quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Hasta cuando?


Em Camões encontramos as explicações de tantos desmandos por cá, de longa data: «Que um fraco rei faz fraca a forte gente» (Lus. III 138) Ou ainda: “Dizei-lhe que também dos Portugueses / Alguns tredores houve algumas vezes.” (IV, 33). Desde Aljubarrota ao Grito do Ipiranga e mais essa deque D. João VI deliberara não regressar mais e nutria a intenção de, depois de esgotar Portugal, já tão depauperado em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das possessões espanholas da América, convertendo-se a dinastia brigantina numa realeza exclusivamente americana… D. Pedro IV conseguiu atamancar a continuidade do país, lutando por cá e entregando o reino à filha, para o prosseguimento da história. E foi o que se viu, até hoje, bem narrado por Jaime Nogueira Pinto.

Até quando, pois, aqui estaremos, livres, mesmo que economicamente dependentes?

É preciso ter fé.

1820: A tempestade perfeita /premium

Como as principais revoluções portuguesas que se lhe seguiriam (a de 1910, a de 1926, a de 1974) a revolução de 1820 começou por ser uma revolução de composição mestiça, isto é, uma revolução “contra".

JAIME NOGUEIRA PINTO

OBSERVADOR, 21 ago 2020, início da primeira revolução liberal em Portugal.

Foi no Porto – após uma longa conspiração de magistrados, comerciantes e influentes locais, que mobilizaram apoios na guarnição da cidade e noutras unidades do Norte – que se deu o acto inicial de um período da História nacional a que podemos chamar “Liberalismo Convulso”.

Como as principais revoluções portuguesas que se lhe seguiriam (a de 1910, a de 1926 e a de 1974), a revolução de 1820 começou por ser uma revolução de composição mestiça, isto é, uma revolução “contra” ou de coligação negativa que, depois de vitoriosa, fragmentou os seus participantes – que estavam contra o statu quo mas que não estavam de acordo quanto ao que queriam que o viesse a substituir. Tal como em 1974 seriam vários os projectos em carteira, de spinolistas a comunistas, em 1926 haveria monárquicos e republicanos, conservadores e fascistas e em 1910 republicanos conservadores e radicais, assim também em 1820 eram de várias espécies os conspiradores. E muitas as modalidades de liberalismo. Desde logo, um liberalismo (ou um anti absolutismo) inglês, de “rule of law”, monarquia limitada, oligarquia censitária e aristocrática, mais de liberdade que de igualdade; e outro, francês, jacobino, igualitário, quase republicano, mais de igualdade que de liberdade.

Os chamados “homens do Sinédrio” vinham, na sua maioria, da média burguesia emergente no final do Ancien Régime. Eram juristas, o que queria dizer mediadores ou especialistas ao serviço das leis do Estado que interpretavam e aplicavam. Nem todos eram maçons, mas Manuel Fernandes Thomaz, o líder da conspiração e redactor do manifesto, era; bem como Ferreira Borges e Silva Carvalho. Já a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, formada a seguir, integrava representantes das três “ordens”: Clero, Nobreza e Povo. E quando as tropas se concentraram de manhã cedo no Campo de Santo Ovídio, actual Praça de República, ouviu-se missa.

Há um aspecto importante que por vezes fica esquecido. É que este levantamento vintista veio ao arrepio da ordem internacional que, meia dúzia de anos após a derrota de Napoleão, o Congresso de Viena e a Santa Aliança, era uma ordem assente nos princípios do Ancien Régime, liderada pelas monarquias absolutas da Rússia, Áustria e Prússia (fundadoras da Santa Aliança), com os Bourbon restaurados em França e a Inglaterra vencedora de Napoleão. A pentarquia europeia era absolutista e conservadora, indo desde o czarismo puro e duro ao liberalismo relativo da Grã-Bretanha.

O czar Alexandre I lançara a Santa Aliança no rescaldo de Viena, inspirado por uma estranha figura, a baronesa von Krüdener, que acreditava próxima a Segunda Vinda de Cristo e a preparava na companhia de alguns clérigos pietistas alemães e suíços. Fora a Krüdener que convertera à causa o Czar, futuro “messias” da reacção europeia e vencedor de Bonaparte, convencendo-o da necessidade de lutar, “em nome das verdades de Cristo”, contra as ideias liberais que tinham causado a revolução francesa, a ascensão do “anticristo” Napoleão e um quarto de século de insurreições e guerras na Europa. Ora se a Santa Aliança se fizera, precisamente, para combater, pelas ideias e pela força, o tipo de movimento que triunfara no Porto, por que não interviera em Portugal?

