segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Continuação do tema sobre corrupção

 

Por João Miguel Tavares. Com um bravo pela sua coragem e clareza de argumentação.

I - OPINIÃO: Portugal e o problema da corrupção – parte 2

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 27 de Agosto de 2020

Façamos um breve resumo do que aconteceu em Portugal na última meia-dúzia de anos. Um ex-primeiro-ministro foi preso. O grande banco do regime – o BES – faliu. Uma das maiores empresas portuguesas – a PT – foi destruída. Os dois principais líderes da empresa mais poderosa do país – a EDP – vão ser acusados de corrupção activa e já foram afastados dos cargos. No Tribunal da Relação de Lisboa, dois juízes terão andado a vender acórdãos e os seus dois últimos presidentes são suspeitos de cumplicidade.

Reparem na gravidade da situação: a corrupção chegou aos cargos mais altos do poder político, do poder económico e do poder judicial. Tudo foi contaminado. Em Itália, o regime caiu. Por cá, resmunga-se muito, mas continua a tratar-se o cancro com aspirinas.

Àquele conjunto podemos juntar o futebol, deputados, câmaras, associações, institutos de solidariedade social, forças de segurança, advogados, procuradores do Ministério Público, já para não falar nas relações suspeitas com o jornalismo. Não parece haver uma única área intocada pela corrupção. E, no entanto, caímos inexplicavelmente num duplo erro ao reflectir sobre o tema: 1) olhamos para cada caso de forma individual, e não como um problema estrutural, ou seja, como uma cultura de corrupção instalada no coração do regime; 2) tendemos a moralizar cada caso e a encará-lo como uma falha de carácter dos envolvidos, como se o problema residisse em questões de ética pessoal e não no desenho institucional do regime político e jurídico português e dos incentivos (ou da falta deles) no combate à corrupção.

No número 51 dos Federalist Papers, escrito por James Madison em 1788, há um excerto famoso sobre a natureza humana que ajuda a perceber o argumento (a tradução é minha): “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os anjos governassem os homens, não seriam necessários controlos externos ou internos de governo. Na construção de uma forma de governo para ser administrada por homens sobre homens, a grande dificuldade é esta: primeiro, é necessário conseguir que o governo controle os governados; de seguida, é necessário obrigar o governo a controlar-se a si próprio.”

O grande mérito dos founding fathers que criaram os Estados Unidos da América é que, juntamente com a aspiração aos grandes ideais (“life, liberty and the pursuit of happiness”), cultivavam uma profunda desconfiança sobre a natureza humana, que deu origem a uma obsessão: o firme propósito de controlar todos os excessos de poder. Madison não estava preocupado em fazer o bem – estava preocupado em prevenir-se contra o mal.

Essa deveria ser também a nossa preocupação. Numa pessoa corrupta certamente escasseiam bons valores morais, mas não compete a um regime político corrigir a natureza humana – compete-lhe, isso sim, garantir que a arquitectura do regime não incentiva a corrupção. Ora, aquilo que temos em Portugal são inúmeros estímulos à criação de trapaceiros e à preservação da sua impunidade: 1) o sistema de justiça é de uma lentidão exasperante; 2) o excesso de garantias de defesa permite o infinito arrastamento dos processos; 3) faltam meios para a investigação da criminalidade complexa; 4) o ordenamento jurídico não contempla formas eficazes de combate à corrupção, como a delação premiada ou o enriquecimento ilícito; e, sobretudo, 5) o país está pejado de incentivos à economia extractiva e à troca de favores políticos. Este ponto 5 será o tema do meu próximo artigo.

Jornalista

TÓPICOS

POLÍTICA  CORRUPÇÃO  JUSTIÇA  OPINIÃO  MINISTÉRIO PÚBLICO  TRIBUNAIS  PT

 

UM COMENTÁRIO (de 85)

Luís Azenha Bonito EXPERIENTE: É necessário a convocação da memória. Pelos factos e pela interpretação livre e fundamentada, o artigo é da maior importância. É curioso, ou preocupante, depende do olhar, verificar que, em Portugal, o número de médicos subiu de 28.016 (1990) para 55.432 (2019); o número de enfermeiros subiu de 28154 (1990) para 75773 (2018); no mesmo período, o número de magistrados subiu de 1028 (1990) para 1734 (2019). Resultados destes números: o Serviço Nacional de Saúde é dos melhores do mundo e o sistema(zinho) de justiça(zinha) é dos mais atávicos e dos mais fracos do mundo... A centralidade da análise e discussão deve ser em torno da justiça e da corrupção. Quanto ao resto, até agora, tudo bem... 27.08.2020

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II -Portugal e o problema da corrupção – parte 3

A ida de políticos para os conselhos de administração de grandes empresas está relacionada com o nível de corrupção do país e com a importância das decisões governamentais em áreas altamente reguladas, como a energia ou as telecomunicações.

JOÃO MIGUEL TAVARES

II- PÚBLICO, 29 DE AGOSTO DE 2020

Portugal e o problema da corrupção – parte 3

Há duas semanas, foi notícia um estudo internacional da Universidade Católica que analisou 12 mil nomeações de antigos detentores de cargos públicos para lugares em grandes empresas, em 14 países diferentes. Portugal não foi incluído, mas a conclusão é fácil de extrapolar: a ida de políticos para os conselhos de administração de grandes empresas está relacionada com o nível de corrupção do país e com a importância das decisões governamentais em áreas altamente reguladas, como a energia ou as telecomunicações.

