Tout passe,
tout casse, tout lasse…
Mas tudo se recomporá, em mais uma história
do absurdo. Esta, do Líbano.
(Notícia da
Internet):
Português em Beirute. "O
sentimento geral no Líbano é de enorme raiva", mas há "um sentido de
entreajuda inacreditável"
O relato de José Cortez, português no Líbano, uma semana
depois das explosões em Beirute. "O
que se vê mais é pessoas com vassouras a limpar os destroços", conta
sobre o que se vive na capital.
Morreu o Líbano que conhecíamos
A explosão de Beirute é um corte na
História do País do Cedro. O sistema político libanês, feito de equilíbrios
confessionais, chegou ao fim. Morre por corrupção e incompetência. Perdeu a
última réstia de legitimidade. De momento, não há alternativas à vista
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
PÚBLICO, 12 de
Agosto de 2020
Como
foi possível passar de um país chamado “a Suíça do Médio Oriente”,
modelo de coexistência comunitária, oásis de liberdade, prosperidade e cultura,
para o inferno de um Estado falido, usurpado por uma elite corrupta? A
explosão do porto de Beirute não foi apenas uma catástrofe. É um corte na
História do Líbano. “Beirute
nunca mais será a mesma”, escreve um jornalista. “O Líbano que conhecemos está
a morrer”, observa um analista. É o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros,
Nassif Hitt, quem declara: “O Líbano está a caminho de se transformar num
Estado falido.
O Líbano tem uma geografia feliz na
borda do Mediterrâneo, o que faz dele um importante entreposto comercial. Do
ponto de vista geopolítico, o quadro é mais ameaçador. Está encravado entre Israel e a Síria. Damasco, a quem
está umbilicalmente ligado, vê nele uma extensão do seu território. Israel pretendeu fazer dele um Estado-tampão
sob sua influência. Por fim, é
um ponto quente da concorrência entre o Irão e a Arábia Saudita. Sofreu as
consequências do conflito palestiniano, teve uma longa guerra civil (1975-1990)
que desembocou na ocupação síria e na ocupação do Sul do país por Israel. De facto, goza de uma soberania incompleta.
Terceiro
elemento, o que mais
condiciona a vida política do Líbano: o comunitarismo político. Tem 18 confissões religiosas e três
comunidades dominantes – cristãos maronitas e muçulmanos, sunitas e xiitas. E uma forte comunidade drusa. Alberga ainda 300 mil refugiados
palestinianos (confinados em campos) e os novos refugiados da guerra síria. O
problema não é o mosaico religioso: é a organização da vida política em termos
confessionais, o que se acentuou após a guerra civil. Desta vez, os libaneses
não podem atribuir a crise a intervenções estrangeiras: ela espelha o
apodrecimento do sistema político.
Há
duas visões do Líbano, disse um especialista, Jeffrey Feltman, numa audição na
Câmara dos Representantes. “Há uma visão romântica, que vê uma dinâmica sociedade
multi-confessional e relativamente aberta à democracia, uma incrível cultura, a
cozinha, a História e a hospitalidade. Na visão alternativa, o Líbano evoca uma
sangrenta guerra civil e o massacre de marines e diplomatas
americanos [em 1983], perigoso entreposto do Irão, ameaçando os interesses dos
Estados Unidos na região e para lá dela.”
O comunitarismo
De
onde vem este sistema? O País do Cedro pertenceu aos sucessivos impérios
árabes, foi incorporado no Império Otomano no século XVI, ficando sob mandato
francês depois da I Guerra Mundial e da derrota otomana. Foram os franceses que desenharam, em detrimento da
Síria e em favor dos cristãos maronitas, as actuais fronteiras.
No
censo de 1932, o único realizado, os cristãos maronitas representavam metade
da população, seguidos por sunitas e xiitas. Com a independência,
em 1943, as várias comunidades e os franceses
acordaram numa repartição do poder.
Um “pacto nacional” não escrito determinou que os cristãos, maioritários,
disporiam da Presidência da República e do comando do Exército, enquanto
o primeiro-ministro seria sunita e o presidente do Parlamento seria xiita.
