quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Tempos e modos


Tout passe, tout casse, tout lasse…

Mas tudo se recomporá, em mais uma história do absurdo. Esta,  do Líbano.


RESPOSTA PRONTA

(Notícia da Internet):

Português em Beirute. "O sentimento geral no Líbano é de enorme raiva", mas há "um sentido de entreajuda inacreditável"

O relato de José Cortez, português no Líbano, uma semana depois das explosões em Beirute. "O que se vê mais é pessoas com vassouras a limpar os destroços", conta sobre o que se vive na capital.

 

Morreu o Líbano que conhecíamos

A explosão de Beirute é um corte na História do País do Cedro. O sistema político libanês, feito de equilíbrios confessionais, chegou ao fim. Morre por corrupção e incompetência. Perdeu a última réstia de legitimidade. De momento, não há alternativas à vista

JORGE ALMEIDA FERNANDES

PÚBLICO, 12 de Agosto de 2020

Como foi possível passar de um país chamado “a Suíça do Médio Oriente”, modelo de coexistência comunitária, oásis de liberdade, prosperidade e cultura, para o inferno de um Estado falido, usurpado por uma elite corrupta? A explosão do porto de Beirute não foi apenas uma catástrofe. É um corte na História do Líbano. “Beirute nunca mais será a mesma”, escreve um jornalista. “O Líbano que conhecemos está a morrer”, observa um analista. É o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Nassif Hitt, quem declara: “O Líbano está a caminho de se transformar num Estado falido.

O Líbano tem uma geografia feliz na borda do Mediterrâneo, o que faz dele um importante entreposto comercial. Do ponto de vista geopolítico, o quadro é mais ameaçador. Está encravado entre Israel e a Síria. Damasco, a quem está umbilicalmente ligado, vê nele uma extensão do seu território. Israel pretendeu fazer dele um Estado-tampão sob sua influência. Por fim, é um ponto quente da concorrência entre o Irão e a Arábia Saudita. Sofreu as consequências do conflito palestiniano, teve uma longa guerra civil (1975-1990) que desembocou na ocupação síria e na ocupação do Sul do país por Israel. De facto, goza de uma soberania incompleta.

Terceiro elemento, o que mais condiciona a vida política do Líbano: o comunitarismo político. Tem 18 confissões religiosas e três comunidades dominantes – cristãos maronitas e muçulmanos, sunitas e xiitas. E uma forte comunidade drusa. Alberga ainda 300 mil refugiados palestinianos (confinados em campos) e os novos refugiados da guerra síria. O problema não é o mosaico religioso: é a organização da vida política em termos confessionais, o que se acentuou após a guerra civil. Desta vez, os libaneses não podem atribuir a crise a intervenções estrangeiras: ela espelha o apodrecimento do sistema político.

Há duas visões do Líbano, disse um especialista, Jeffrey Feltman, numa audição na Câmara dos Representantes. “Há uma visão romântica, que vê uma dinâmica sociedade multi-confessional e relativamente aberta à democracia, uma incrível cultura, a cozinha, a História e a hospitalidade. Na visão alternativa, o Líbano evoca uma sangrenta guerra civil e o massacre de marines e diplomatas americanos [em 1983], perigoso entreposto do Irão, ameaçando os interesses dos Estados Unidos na região e para lá dela.”

O comunitarismo

De onde vem este sistema? O País do Cedro pertenceu aos sucessivos impérios árabes, foi incorporado no Império Otomano no século XVI, ficando sob mandato francês depois da I Guerra Mundial e da derrota otomana. Foram os franceses que desenharam, em detrimento da Síria e em favor dos cristãos maronitas, as actuais fronteiras.

No censo de 1932, o único realizado, os cristãos maronitas representavam metade da população, seguidos por sunitas e xiitas. Com a independência, em 1943, as várias comunidades e os franceses acordaram numa repartição do poder. Um “pacto nacional” não escrito determinou que os cristãos, maioritários, disporiam da Presidência da República e do comando do Exército, enquanto o primeiro-ministro seria sunita e o presidente do Parlamento seria xiita. Note-se que os drusos não foram recenseados como muçulmanos. Este sistema funcionou, embora produzindo crescente clientelismo e bloqueando muitas vezes a tomada de decisões. Mas actualizar o censo seria violar um tabu.

