. É o centro. O decadente, molengão, corrupto, incompetente e inoperante centrão. 16.08.2020

Antonio SilvanINICIANTE: Este "senador" vem a terreiro sempre para anunciar a catástrofe e debitar o fel que o domina. 16.08.2020

António GS INICIANTE: É próprio de democratas tolerar anti-democratas assumidos, reverenciadores do defunto Estaline e apoiantes do Tinto Maduro e do Zé das Bombas da Coreia? É próprio de democratas aturar os Chegas da Direita e da Esquerda? Tenho dúvidas, António Barreto. E parece-me que você também as tem, o seu texto não é dos melhores. 16.08.2020

Fowler Fowler INICIANTE: A depreciação recorrente do Parlamento e da nossa democracia, quer pelo uso de extensa gramática de lugares comuns, quer pelo culto ou gosto simples de ver sempre o copo meio vazio ou mesmo vazio, sempre em comparação bacoca com as virtudes liberais do RU, em nada contribui para o destemor e o enrijamento da nossa democracia face aos perigos enunciados, pelo contrário. Há muito que tinha reparado que o “revolucionário” AB se inspira muito nos escritores portugueses do século XIX. Da mesma forma que estes também se inspiraram noutros escritores (estrangeiros). Pena que ainda não tenha construído uma ficção realista à Zola. 16.08.2020

Jose EXPERIENTE: Não há nenhuma ameaça à democracia portuguesa. Há expressões de autoritarismo no "Bloco Central político e de interesses". Os deputados eleitos pela CDU renunciaram com rigor, educação, correcção democrática e votaram contra as decisões autoritárias de fechamento da AR a debates, petições... o PR advertiu o seu próprio partido e o partido do governo, a Direita que governa há mais de 45 anos. O PCP não interrompeu o exercício da liberdade, da democracia, adaptou as suas iniciativas às particulares condições da pandemia. Deu e está a dar exemplos de desconfinamento contra o medo com toda a segurança, protecção pessoal, distanciamento e higiene. Fosse assim na habitação, transportes, trabalho, espaço público, Lares e a pandemia estaria mais controlada e a democracia mais forte. A Justiça agirá! 16.08.2020

fernando ferreira franco INICIANTE: António Barreto denota alguma ingenuidade quando pretende que a democracia seja a casa de todos, mesmo dos anti-democratas. Se levarmos este postulado ao âmago da ideia em si, então até uma ditadura se insere nos ideais de democracia, é que se o povo a tolera e não se revolta, então ela é legítima. Paradoxalmente, se A.B. apela à democracia, afirmando que ela não admite atitudes exacerbadas ou "veementes", então o 25 de Abril foi uma afronta à ideia fundadora da democracia. Outra nota de registo das incongruências de A.B. É o facto de atribuir a Marcelo a inteligência do veto sobre os debates quinzenais, quando atrás no texto tinha denunciado o declínio desses debates, tendo o veto de Marcelo como resultado, a continuidade desse declínio...Camões teria preferido um mundo feito de mudanças. 16.08.2020

Fowler Fowler INICIANTE: Muito bem observado. As incongruências reflectem a origem do artista.

Jose Vic INICIANTE: Saudades do António verdadeiro, revolucionário e anti-fascista. Mas para toda esta teoria não é necessário equilibrar melhorar o ponto de partida de todos os cidadãos para usufruirem a tal Democracia? É preciso não perdemos a perspectiva. As desigualdades crescentes, a economia a colapsar, o abandono escolar, a falta de alternativas para os mais novos são o caldo perfeito para o que aí vem. António Barreto sabe-lo bem porque já esteve do outro lado da barricada. Mas é reconfortante ler a sua prosa!

16.08.2020

Antonio Silva INICIANTE > José Vic : Anti-fascista aonde? No sossego da estranja para se baldar à guerra? Que falta de memória... 16.08.2020

antonio rocha INICIANTE: Mais um a normalizar. Deste não se esperava outra coisa. 16.08.2020

TML INICIANTE: "Estes têm medo do partido comunista que quer fazer uma festa em condições de privilégio quando as actividades colectivas culturais, religiosas, recreativas, associativas e outras estão praticamente interditas!" - isto é pura mentira. há neste momento festivais por todo o país, houve ajuntamentos em Fátima, etc etc etc 16.08.2020

Gualter Cabral EXPERIENTE: É um paradoxo, mas a realidade confirma-o. É na casa da democracia - AR- que mais se atenta contra a democracia. No entanto, eles falam...falam...mas não fazem nada, ou melhor, conspiram contra a democracia. Os deputados são demais e não prestam. As inúmeras petições para se alterar a forma e conteúdo das votações, no sentido de mais clareza e autonomia dos deputados e escolha nominal são sistematicamente esquecidas. A partidocracia é a regra e a autoridade. E o cidadão...? Bom...O cidadão que se amanhe, que se conforme, que emigre; em resumo:" o cidadão vá chatear a quem lhes fez as orelhas" 16.08.2020

AGC INICIANTE Análise muito lúcida e oportuna, como é hábito. 16.08.2020

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