, em «O nosso plano de recuperação é um cozido à
portuguesa», in Público,
13 de Julho de 2020, extraio os seguintes dizeres, como comentário ao texto
seguinte de FILIPE CARREIRA DA SILVA:
«A
estratégia portuguesa é menos aborrecida, menos anal-retentiva, mais
imaginativa e abundante em propostas e ideias do que a alemã. Mas dá-me a
sensação que a estratégia alemã foi pensada para ser cumprida, e aí é que a
porca torce o rabo.»
«No mesmo dia, mãos amigas fizeram-me chegar a “Visão
estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal
2020-2030”, da autoria de António Costa Silva, e o documento sucintamente intitulado “Estratégia
Industrial 2030”, do ministério federal alemão da Economia, sem autor individual, e apenas
com o subtítulo “Orientações para uma política industrial alemã e europeia”. Em suma, a nossa estratégia
de recuperação e a estratégia alemã (ainda pré-covid, publicada em novembro
do ano passado).
A comparação entre ambos os documentos é instrutiva. A
começar pelo tamanho. A estratégia portuguesa, escrita por um só autor, tem 120
páginas. A estratégia alemã tem 35 páginas. Isto significa que a estratégia
alemã tem pouco mais de um quarto da extensão da estratégia portuguesa, para um
país com oito vezes mais população (não fui verificar a diferença de PIB para
não me deprimir).»
Como sempre,
enfim, é o que parece que somos, amantes da bela palavra e da bela forma, já o
dizia Afonso da Maia, em conversa com o neto Carlos «O português
nunca pode ser homem de ideias, por causa da paixão da forma. A sua mania é
fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário
falsear a ideia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em
beleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas
salve-se a bela frase. (Cap. IX)». Provavelmente
Costa e Silva também se deixou embalar pelo estilo e a profusão, como também
observa Filipe Carreira
da Silva no texto
infra, não há que esperar outra coisa.
Para mais,
isso de recuperar exige reais qualidades de hombridade e trabalho, mas este nem
sempre é acompanhado daquela. É melhor esperar para ver, mais uma vez. Lá pelas
Alemanhas é outra coisa, as propostas breves são para ser cumpridas, segundo Rui Tavares… Por cá, é outra loiça, as propostas
são longas, tal como no Ministério da Educação, com muita documentação, muitas
reuniões de trabalho, pouco tempo para se estudar de facto… Pouca uva. O
costume.
OPINIÃO
Costa Silva
A Visão Estratégica de António Costa
Silva tem duas enormes qualidades e um grande defeito: em todo o documento não
encontramos uma ideia nova, algo verdadeiramente inovador.
FILIPE CARREIRA DA
SILVA
OBSERVADOR 6 DE
AGOSTO DE 2020
António Costa Silva apresentou
há dias a sua Visão Estratégica para o Plano
de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030. Entretanto, deu
uma entrevista ao Expresso e outra ao Jornal de Negócios em resposta a algumas das críticas que se
fizeram ouvir. Em ambas as ocasiões, Costa Silva apresenta-se da mesma
maneira. Frontal, sóbrio e empenhado em ajudar a tirar o país da crise
provocada pela
pandemia da covid-19. Mas quer na sua Visão, quer nas entrevistas
que deu, Costa Silva não fica isento de críticas.
Comecemos
pela Visão Estratégica.
Em consulta pública até ao dia 21 de agosto, trata-se de um documento com
duas partes. A primeira parte descreve o contexto em que a presente crise
se insere. É-nos oferecido um resumo dos principais
constrangimentos estruturais do país, um retrato de uma sociedade em mudança,
bem como as principais oportunidades e vantagens competitivas. Só chegados à página 68 é que
nos é apresentado o Plano para a Recuperação Económica propriamente dito. O Plano inclui dez “eixos
estratégicos”, ou áreas prioritárias de
investimento, para tirar
o país da crise. São elas: infraestruturas, qualificação da população,
saúde, Estado social, reindustrialização, reconversão industrial, energia,
coesão territorial, cidades, e o chamado sector terciário (turismo, cultura,
comércio). Na última parte, a Visão Estratégica deixa
algumas considerações sobre as formas de financiamento destas
áreas, incluindo constrangimentos
(burocracia, sistema bancário) e soluções. Por exemplo, fala-se no Estado
ter “uma espécie de ‘Loja do Cidadão’ para as empresas”. Outra ideia é a criação de um portal
público em que todos possamos ver como os
Fundos Europeus estão a ser distribuídos e executados.
O que dizer da Visão Estratégica de Costa Silva?
Tem duas enormes qualidades e um grande defeito.
