sábado, 8 de agosto de 2020

Até tem


Digo, envergadura. Basta ser-se suficientemente inteligente e honesto, para que a envergadura se denuncie. É o caso.

TAPAS Y CASTAÑOLAS - 2

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 08.08.20

o determinismo histórico de Marx autoproclamou-se uma falácia.

O mundo em que vivemos é quântico, não é um tabuleiro de xadrez e os modelos econométricos não passam de exercícios académicos cujas erroníssimas previsões deviam de ter pudor em sair pelas portas das Academias.

Mais vale recorrer a declarações sapientíssimas como aquela dos «prognósticos, só no fim do jogo».

Assim também o raciocínio falacioso de que qualquer pessoa – e não apenas o Rei D. Juan Carlos - poderia ter conseguido fazer a transição da Espanha hermética e autocrática para a Espanha democrática e liberal. Trata-se (a da outra pessoa) de uma experiência não experimentada a que é impossível conhecer os resultados. Que essa transformação era inevitável face aos condicionalismos da época. Sim! Isso ou exactamente o contrário. Em Espanha, como já o demonstraram inúmeras vezes ao longo da História, eles não hesitam muito para se ferrarem todos
à chapada.

Deixemo-nos, pois, de especulações e assentemos numa realidade indesmentível: quem fez a transição pacífica foi o Rei D. Juan Carlos e mais ninguém.

* * *

Corre por aí que o Rei D. Juan Carlos recebeu luvas do seu «irmão», o Rei da Arábia Saudita, no âmbito de um negócio de equipamento ferroviário. Aqui, sim, confesso a minha perplexidade e total incapacidade para defender o Rei emérito de Espanha. De facto, eu não sabia que a Arábia Saudita produz equipamento ferroviário e que D. Juan Carlos recebera luvas para convencer a Renfe a comprar o equipamento saudita. Também parece muito mal o Rei árabe andar por aí fora a corromper clientes. Faz-me lembrar Jacques Chirac que foi à África do Sul vender Mirages e, diz-se, distribuir algumas caixas de marrons glacés. Neste negócio também era o vendedor a corromper o comprador, o que dá para perceber como «argumento» de opção de compra. É feio, muito feio, mas percebe-se a tentação do infiel sobre o Rei cristão. O equipamento ferroviário (sobretudo o de última geração e topo de gama) de fabrico saudita é muito melhor que o homólogo alemão, inglês ou mesmo espanhol.

Afastando a ironia e regressando à seriedade, a distorção das condições normais de mercado a que vulgarmente chamamos corrupção, exerce-se do lado da oferta sobre a procura de modo a influenciar o comprador. O contrário seria um absurdo que apenas iria encarecer o produto comprado sem qualquer vantagem para quem tem a opção de compra.

Há quem refira o caso BES como exemplo, o que, novamente, é um absurdo. Efectivamente, se isso acontecia, seria o dito banco a oferecer condições bancárias excepcionais a quem procurava um local para guardar o seu dinheiro. Mais uma vez, a oferta a agir pois o inverso não faz qualquer sentido. E como, apesar dos baldados esforços dos marxistas, a Lei da Oferta e da Procura ainda não foi revogada, a das suas corruptelas também está a funcionar.

Portanto, daqui lanço uma sugestão aos que querem atacar D. Juan Carlos: arranjem outros exemplos pois com estes não atingem a honorabilidade do Pai da Democracia Espanhola.

E eu, filosoficamente republicano, não tenho envergadura para merecer mandato para a defesa de um Chefe de Estado ímpar que, afinal, é Rei.

(continua)

Agosto de 2020

Henrique Salles da Fonseca

   

