Em Camões encontramos as explicações de tantos desmandos por cá, de longa
data: «Que um fraco rei faz fraca a forte
gente» (Lus. III 138) Ou ainda: “Dizei-lhe que também dos
Portugueses / Alguns tredores houve algumas vezes.”
(IV, 33). Desde Aljubarrota ao Grito do Ipiranga e mais essa
de “que D. João VI deliberara não
regressar mais e nutria a intenção de, depois de esgotar Portugal, já tão
depauperado em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das possessões espanholas
da América, convertendo-se a dinastia brigantina numa realeza exclusivamente americana…” D. Pedro IV conseguiu atamancar a continuidade do país, lutando por cá e
entregando o reino à filha, para o prosseguimento da história. E foi o que se
viu, até hoje, bem narrado por Jaime Nogueira Pinto.
Até quando,
pois, aqui estaremos, livres, mesmo que economicamente dependentes?
É preciso ter fé.
1820: A tempestade perfeita /premium
Como as principais revoluções
portuguesas que se lhe seguiriam (a de 1910, a de 1926, a de 1974) a revolução
de 1820 começou por ser uma revolução de composição mestiça, isto é, uma
revolução “contra".
JAIME NOGUEIRA
PINTO
OBSERVADOR, 21 ago
2020, início da primeira revolução liberal em Portugal.
Foi no Porto – após uma longa conspiração
de magistrados, comerciantes e influentes locais, que mobilizaram apoios na
guarnição da cidade e noutras unidades do Norte – que se deu o acto inicial de
um período da História nacional a que podemos chamar “Liberalismo Convulso”.
Como as principais revoluções portuguesas que se lhe
seguiriam (a de 1910, a de 1926 e a de 1974), a revolução de 1820 começou por ser uma revolução de
composição mestiça, isto é, uma revolução “contra” ou de coligação negativa
que, depois de vitoriosa, fragmentou os seus participantes – que estavam contra
o statu quo mas que não
estavam de acordo quanto ao que queriam que o viesse a substituir. Tal como em 1974 seriam
vários os projectos em carteira, de spinolistas a comunistas, em 1926
haveria monárquicos e republicanos, conservadores e fascistas e em 1910
republicanos conservadores e radicais, assim também em 1820 eram de
várias espécies os conspiradores. E muitas as modalidades de liberalismo.
Desde logo, um liberalismo (ou um anti
absolutismo) inglês, de “rule of law”, monarquia limitada, oligarquia
censitária e aristocrática, mais de liberdade que de igualdade; e outro,
francês, jacobino, igualitário, quase republicano, mais de igualdade que de
liberdade.
Os chamados “homens do Sinédrio” vinham, na sua maioria, da média burguesia emergente no final do Ancien Régime. Eram juristas, o que queria dizer mediadores ou
especialistas ao serviço das leis do Estado que interpretavam e aplicavam. Nem todos eram maçons, mas Manuel Fernandes
Thomaz, o líder da conspiração e redactor do manifesto, era; bem como Ferreira
Borges e Silva Carvalho. Já a Junta Provisional do Supremo Governo do
Reino, formada a seguir, integrava representantes das três “ordens”: Clero,
Nobreza e Povo. E quando as tropas se concentraram de manhã cedo no Campo
de Santo Ovídio, actual Praça de República, ouviu-se missa.
Há
um aspecto importante que por vezes fica esquecido. É que este
levantamento vintista veio ao arrepio da ordem internacional que, meia dúzia de
anos após a derrota de Napoleão, o Congresso de Viena e a Santa Aliança,
era uma ordem assente nos princípios do Ancien Régime, liderada pelas
monarquias absolutas da Rússia, Áustria e Prússia (fundadoras da Santa
Aliança), com os Bourbon restaurados em França e a
Inglaterra vencedora de Napoleão. A
pentarquia europeia era absolutista e conservadora, indo desde o
czarismo puro e duro ao liberalismo
relativo da Grã-Bretanha.