A primeira grande crise ocorreu em 1958, quando o Presidente Camille Chamoun decidiu ser reeleito, o que era inconstitucional. Recorreu aos Estados Unidos invocando a ameaça do nacionalismo árabe: Egipto e Iraque. Marines desembarcaram em Beirute e Chamoun ficou no poder. Foi a primeira grande fractura política no Líbano.

Ainda hoje o sistema se mantém, mas a dinâmica demográfica abalou aquele delicado mecanismo de relojoaria. O peso dos cristãos baixou, subindo o dos árabes, sobretudo o dos xiitas, que reclamam hoje ser a maior comunidade. A obsessão com os equilíbrios demográficos não se limita ao Estado. As mulheres libanesas casadas com estrangeiros não podem reclamar a nacionalidade libanesa para os seus filhos. O sistema político perdeu a relativa legitimidade das origens.

O Líbano dispõe das melhores elites intelectuais do mundo árabe, mas também acabou por produzir “as piores oligarquias económicas”, diz o politólogo Sami Nair. Os oligarcas raramente pagam impostos e têm o hábito de colocar os capitais no estrangeiro. Meia dúzia de oligarcas, das várias comunidades, controlam os fluxos financeiros do Estado, transformado num “sistema patrimonial de clientes e patronos”, a que é estranha qualquer noção de “interesse nacional”. Metade da população vive abaixo do limiar da pobreza e não podemos ter ainda a noção plena do impacto da explosão de Beirute. Ao mesmo tempo, um por cento dos libaneses recebem 25% do PIB. Para assustar os políticos libaneses, do Presidente Michel Aoun (cristão) a Hassan Nasrallah, chefe do xiita Hezbollah, foi preciso chegar à bancarrota. Que fazer agora?

“Depois da guerra civil, a pertença confessional determina as identidades”, diz a escritora libanesa Dominique Edde.É-se xiita, sunita, maronita, druso ou greco-cristão antes de se ser pobre ou humilhado. Melhor: é-se xiita, sunita ou druso, antes de partilhar a mesma religião. As alavancas das revoltas sociais são assim hipotecadas pelo funcionamento comunitário.”

“Nós contra eles”

O que se seguiu à guerra civil foi uma mudança qualitativa, escreve Maha Yahya, directora do Centro Carnegie para o Médio Oriente. A exigência de abolição do regime, nas manifestações que remontam a Outubro de 2017, “é um libelo contra o catastrófico desgoverno do país pela sua classe política”. Os chefes da guerra civil entraram nas instituições, mas isso não significou renovação, antes deterioração.

As manifestações em curso no Líbano espelham as contradições da sociedade. “Exprimem uma revolta contra o sistema e o completo colapso da confiança em todas as instituições. Neste sentido, a revolta é acompanhada por um crescente sentido de solidariedade nacional e a fórmula ‘nós contra eles’ já não diz respeito a seita, etnicidade, classe ou género. É sobre a classe política corrupta contra o resto do país.” Mas, previne Yahya: “No seu contexto global, protestar contra o sectarismo não significa que as pessoas abandonem a sua identidade confessional.” Esta identidade é o seu último refúgio.

Uma reforma constitucional não resolve os problemas do Líbano. Mas sem mudar radicalmente o sistema político, nenhuma das reformas essenciais será possível. O processo pode vir a tornar-se violento. Muito depende da reacção das elites. Para políticos e oligarcas, a escolha é difícil: a manutenção do sistema é para eles uma “questão existencial”. Mas essas mesmas elites estão encostadas à parede e enfrentam o dilema do Leopardo: mudar para sobreviver. A explosão do porto de Beirute é uma viagem sem regresso.

Last but not the least: o desfecho da crise libanesa terá repercussões geopolíticas – interessa à Europa, aos Estados Unidos, à Rússia, ao Irão e à China, que parece disposta a ocupar um eventual vazio. Será assunto para outro texto.

tp.ocilbup@sednanrefaj

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