Por isso, de cada vez que vir ex-ministros, ex-secretários de Estado, ex-deputados, ex-assessores, ex-embaixadores ou amigos do primeiro-ministro espalhados por conselhos de administração, geralmente em cargos não-executivos e tantas vezes em áreas das quais não percebem um caracol, já sabe porque é que estão lá, e pode até citar o estudo da Católica: ou fizeram bons favores a essas empresas no passado, ou têm os contactos certos no presente, conseguindo chegar com rapidez a quem manda e a quem decide.

A maior parte desses ex-políticos não são corruptos, no sentido criminal do termo. Mas fazem parte de uma cultura de corrupção, enquanto peças fundamentais de uma economia extractiva baseada em favores políticos.

Mais uma vez, e como referi no meu último artigo, a questão moral é a menos interessante. Embora o senso-comum nos diga hoje que todos os países do mundo deveriam ser como a Suécia, a verdade é que a maior parte dos países continua a ser como Angola, e a própria Suécia o foi durante muitos séculos. O grande milagre político não é a lógica tribal, que leva a abocanhar o que está disponível, mas o desenvolvimento de sociedades livres orientadas pela “mão invisível” de Adam Smith. Em sociedades institucionalmente precárias, é óbvio que as elites açambarcam para comprar influência, pois é isso que permite a sua perpetuação no poder (seja ela pessoal ou partidária).

Estes problemas agravam-se em países economicamente frágeis, como Portugal, com empresas descapitalizadas, um Estado gargantuesco e o maná dos fundos europeus ao dispor do poder central. Numa sociedade onde é sempre preciso mais um papel, o encosto das empresas ao Estado é uma forma perfeitamente racional de agir. É a lei do menor esforço: tal como a natureza é sempre económica nas suas acções, também uma empresa procura lucrar o máximo com o esforço mínimo – e daí que contratar um ex-ministro possa compensar vários anos de inovação ou de busca de alternativas para o negócio.

Enquanto uma assinatura valer mais do que uma boa ideia, haverá sempre demasiada corrupção. O regime português promove-a de várias formas: 1) a economia está brutalmente dependente dos favores do Estado; 2) a justiça tem falta de meios humanos e legais; 3) o sistema partidário é dominado por grupúsculos de escassos milhares de militantes; 4) o escrutínio mediático é frágil; 5) a sociedade civil é demasiado passiva.

Como é que se abate uma cultura de corrupção? É muito difícil. Mesmo com terramotos políticos, o que costuma acontecer é a troca de uma elite predatória por outra (veja-se Itália ou o Brasil). A luta contra a corrupção ganha-se passo a passo, com melhores leis, maior liberdade económica, uma sociedade civil mais forte, e, claro, vigiando, vigiando, vigiando. Não fechar os olhos às inúmeras alarvidades que são feitas à frente do nosso nariz já é um pequeno passo. É para isso que serve o jornalismo, e é isso que se continuará a fazer por aqui.

Jornalista

COMENTÁRIOS (de 33)

Marielibere INICIANTE: As divisões entre esquerda, direita e meio já há muito que não me interessam. Onde estão os políticos honestos ? Será que existem? É difícil pois para obter uma posição no poleiro tem que se pactuar e muito com os culpados de ilegalidades e meias verdades e assim se cria a cumplicidade e as teias. A corrupção é um tecido que envolve toda a sociedade a todos os níveis Muitos nem consciência disso têm. O Estado e os políticos são uma reflexão e um produto da sociedade civil. Temos o que merecemos. Temos o que escolhemos.

Joao Garrett INICIANTE: Muito bom, obrigado por estes seus artigos. Continue assim, no bom jornalismo de escrutínio!

BinoC INICIANTE: O sistema educativo pode ser bom para começar a mudar a cultura e para desenvolver a noção do interesse comum. 29.08.2020

EXPERIENTE: O sistema educativo ensina a cultura portuguesa. Não a combate. Isso seria o cúmulo da manipulação das crianças. 30.08.2020

RustyTachikoma INICIANTE: A educação das crianças, seja pelos pais ou pelas escolas, quer se goste do termo ou não, é sempre uma forma de manipulação. Como pais e como educadores temos a responsabilidade de transmitir o conhecimento e os valores que achamos que devemos passar. À medida que crescemos e nos vamos tornando adultos escolhemos se continuamos a aderir a esses valores e/ou aderimos a outros. Nenhuma cultura é perfeita e em Portugal há claramente uma cultura de chico-espertismo e de pequena corrupção/"favorzimos". muitas vezes até de desprezo pelo conhecimento que devia ser claramente combatida em casa e na escola.

liteira.de.spam MODERADOR: JMT não abordou o papel do jornalismo, o impacto da generalizada falta de qualidade e, em particular, a quase inexistência de jornalistas isentos. Quem lê algumas crónicas de opinião, percebe rapidamente que há certos jornalistas/opinion makers com dois pesos e duas medidas. As mudanças começam por dentro. Como se pode esperar uma mudança no status quo da nossa sociedade se o jornalismo, um dos poderes da democracia, que deve ser factual e isento, tem na sua maioria jornalistas que não conseguem despir a camisola das suas convicções políticas e que, como tal, fazem vista grossa às situações dúbias daqueles com os quais partilham ideologias. Aqueles, com exposição mediática e um espaço informativo e de denúncia, têm que dar o exemplo!   29.08.2020

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