quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Aparentemente, e como sempre, a muita parra

 

, em «O nosso plano de recuperação é um cozido à portuguesa», in Público, 13 de Julho de 2020, extraio os seguintes dizeres, como comentário ao texto seguinte de FILIPE CARREIRA DA SILVA: 

«A estratégia portuguesa é menos aborrecida, menos anal-retentiva, mais imaginativa e abundante em propostas e ideias do que a alemã. Mas dá-me a sensação que a estratégia alemã foi pensada para ser cumprida, e aí é que a porca torce o rabo

«No mesmo dia, mãos amigas fizeram-me chegar a “Visão estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030”, da autoria de António Costa Silva, e o documento sucintamente intitulado “Estratégia Industrial 2030”, do ministério federal alemão da Economia, sem autor individual, e apenas com o subtítulo “Orientações para uma política industrial alemã e europeia”. Em suma, a nossa estratégia de recuperação e a estratégia alemã (ainda pré-covid, publicada em novembro do ano passado).

A comparação entre ambos os documentos é instrutiva. A começar pelo tamanho. A estratégia portuguesa, escrita por um só autor, tem 120 páginas. A estratégia alemã tem 35 páginas. Isto significa que a estratégia alemã tem pouco mais de um quarto da extensão da estratégia portuguesa, para um país com oito vezes mais população (não fui verificar a diferença de PIB para não me deprimir).»

 

Como sempre, enfim, é o que parece que somos, amantes da bela palavra e da bela forma, já o dizia Afonso da Maia, em conversa com o neto Carlos «O português nunca pode ser homem de ideias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a ideia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase. (Cap. IX)». Provavelmente Costa e Silva também se deixou embalar pelo estilo e a profusão, como também observa Filipe Carreira da Silva no texto infra, não há que esperar outra coisa.

Para mais, isso de recuperar exige reais qualidades de hombridade e trabalho, mas este nem sempre é acompanhado daquela. É melhor esperar para ver, mais uma vez. Lá pelas Alemanhas é outra coisa, as propostas breves são para ser cumpridas, segundo Rui Tavares… Por cá, é outra loiça, as propostas são longas, tal como no Ministério da Educação, com muita documentação, muitas reuniões de trabalho, pouco tempo para se estudar de facto… Pouca uva. O costume.

 

OPINIÃO

Costa Silva

A Visão Estratégica de António Costa Silva tem duas enormes qualidades e um grande defeito: em todo o documento não encontramos uma ideia nova, algo verdadeiramente inovador.

FILIPE CARREIRA DA SILVA

OBSERVADOR 6 DE AGOSTO DE 2020

António Costa Silva apresentou há dias a sua Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030. Entretanto, deu uma entrevista ao Expresso e outra ao Jornal de Negócios em resposta a algumas das críticas que se fizeram ouvir. Em ambas as ocasiões, Costa Silva apresenta-se da mesma maneira. Frontal, sóbrio e empenhado em ajudar a tirar o país da crise provocada pela pandemia da covid-19. Mas quer na sua Visão, quer nas entrevistas que deu, Costa Silva não fica isento de críticas.

Comecemos pela Visão Estratégica. Em consulta pública até ao dia 21 de agosto, trata-se de um documento com duas partes. A primeira parte descreve o contexto em que a presente crise se insere. É-nos oferecido um resumo dos principais constrangimentos estruturais do país, um retrato de uma sociedade em mudança, bem como as principais oportunidades e vantagens competitivas. Só chegados à página 68 é que nos é apresentado o Plano para a Recuperação Económica propriamente dito. O Plano inclui dez “eixos estratégicos”, ou áreas prioritárias de investimento, para tirar o país da crise. São elas: infraestruturas, qualificação da população, saúde, Estado social, reindustrialização, reconversão industrial, energia, coesão territorial, cidades, e o chamado sector terciário (turismo, cultura, comércio). Na última parte, a Visão Estratégica deixa algumas considerações sobre as formas de financiamento destas áreas, incluindo constrangimentos (burocracia, sistema bancário) e soluções. Por exemplo, fala-se no Estado ter “uma espécie de ‘Loja do Cidadão’ para as empresas”. Outra ideia é a criação de um portal público em que todos possamos ver como os Fundos Europeus estão a ser distribuídos e executados.

O que dizer da Visão Estratégica de Costa Silva?

Tem duas enormes qualidades e um grande defeito.