A
primeira qualidade é a sua exaustividade. Cobre praticamente todas as principais áreas de
governação. Não deixa nenhum grande sector de actividade de fora. Dada a
magnitude da presente crise, é importante tentar ser-se exaustivo e
oferecer uma visão de conjunto do problema.
A
segunda qualidade é o nível da análise. É particularmente forte nos temas que conhece melhor
(ambiente, energia), mas em nenhum deles parece falar de cor. Pelo
contrário, a sua Visão Estratégica é um documento muito consistente. É,
simultaneamente, abrangente e preciso. Não é um pequeno feito.
Mas tem um enorme defeito. Em todo o documento, não encontramos uma ideia
nova, algo verdadeiramente inovador. Tudo o que lá encontramos já foi discutido
vezes sem conta, da necessidade de se reformar a administração pública ao
imperativo de se investir na qualificação dos portugueses (lembram-se da
“paixão pela educação” de Guterres nos anos 90?). Ou da necessidade de se
estabelecer uma “combinação virtuosa” entre o Estado e o mercado, igualmente
uma ideia que fez escola entre nós nos anos 90? O que dizer
da necessidade de reflectirmos sobre o futuro do nosso Estado Social? Ou de se apostar na coesão
de um território partido em dois pelo menos desde os anos 50?
Ou de pensarmos num novo paradigma para as nossas cidades e a mobilidade? Na realidade,
não me lembro de nenhum grande debate sobre o desenvolvimento do nosso país (ou
melhor, sobre as causas do nosso subdesenvolvimento) que não seja aqui passado
em revista. Já
ideias realmente originais, nem uma. É uma visão do passado. Bem feita, séria,
honesta. Não é uma visão do futuro. Não aponta
novos caminhos cujos riscos possamos avaliar. Quase consensual no diagnóstico. Pobre
no prognóstico que oferece.
“Precisamos
de um paradigma novo”, diz em entrevista. Mas à luz da sua Visão Estratégica,
isto soa mais a desejo do que a uma proposta.
Em
boa verdade, pensar um novo paradigma das relações entre Estado,
economia e sociedade é tarefa de génio – ou de uma geração. De igual forma, fazer prognósticos não é tarefa fácil.
O risco de cairmos no domínio da opinião é grande. De propormos soluções
erradas para os problemas certos. Ou de propor soluções que, apesar de
certeiras, são impossíveis de realizar, acabando assim por agravar o problema
que se propunham resolver. Nas
entrevistas que deu, Costa Silva
parece bem consciente destes riscos. Quando fala em como “criar riqueza”,
apresenta exemplos concretos e plausíveis. Por exemplo, a ideia de se fomentar
consórcios financiados por capitais estrangeiros e nacionais para evitar a
captura da economia por entidades externas ao nosso país.
Mas,
repito, nada disto é novo. Há décadas que ouvimos estas opiniões. Mas a
realidade é que a taxa de crescimento económico nos últimos 20 anos ficou
próxima do zero. A banca portuguesa está hoje na mão de
espanhóis. Ou seja, a distância entre o
discurso de pessoas como Costa Silva e as decisões tomadas pelos nossos
políticos é imensa; e, está bem de ver, tem-se revelado desastrosa para
Portugal.
Como
é o primeiro a reconhecer, Costa Silva não é o primeiro nem tão pouco o único
que se propõe pensar estrategicamente o futuro de Portugal. Mas, nesta altura,
é dos poucos que tem o ouvido do primeiro-ministro. António Costa esteve bem em
convidar uma pessoa de fora do Governo. Não é usual um governante ouvir
opiniões de fora do círculo do poder sobre matérias centrais de governação.
Acertou também no perfil da pessoa a convidar. O documento apresentado é uma
tentativa séria de responder ao desafio que lhe foi proposto. Mas
é também omisso no essencial: como
criar riqueza, sem repetir os erros do passado? Onde está o tal “paradigma novo” de que fala? Falar em “aplicar
conhecimento” não chega. Afinal, é isso que todos os países desenvolvidos
tentam fazer, Portugal incluído. No nosso caso, diga-se, sem grande sucesso.
Talvez
seja esta, afinal, a grande virtude da Visão Estratégica de Costa Silva. Mais
do que dar respostas, estimular o debate. Dar início ao debate, deixando para
os outros – todos nós – a tarefa de pensar um novo paradigma de desenvolvimento
do nosso país. E devolver ao Governo a responsabilidade de implementar estas
ideias e projectos. De preferência, com transparência e competência. Nisso,
Costa Silva está de parabéns.
Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
TÓPICOS
OPINIÃO CRISE ESTADO CRESCIMENTO GOVERNO ANTÓNIO COSTA SILVA PORTUGAL
Nenhum comentário:
Postar um comentário