COMENTÁRIOS

Anónimo 08.08.2020: Prossigamos, pois, Henrique, com o tema de Dom Juan Carlos (a seguir, apenas Juan Carlos), em aditamento ao teu post “Tapas y Castañolas e ao meu comentário, ambos de ontem, dia 7. Em linha com que hoje dizes, neste teu segundo post, direi que ninguém de boa-fé (salvo uns tantos, como os parlamentares catalães independentistas que aprovaram, também ontem, uma resolução, na qual declararam “que a Catalunha é republicana e, portanto, não reconhece nem quer ter um rei”) põe em causa o esforço que Juan Carlos teve na consolidação da Democracia em Espanha. Ele conseguiu caminhar em simultâneo, com inquestionável equilíbrio e bom senso, no gume de três espadas: democracia versus franquismo; monarquia versus república e país uno e indivisível versus nacionalismos. Como tu e eu, bem como a generalidade dos teus leitores, somos coetâneos desses factos, não é necessário laborar muito, apenas breves pinceladas a recordar algum contexto. No início deveria ter havido muita desconfiança como se faria a saída do franquismo. A turbulência da revolução portuguesa, a que Kissinger chamou a vacina da Europa, deve ter ajudado Espanha a trilhar pacificamente o caminho para democracia em 1975. Consta que nos primeiros dias da revolução portuguesa, possivelmente em finais de abril de 1974, Juan Carlos, então ainda Príncipe, recebeu clandestinamente Jordi Pujol, libertado há alguns anos da prisão, onde tinha estado pelas suas ideias nacionalistas catalães. Este perguntou pelos Condes de Barcelona, que viviam no Estoril, como é conhecido, ao que o Príncipe terá respondido que estavam bem e não haveria problema, atendendo à civilidade e à sensatez do povo português. E depois, exclamou: “Vamos a ver como nós faremos”. Mas a prova real do empenho do Rei na democracia e no afastamento do franquismo, deu-se, como se sabe, em 23 de fevereiro de 1981, quando abortou a intentona militar. Diz-se que, perante as instruções reais, um alto responsável militar ter-lhe-á replicado: “Às suas ordens, Vossa Majestade, mas é uma pena – que grande oportunidade se perde”. Ademais, não era pacífico o restabelecimento da monarquia, pois o regime imediatamente anterior ao franquismo era republicano, a escolha do regime subsequente – Monarquia - fora opção do Caudilho, para além de que haveria nessa década de 70 uma rarefacção de monárquicos, aliás, reconhecida por Juan Carlos perante Santiago Carrillo. Com o decurso do tempo, passou a haver admiradores de Juan Carlos, mas isso não significou, necessariamente, que o número de monárquicos tenha aumentado. Utilizando uma expressão usada em Espanha, duvido que o maior número de “Juan Carlistas” tenha sido acompanhado, em análoga magnitude, pelo incremento de monárquicos. Finalmente, quanto ao terceiro aspecto, é, infelizmente, demasiado conhecido para acrescentar alguma coisa mais, salvo pôr em evidência a pacificação do País Basco, o que não significa que o espírito nacionalista não esteja aí vivo como o está na Catalunha. É comumente aceite que um rei é-o 24 horas por dia, que não há distinção entre vida pública e privada, que se espera dele uma conduta exemplar, que é na Política onde mais facilmente o que parece é, bem como onde o princípio básico de Direito Penal da presunção de inocência é mais facilmente esquecido. Devo dizer-te que também não tenho explicação para o alegado presente ser dado pelo comprador da linha férrea entre Medina e Meca. No mundo cristão e ocidental, pelo menos, esses presentes são, como dizes, fornecidos pelo vendedor, salvo se coisa inversa ocorra na civilização islâmica. O certo é que por essa e/ou outras razões o crédito que Juan Carlos tinha junto dos espanhóis, e que não era infinito, viu-se reduzido e o Rei Emérito sentiu necessidade de sair de Espanha. Parafraseando o jornalista a que me referi no meu comentário anterior, espero muito sinceramente que o exílio, seja este por moto próprio, ou imposto por Filipe VI, consiga “regenerá-lo” junto do povo espanhol, assim como minimizar os danos eventualmente causados à Monarquia, mas isso não passa de um desejo meu (nosso, atrevo-me a dizer), que o futuro - e não será longínquo - confirmará ou não. Abraço. Carlos Traguelho

 