A primeira qualidade é a sua exaustividade. Cobre praticamente todas as principais áreas de governação. Não deixa nenhum grande sector de actividade de fora. Dada a magnitude da presente crise, é importante tentar ser-se exaustivo e oferecer uma visão de conjunto do problema.

A segunda qualidade é o nível da análise. É particularmente forte nos temas que conhece melhor (ambiente, energia), mas em nenhum deles parece falar de cor. Pelo contrário, a sua Visão Estratégica é um documento muito consistente. É, simultaneamente, abrangente e preciso. Não é um pequeno feito.

Mas tem um enorme defeito. Em todo o documento, não encontramos uma ideia nova, algo verdadeiramente inovador. Tudo o que lá encontramos já foi discutido vezes sem conta, da necessidade de se reformar a administração pública ao imperativo de se investir na qualificação dos portugueses (lembram-se da “paixão pela educação” de Guterres nos anos 90?). Ou da necessidade de se estabelecer uma “combinação virtuosa” entre o Estado e o mercado, igualmente uma ideia que fez escola entre nós nos anos 90? O que dizer da necessidade de reflectirmos sobre o futuro do nosso Estado Social? Ou de se apostar na coesão de um território partido em dois pelo menos desde os anos 50? Ou de pensarmos num novo paradigma para as nossas cidades e a mobilidade? Na realidade, não me lembro de nenhum grande debate sobre o desenvolvimento do nosso país (ou melhor, sobre as causas do nosso subdesenvolvimento) que não seja aqui passado em revista. Já ideias realmente originais, nem uma. É uma visão do passado. Bem feita, séria, honesta. Não é uma visão do futuro. Não aponta novos caminhos cujos riscos possamos avaliar. Quase consensual no diagnóstico. Pobre no prognóstico que oferece.

Precisamos de um paradigma novo”, diz em entrevista. Mas à luz da sua Visão Estratégica, isto soa mais a desejo do que a uma proposta.

Em boa verdade, pensar um novo paradigma das relações entre Estado, economia e sociedade é tarefa de génio – ou de uma geração. De igual forma, fazer prognósticos não é tarefa fácil. O risco de cairmos no domínio da opinião é grande. De propormos soluções erradas para os problemas certos. Ou de propor soluções que, apesar de certeiras, são impossíveis de realizar, acabando assim por agravar o problema que se propunham resolver. Nas entrevistas que deu, Costa Silva parece bem consciente destes riscos. Quando fala em como “criar riqueza”, apresenta exemplos concretos e plausíveis. Por exemplo, a ideia de se fomentar consórcios financiados por capitais estrangeiros e nacionais para evitar a captura da economia por entidades externas ao nosso país.

Mas, repito, nada disto é novo. Há décadas que ouvimos estas opiniões. Mas a realidade é que a taxa de crescimento económico nos últimos 20 anos ficou próxima do zero. A banca portuguesa está hoje na mão de espanhóis. Ou seja, a distância entre o discurso de pessoas como Costa Silva e as decisões tomadas pelos nossos políticos é imensa; e, está bem de ver, tem-se revelado desastrosa para Portugal.

Como é o primeiro a reconhecer, Costa Silva não é o primeiro nem tão pouco o único que se propõe pensar estrategicamente o futuro de Portugal. Mas, nesta altura, é dos poucos que tem o ouvido do primeiro-ministro. António Costa esteve bem em convidar uma pessoa de fora do Governo. Não é usual um governante ouvir opiniões de fora do círculo do poder sobre matérias centrais de governação. Acertou também no perfil da pessoa a convidar. O documento apresentado é uma tentativa séria de responder ao desafio que lhe foi proposto. Mas é também omisso no essencial: como criar riqueza, sem repetir os erros do passado? Onde está o tal “paradigma novo” de que fala? Falar em “aplicar conhecimento” não chega. Afinal, é isso que todos os países desenvolvidos tentam fazer, Portugal incluído. No nosso caso, diga-se, sem grande sucesso.

Talvez seja esta, afinal, a grande virtude da Visão Estratégica de Costa Silva. Mais do que dar respostas, estimular o debate. Dar início ao debate, deixando para os outros – todos nós – a tarefa de pensar um novo paradigma de desenvolvimento do nosso país. E devolver ao Governo a responsabilidade de implementar estas ideias e projectos. De preferência, com transparência e competência. Nisso, Costa Silva está de parabéns.

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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