O czar Alexandre I lançara a
Santa Aliança no rescaldo de Viena, inspirado
por uma estranha figura, a baronesa von Krüdener, que acreditava próxima a Segunda Vinda de
Cristo e a preparava na companhia de
alguns clérigos pietistas alemães e suíços. Fora a Krüdener que convertera à
causa o Czar, futuro “messias” da reacção europeia e vencedor de
Bonaparte, convencendo-o da necessidade de lutar, “em nome das verdades de
Cristo”, contra as ideias liberais que tinham causado a revolução francesa, a
ascensão do “anticristo” Napoleão e um quarto de século de insurreições e guerras na Europa. Ora se a Santa Aliança se fizera, precisamente, para
combater, pelas ideias e pela força, o tipo de movimento que triunfara no
Porto, por que não interviera em Portugal?
Mil
oitocentos e vinte foi um ano de movimentos anti-absolutistas; no
Reino de Nápoles, em Espanha (restauração da Constituição de Cádis) e até na
Rússia (revolta dos Dezembristas). A
revolta de Nápoles foi objecto de intervenção militar da Santa Aliança, em
Fevereiro de 1821; em Espanha também intervieram 60.000 franceses mandatados em
Verona pela Santa Aliança, restaurando, com o apoio espanhol, Fernando VII como
Rei Absoluto em 1823; na Rússia, a conspiração liberal foi descoberta e
suprimida. Só em Portugal não houve qualquer intervenção, o que
torna a excepção portuguesa bastante curiosa. O
século abrira com a invasão de Junot em 1807, depois de o regente D. João VI se
recusar a cumprir as regras do Bloqueio Continental napoleónico, fechando os
portos portugueses aos navios e ao comércio britânico. Wellington veio, os padres levantaram o campo contra os
heréticos franceses e as selvajarias dos invasores – a que os nossos
guerrilheiros responderam à letra (vejam-se Camilo, Arnaldo Gama,
Malheiro Dias) – fizeram o
resto para mobilizar a população. Entretanto, para não ficar refém de
Napoleão como o rei de Espanha, o Regente partiu com a Corte para o Brasil.
Gostou de lá ficar e foi ficando; envolveu-se em guerras e conquistas na
vizinha América espanhola e ocupou Montevideo depois de ter feito a abertura
dos portos da colónia brasileira aos ingleses. A pouco e pouco,
Portugal foi sendo subalternizado pelo “Reino Unido de Portugal e Brasil” e os
portugueses sentiram que a colónia, agora, eram eles. Ao
mesmo tempo, depois da vitória sobre os franceses, os ingleses foram ficando
para reorganizar o exército português, submetendo os nossos militares; e Beresford tornou-se um procônsul todo-poderoso.
Contra isto reagiram os portugueses: os comerciantes do Porto e de
Lisboa perdiam o monopólio do comércio com o Brasil, os militares sentiam-se
humilhados pela hegemonia britânica nas fileiras; e a ausência do Rei e da
Corte humilhava todas as classes. Gomes
Freire de Andrade, General e Grão-Mestre da Maçonaria, conspirou, mas foi
descoberto e executado em 1817, com outros “mártires da Pátria”. Havia, deste modo, uma tempestade perfeita para um
movimento nacional que mudasse a situação: e ele vai ter lugar a partir do
Porto, cidade cujos interesses comerciais eram particularmente prejudicados
pela abertura dos portos brasileiros e onde um núcleo de altos quadros da
magistratura, também identificados pela sua filiação maçónica, começou a
conspirar desde o fracasso de Gomes Freire e da sua execução.
Como
comentaria um grande historiador brasileiro, Oliveira Lima, a propósito do espírito
do tempo em Portugal: “O antigo reino sentia-se completamente abandonado:
decaído dos seus foros tradicionais, sem mais uma política sua, quase reduzido
a não constituir, sequer, uma expressão geográfica europeia, pois se acreditava
geralmente que D. João VI deliberara não regressar mais e nutria a intenção de, depois de esgotar
Portugal, já tão depauperado em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das
possessões espanholas da América, convertendo-se a dinastia brigantina numa
realeza exclusivamente americana.”
