Por João Miguel Tavares. Com um
bravo pela sua coragem e clareza de argumentação.
I - OPINIÃO: Portugal e o problema da corrupção –
parte 2
JOÃO MIGUEL
TAVARES
PÚBLICO, 27 de Agosto de 2020
Façamos um breve resumo do que
aconteceu em Portugal na última meia-dúzia de anos. Um ex-primeiro-ministro foi preso. O grande banco
do regime – o BES – faliu. Uma das maiores empresas portuguesas – a PT – foi
destruída. Os dois principais líderes da empresa mais poderosa do país – a EDP
– vão ser acusados de corrupção activa e já foram afastados dos cargos. No Tribunal da
Relação de Lisboa, dois juízes terão andado a vender acórdãos e os seus dois últimos
presidentes são suspeitos de cumplicidade.
Reparem
na gravidade da situação: a corrupção chegou aos cargos mais altos do poder
político, do poder económico e do poder judicial. Tudo foi contaminado. Em
Itália, o regime caiu. Por cá, resmunga-se muito, mas continua a tratar-se o
cancro com aspirinas.
Àquele
conjunto podemos juntar o futebol, deputados, câmaras, associações, institutos de solidariedade social, forças de segurança, advogados, procuradores do Ministério Público, já para não falar nas relações suspeitas com o
jornalismo. Não parece
haver uma única área intocada pela corrupção. E, no entanto, caímos
inexplicavelmente num duplo erro ao reflectir sobre o tema: 1) olhamos para cada caso de forma individual, e não
como um problema estrutural, ou seja, como uma cultura de corrupção instalada
no coração do regime; 2) tendemos
a moralizar cada caso e a encará-lo como uma falha de carácter dos envolvidos,
como se o problema residisse em questões de ética pessoal e não no desenho
institucional do regime político e jurídico português e dos incentivos (ou da
falta deles) no combate à corrupção.
No número 51 dos Federalist Papers, escrito por James Madison em
1788, há um excerto famoso sobre a natureza
humana que ajuda a perceber o argumento (a tradução é minha): “Se
os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos
governassem os homens, não seriam necessários controlos externos ou internos de
governo. Na construção de uma forma de governo para ser administrada por homens
sobre homens, a grande dificuldade é esta: primeiro, é necessário conseguir que
o governo controle os governados; de seguida, é necessário obrigar o governo a
controlar-se a si próprio.”
O
grande mérito dos founding fathers que
criaram os Estados Unidos da América é que, juntamente com a aspiração aos
grandes ideais (“life, liberty and the pursuit of happiness”), cultivavam uma profunda desconfiança sobre a
natureza humana, que deu origem a uma obsessão: o firme propósito de controlar
todos os excessos de poder. Madison não
estava preocupado em fazer o bem – estava preocupado em prevenir-se contra o
mal.
Essa deveria ser também a nossa preocupação. Numa pessoa corrupta certamente escasseiam bons
valores morais, mas não compete a um regime político corrigir a natureza
humana – compete-lhe, isso sim, garantir que a arquitectura do regime não incentiva a corrupção.
Ora, aquilo que temos em Portugal são inúmeros
estímulos à criação de trapaceiros e à preservação da sua impunidade: 1)
o sistema de justiça é de uma lentidão exasperante; 2) o excesso
de garantias de defesa permite o infinito arrastamento dos processos; 3) faltam meios para a investigação da criminalidade
complexa; 4) o
ordenamento jurídico não contempla formas eficazes de combate à corrupção, como
a delação premiada ou o enriquecimento ilícito; e, sobretudo, 5) o país está pejado de incentivos à economia
extractiva e à troca de favores políticos. Este ponto 5 será o tema do meu próximo artigo.
Jornalista
TÓPICOS
POLÍTICA CORRUPÇÃO JUSTIÇA OPINIÃO MINISTÉRIO PÚBLICO TRIBUNAIS PT
UM COMENTÁRIO (de 85)
Luís
Azenha Bonito EXPERIENTE: É necessário a convocação da memória.
Pelos factos e pela interpretação livre e fundamentada, o artigo é da maior
importância. É curioso, ou preocupante, depende do olhar, verificar que, em
Portugal, o número de médicos subiu de 28.016 (1990) para 55.432 (2019); o número
de enfermeiros subiu de 28154 (1990) para 75773 (2018); no mesmo período, o
número de magistrados subiu de 1028 (1990) para 1734 (2019). Resultados destes
números: o Serviço Nacional de Saúde é dos melhores do mundo e o sistema(zinho)
de justiça(zinha) é dos mais atávicos e dos mais fracos do mundo... A
centralidade da análise e discussão deve ser em torno da justiça e da
corrupção. Quanto ao resto, até agora, tudo bem... 27.08.2020
…………
II -Portugal e o problema da corrupção – parte 3
A ida de políticos para os conselhos
de administração de grandes empresas está relacionada com o nível de corrupção
do país e com a importância das decisões governamentais em áreas altamente
reguladas, como a energia ou as telecomunicações.
JOÃO MIGUEL
TAVARES
II- PÚBLICO,
29 DE AGOSTO DE 2020
Portugal e o
problema da corrupção – parte 3
Há
duas semanas, foi notícia um estudo internacional da Universidade
Católica que analisou 12 mil nomeações de antigos detentores de cargos públicos
para lugares em grandes empresas, em 14 países diferentes. Portugal não
foi incluído, mas a conclusão é fácil de extrapolar: a ida de políticos para os
conselhos de administração de grandes empresas está relacionada com o nível de
corrupção do país e com a importância das decisões governamentais em áreas
altamente reguladas, como a energia ou as telecomunicações.