Note-se que os drusos não foram recenseados como muçulmanos. Este
sistema funcionou, embora produzindo crescente clientelismo e bloqueando
muitas vezes a tomada de decisões. Mas actualizar o censo seria violar um
tabu.
A primeira
grande crise ocorreu em 1958, quando o Presidente Camille Chamoun
decidiu ser reeleito, o que era inconstitucional. Recorreu aos Estados Unidos
invocando a ameaça do nacionalismo árabe: Egipto e
Iraque. Marines desembarcaram em Beirute e Chamoun ficou no poder.
Foi a primeira grande fractura política no Líbano.
Ainda
hoje o sistema se mantém, mas a dinâmica demográfica abalou aquele delicado
mecanismo de relojoaria. O peso dos cristãos baixou, subindo o dos árabes,
sobretudo o dos xiitas, que reclamam hoje ser a maior comunidade. A obsessão
com os equilíbrios demográficos não se limita ao Estado. As mulheres libanesas
casadas com estrangeiros não podem reclamar a nacionalidade libanesa para os
seus filhos. O sistema político perdeu a relativa legitimidade das origens.
O Líbano dispõe das melhores elites
intelectuais do mundo árabe, mas também acabou por produzir “as piores
oligarquias económicas”, diz o politólogo Sami Nair. Os oligarcas raramente
pagam impostos e têm o hábito de colocar os capitais no estrangeiro. Meia dúzia
de oligarcas, das várias comunidades, controlam os fluxos financeiros do
Estado, transformado num “sistema patrimonial de clientes e patronos”, a que é
estranha qualquer noção de “interesse nacional”. Metade da população vive
abaixo do limiar da pobreza e não podemos ter ainda a noção plena do impacto da
explosão de Beirute. Ao mesmo tempo, um por cento dos libaneses recebem 25% do
PIB. Para assustar os políticos libaneses, do Presidente Michel Aoun (cristão)
a Hassan Nasrallah, chefe do xiita Hezbollah, foi preciso chegar à bancarrota. Que fazer agora?
“Depois
da guerra civil, a pertença confessional determina as identidades”, diz a
escritora libanesa Dominique
Edde. “É-se xiita, sunita, maronita, druso
ou greco-cristão antes de se ser pobre ou humilhado. Melhor: é-se xiita, sunita
ou druso, antes de partilhar a mesma religião. As alavancas das revoltas
sociais são assim hipotecadas pelo funcionamento comunitário.”
“Nós
contra eles”
O
que se seguiu à guerra civil foi uma mudança qualitativa, escreve Maha
Yahya, directora do Centro Carnegie para o Médio Oriente. A exigência de abolição do regime, nas manifestações
que remontam a Outubro de 2017, “é um libelo contra o catastrófico desgoverno
do país pela sua classe política”. Os chefes da guerra civil entraram nas
instituições, mas isso não significou renovação, antes deterioração.
As
manifestações em curso no Líbano espelham as contradições da sociedade.
“Exprimem uma revolta contra o sistema e o completo colapso da confiança em
todas as instituições. Neste sentido, a revolta é acompanhada por um crescente
sentido de solidariedade nacional e a fórmula ‘nós contra eles’ já não diz
respeito a seita, etnicidade, classe ou género. É sobre a classe política
corrupta contra o resto do país.” Mas, previne Yahya: “No seu contexto global,
protestar contra o sectarismo não significa que as pessoas abandonem a sua
identidade confessional.” Esta identidade é o seu último refúgio.
Uma
reforma constitucional não resolve os problemas do Líbano. Mas sem mudar
radicalmente o sistema político, nenhuma das reformas essenciais será possível.
O processo pode vir a tornar-se violento. Muito depende da reacção das elites.
Para políticos e oligarcas, a escolha é difícil: a manutenção do sistema é para
eles uma “questão existencial”. Mas essas mesmas elites estão encostadas à
parede e enfrentam o dilema do Leopardo: mudar para sobreviver. A explosão
do porto de Beirute é uma viagem sem regresso.
Last but not the least: o desfecho da crise libanesa terá
repercussões geopolíticas – interessa à Europa, aos Estados Unidos, à Rússia,
ao Irão e à China, que parece disposta a ocupar um eventual vazio. Será assunto
para outro texto.
MUNDO
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