A SEXTA COLUNA HISTÓRIA CULTURA LIBERALISMO ECONOMIA
COMENTÁRIOS:
Álvaro Aragão
Athayde: Jaime Nogueira
Pinto omite, como é habitual, que o grande objectivo da Revolução de 1820 foi
fechar os portos do Brasil e restabelecer o Comércio Triangular, o Pacto
Colonial. O grande objectivo foi pois “voltar ao antes”, “regressar ao passado”.
Dito de outra
forma e sem rodeios: A Revolução de 1820 foi uma Revolução Reaccionária, não
foi uma Revolução Progressista.
Paulo Nunes Do
Rosário: Excelente crónica
do Sr. Professor, infelizmente vivemos uma época de profunda ambiguidade. A
moderação termina, os radicais assumem os seus ódios. O que virá?
José Carvalho: Tiro o meu chapéu ao Dr. Jaime
Nogueira Pinto por este admirável texto.
Luís Martins: Uma lição desempoeirada de História, coisa rara neste país quase feudal. Gostaria de chamar a atenção para dois factos
que nascem após a "revolução liberal", e que perduram até aos nossos
dias, e, na minha opinião, são dois dos principais travões ao desenvolvimento
pleno de Portugal: O primeiro é o
aparecimento do funcionalismo público, que nunca parou de aumentar. O segundo é a contracção de dívida pública como
garantia de um statu quo que de outro modo
seria inviável.
José Paulo C Castro: O começo do atraso de vida permanente em Portugal (face aos outros países).
A rédea solta aos 'franceses' jacobinos e aos 'afrancesados' mais secretos.
Apesar de tudo,
deu-nos a primeira Constituição e que até era uma base razoável não tivesse
sido alterada e alterada e voltada a alterar a cada revolução. Compare-se com a
dos EUA que tem mais de 200 anos e perto de 30 emendas, apenas, até agora.
José Miranda: Mais uma crónica excelente! Um poder de síntese admirável. josé maria: Tese, antítese, síntese... Ana Ferreira: Sendo certo que a História serve sobretudo como lição para o futuro, não o
é menos que convém ter presentes várias interpretações da mesma, sob pena
dessas ilações resultarem equivocas ou mesmo perversas. A principal a tirar da
vitória dos liberais sobre os absolutistas, verdade que perdura até hoje, é que
a liberdade consubstanciada no respeito e criação de oportunidades por e para todos é pressuposto essencial!
Não é este o pensamento de JNP.
José Miranda > Ana Ferreira: Em teoria até parece aceitável. Na prática , o século
19 foi aquele em que Portugal mais se atrasou. No fim do século 18, só 10% dos
portugueses sabiam ler e escrever. Na Europa a situação era semelhante.
No final do
século 19, Portugal mantinha os 10%, a Espanha atingia os 60% e a maior parte
da Europa chegava aos 80%. Percebe a diferença?
Mario Areias: Agora, neste tempo, é substituir o Reino Unido pela Comissão Europeia com a
diferença que agora os comerciantes/empreendedores do Porto, Lisboa e todo o
Portugal, mais os juristas e maçons mamam todos na teta dos fundos europeus e
quando estes acabam mamam na dívida. Mas nada preocupante.
bento guerra: Sobre 1820,há
tendência para esquecer que Portugal tinha um rei e corte, que deram o
salto, por sugestão dos ingleses ,que então começaram a mandar no país. Uma
componente importante do PREC vintista. Nuno
Borges > bento guerra: Sugestão não, ordem: Maria Nunes: Excelente lição de
História.
Portugal, 877 anos de existência Actualmente, o espírito é o mesmo. Podemos colocar a
UE no lugar do Brasil. José
Norton: Obrigado por este belo texto!
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