Por
isso, de cada vez que vir ex-ministros, ex-secretários de Estado, ex-deputados,
ex-assessores, ex-embaixadores ou amigos do primeiro-ministro espalhados por
conselhos de administração, geralmente em cargos não-executivos e tantas vezes
em áreas das quais não percebem um caracol, já sabe porque é que estão lá, e
pode até citar o estudo da Católica: ou fizeram bons favores a essas empresas
no passado, ou têm os contactos certos no presente, conseguindo chegar com
rapidez a quem manda e a quem decide.
A
maior parte desses ex-políticos não são corruptos, no sentido criminal do
termo. Mas fazem parte de uma cultura de corrupção, enquanto peças fundamentais
de uma economia extractiva baseada em favores políticos.
Mais
uma vez, e como referi no meu último
artigo, a questão moral é a menos interessante. Embora o
senso-comum nos diga hoje que todos os países do mundo deveriam ser como a Suécia, a verdade é que a maior parte dos países continua a
ser como Angola, e a
própria Suécia o foi durante muitos séculos. O grande milagre político não é a lógica tribal,
que leva a abocanhar o que está disponível, mas o desenvolvimento de sociedades
livres orientadas pela “mão invisível” de Adam Smith. Em sociedades institucionalmente precárias, é
óbvio que as elites açambarcam para comprar influência, pois é isso que permite
a sua perpetuação no poder (seja ela pessoal ou partidária).
Estes problemas agravam-se em países economicamente frágeis, como Portugal,
com empresas descapitalizadas, um Estado gargantuesco e o maná dos fundos
europeus ao dispor do poder central. Numa
sociedade onde é sempre preciso mais um papel, o encosto das empresas ao Estado é uma forma
perfeitamente racional de agir. É a lei do menor esforço: tal como a natureza é sempre económica nas suas
acções, também uma empresa procura lucrar o máximo com o esforço mínimo – e daí
que contratar um ex-ministro possa compensar vários anos de inovação ou de
busca de alternativas para o negócio.
Enquanto uma assinatura valer mais do
que uma boa ideia, haverá sempre demasiada corrupção. O regime português promove-a de várias formas: 1) a economia
está
brutalmente dependente dos favores do Estado;
2) a justiça tem falta de meios humanos e legais; 3) o
sistema partidário é dominado por grupúsculos de escassos milhares de
militantes; 4) o escrutínio mediático é frágil; 5) a sociedade
civil é demasiado passiva.
Como é que se abate uma cultura de corrupção? É muito difícil. Mesmo com terramotos políticos, o que costuma
acontecer é a troca de uma elite predatória por outra (veja-se
Itália ou o Brasil). A luta
contra a corrupção ganha-se passo a passo, com melhores leis, maior liberdade
económica, uma sociedade civil mais forte, e, claro, vigiando, vigiando,
vigiando. Não fechar os olhos às inúmeras alarvidades que são feitas à frente
do nosso nariz já é um pequeno passo. É para isso que serve o jornalismo, e é
isso que se continuará a fazer por aqui.
Jornalista
COMENTÁRIOS
(de 33)
Marielibere
INICIANTE: As divisões entre esquerda, direita e meio já há muito que não me
interessam. Onde estão os políticos honestos ? Será que existem? É difícil pois
para obter uma posição no poleiro tem que se pactuar e muito com os culpados de
ilegalidades e meias verdades e assim se cria a cumplicidade e as teias. A
corrupção é um tecido que envolve toda a sociedade a todos os níveis Muitos nem
consciência disso têm. O Estado e os políticos são uma reflexão e um produto da
sociedade civil. Temos o que merecemos. Temos o que escolhemos.
Joao Garrett
INICIANTE: Muito bom, obrigado por estes seus
artigos. Continue assim, no bom jornalismo de escrutínio!
BinoC INICIANTE: O sistema educativo pode ser bom para começar a mudar a
cultura e para desenvolver a noção do interesse comum. 29.08.2020
EXPERIENTE: O sistema
educativo ensina a cultura portuguesa. Não a combate. Isso seria o cúmulo da
manipulação das crianças. 30.08.2020
RustyTachikoma INICIANTE: A educação das crianças, seja pelos pais ou pelas
escolas, quer se goste do termo ou não, é sempre uma forma de manipulação. Como
pais e como educadores temos a responsabilidade de transmitir o conhecimento e
os valores que achamos que devemos passar. À medida que crescemos e nos vamos
tornando adultos escolhemos se continuamos a aderir a esses valores e/ou
aderimos a outros. Nenhuma cultura é perfeita e em Portugal há claramente uma
cultura de chico-espertismo e de pequena corrupção/"favorzimos".
muitas vezes até de desprezo pelo conhecimento que devia ser claramente
combatida em casa e na escola.
liteira.de.spam MODERADOR: JMT não abordou o papel do jornalismo, o impacto da
generalizada falta de qualidade e, em particular, a quase inexistência de
jornalistas isentos. Quem lê algumas crónicas de opinião, percebe rapidamente
que há certos jornalistas/opinion makers com dois pesos e duas medidas. As
mudanças começam por dentro. Como se pode esperar uma mudança no status quo da
nossa sociedade se o jornalismo, um dos poderes da democracia, que deve ser
factual e isento, tem na sua maioria jornalistas que não conseguem despir a camisola
das suas convicções políticas e que, como tal, fazem vista grossa às situações
dúbias daqueles com os quais partilham ideologias. Aqueles, com exposição
mediática e um espaço informativo e de denúncia, têm que dar o exemplo! 29.08.2020
…………….
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