COMENTÁRIOS

Anónimo 08.08.2020: Prossigamos, pois, Henrique, com o tema de Dom Juan Carlos (a seguir, apenas Juan Carlos), em aditamento ao teu post “Tapas y Castañolas e ao meu comentário, ambos de ontem, dia 7. Em linha com que hoje dizes, neste teu segundo post, direi que ninguém de boa-fé (salvo uns tantos, como os parlamentares catalães independentistas que aprovaram, também ontem, uma resolução, na qual declararam “que a Catalunha é republicana e, portanto, não reconhece nem quer ter um rei”) põe em causa o esforço que Juan Carlos teve na consolidação da Democracia em Espanha. Ele conseguiu caminhar em simultâneo, com inquestionável equilíbrio e bom senso, no gume de três espadas: democracia versus franquismo; monarquia versus república e país uno e indivisível versus nacionalismos. Como tu e eu, bem como a generalidade dos teus leitores, somos coetâneos desses factos, não é necessário laborar muito, apenas breves pinceladas a recordar algum contexto. No início deveria ter havido muita desconfiança como se faria a saída do franquismo. A turbulência da revolução portuguesa, a que Kissinger chamou a vacina da Europa, deve ter ajudado Espanha a trilhar pacificamente o caminho para democracia em 1975. Consta que nos primeiros dias da revolução portuguesa, possivelmente em finais de abril de 1974, Juan Carlos, então ainda Príncipe, recebeu clandestinamente Jordi Pujol, libertado há alguns anos da prisão, onde tinha estado pelas suas ideias nacionalistas catalães. Este perguntou pelos Condes de Barcelona, que viviam no Estoril, como é conhecido, ao que o Príncipe terá respondido que estavam bem e não haveria problema, atendendo à civilidade e à sensatez do povo português. E depois, exclamou: “Vamos a ver como nós faremos”. Mas a prova real do empenho do Rei na democracia e no afastamento do franquismo, deu-se, como se sabe, em 23 de fevereiro de 1981, quando abortou a intentona militar. Diz-se que, perante as instruções reais, um alto responsável militar ter-lhe-á replicado: “Às suas ordens, Vossa Majestade, mas é uma pena – que grande oportunidade se perde”. Ademais, não era pacífico o restabelecimento da monarquia, pois o regime imediatamente anterior ao franquismo era republicano, a escolha do regime subsequente – Monarquia - fora opção do Caudilho, para além de que haveria nessa década de 70 uma rarefacção de monárquicos, aliás, reconhecida por Juan Carlos perante Santiago Carrillo. Com o decurso do tempo, passou a haver admiradores de Juan Carlos, mas isso não significou, necessariamente, que o número de monárquicos tenha aumentado. Utilizando uma expressão usada em Espanha, duvido que o maior número de “Juan Carlistas” tenha sido acompanhado, em análoga magnitude, pelo incremento de monárquicos. Finalmente, quanto ao terceiro aspecto, é, infelizmente, demasiado conhecido para acrescentar alguma coisa mais, salvo pôr em evidência a pacificação do País Basco, o que não significa que o espírito nacionalista não esteja aí vivo como o está na Catalunha. É comumente aceite que um rei é-o 24 horas por dia, que não há distinção entre vida pública e privada, que se espera dele uma conduta exemplar, que é na Política onde mais facilmente o que parece é, bem como onde o princípio básico de Direito Penal da presunção de inocência é mais facilmente esquecido. Devo dizer-te que também não tenho explicação para o alegado presente ser dado pelo comprador da linha férrea entre Medina e Meca. No mundo cristão e ocidental, pelo menos, esses presentes são, como dizes, fornecidos pelo vendedor, salvo se coisa inversa ocorra na civilização islâmica. O certo é que por essa e/ou outras razões o crédito que Juan Carlos tinha junto dos espanhóis, e que não era infinito, viu-se reduzido e o Rei Emérito sentiu necessidade de sair de Espanha. Parafraseando o jornalista a que me referi no meu comentário anterior, espero muito sinceramente que o exílio, seja este por moto próprio, ou imposto por Filipe VI, consiga “regenerá-lo” junto do povo espanhol, assim como minimizar os danos eventualmente causados à Monarquia, mas isso não passa de um desejo meu (nosso, atrevo-me a dizer), que o futuro - e não será longínquo - confirmará ou não. Abraço. Carlos Traguelho

Anónimo 09.08.2020: Não comento o pist Apenas uma chamada de atenção. Segundo li - e penso estar certo - quem vendia os comboios era a Espanha para ligações de alta velocidade na Arábia Saudita (entre Riade e Meca salvo erro) Sendo verdade o que escrevi tudo muda de figura e já entramos na oferta Espanhola e procura Saudita Pois....
Henrique Salles da Fonseca, 09.08.2020:
É precisamente como diz. Foi com ironia que inverti o sentido da corrupção para acentuar o absurdo.

 

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