Mil oitocentos e vinte foi um ano de movimentos anti-absolutistas; no Reino de Nápoles, em Espanha (restauração da Constituição de Cádis) e até na Rússia (revolta dos Dezembristas). A revolta de Nápoles foi objecto de intervenção militar da Santa Aliança, em Fevereiro de 1821; em Espanha também intervieram 60.000 franceses mandatados em Verona pela Santa Aliança, restaurando, com o apoio espanhol, Fernando VII como Rei Absoluto em 1823; na Rússia, a conspiração liberal foi descoberta e suprimida. Só em Portugal não houve qualquer intervenção, o que torna a excepção portuguesa bastante curiosa. O século abrira com a invasão de Junot em 1807, depois de o regente D. João VI se recusar a cumprir as regras do Bloqueio Continental napoleónico, fechando os portos portugueses aos navios e ao comércio britânico. Wellington veio, os padres levantaram o campo contra os heréticos franceses e as selvajarias dos invasores – a que os nossos guerrilheiros responderam à letra (vejam-se Camilo, Arnaldo Gama, Malheiro Dias) – fizeram o resto para mobilizar a população. Entretanto, para não ficar refém de Napoleão como o rei de Espanha, o Regente partiu com a Corte para o Brasil. Gostou de lá ficar e foi ficando; envolveu-se em guerras e conquistas na vizinha América espanhola e ocupou Montevideo depois de ter feito a abertura dos portos da colónia brasileira aos ingleses. A pouco e pouco, Portugal foi sendo subalternizado pelo “Reino Unido de Portugal e Brasil” e os portugueses sentiram que a colónia, agora, eram eles. Ao mesmo tempo, depois da vitória sobre os franceses, os ingleses foram ficando para reorganizar o exército português, submetendo os nossos militares; e Beresford tornou-se um procônsul todo-poderoso.

Contra isto reagiram os portugueses: os comerciantes do Porto e de Lisboa perdiam o monopólio do comércio com o Brasil, os militares sentiam-se humilhados pela hegemonia britânica nas fileiras; e a ausência do Rei e da Corte humilhava todas as classes. Gomes Freire de Andrade, General e Grão-Mestre da Maçonaria, conspirou, mas foi descoberto e executado em 1817, com outros “mártires da Pátria”. Havia, deste modo, uma tempestade perfeita para um movimento nacional que mudasse a situação: e ele vai ter lugar a partir do Porto, cidade cujos interesses comerciais eram particularmente prejudicados pela abertura dos portos brasileiros e onde um núcleo de altos quadros da magistratura, também identificados pela sua filiação maçónica, começou a conspirar desde o fracasso de Gomes Freire e da sua execução.

Como comentaria um grande historiador brasileiro, Oliveira Lima, a propósito do espírito do tempo em Portugal: “O antigo reino sentia-se completamente abandonado: decaído dos seus foros tradicionais, sem mais uma política sua, quase reduzido a não constituir, sequer, uma expressão geográfica europeia, pois se acreditava geralmente que D. João VI deliberara não regressar mais e nutria a intenção de, depois de esgotar Portugal, já tão depauperado em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das possessões espanholas da América, convertendo-se a dinastia brigantina numa realeza exclusivamente americana.”

A SEXTA COLUNA  HISTÓRIA  CULTURA  LIBERALISMO  ECONOMIA

COMENTÁRIOS:

Álvaro Aragão Athayde: Jaime Nogueira Pinto omite, como é habitual, que o grande objectivo da Revolução de 1820 foi fechar os portos do Brasil e restabelecer o Comércio Triangular, o Pacto Colonial. O grande objectivo foi pois “voltar ao antes”, “regressar ao passado”. Dito de outra forma e sem rodeios: A Revolução de 1820 foi uma Revolução Reaccionária, não foi uma Revolução Progressista.

Paulo Nunes Do Rosário: Excelente crónica do Sr. Professor, infelizmente vivemos uma época de profunda ambiguidade. A moderação termina, os radicais assumem os seus ódios. O que virá? 

José Carvalho: Tiro o meu chapéu ao Dr. Jaime Nogueira Pinto por este admirável texto.

Luís Martins: Uma lição desempoeirada de História, coisa rara neste país quase feudal. Gostaria de chamar a atenção para dois factos que nascem após a "revolução liberal", e que perduram até aos nossos dias, e, na minha opinião, são dois dos principais travões ao desenvolvimento pleno de Portugal: O primeiro é o aparecimento do funcionalismo público, que nunca parou de aumentar. O segundo é a contracção de dívida pública como garantia de um statu quo que de outro modo seria inviável.

José Paulo C Castro: O começo do atraso de vida permanente em Portugal (face aos outros países). A rédea solta aos 'franceses' jacobinos e aos 'afrancesados' mais secretos. Apesar de tudo, deu-nos a primeira Constituição e que até era uma base razoável não tivesse sido alterada e alterada e voltada a alterar a cada revolução. Compare-se com a dos EUA que tem mais de 200 anos e perto de 30 emendas, apenas, até agora.

José Miranda: Mais uma crónica excelente! Um poder de síntese admirável.   josé maria: Tese, antítese, síntese...      Ana Ferreira:  Sendo certo que a História serve sobretudo como lição para o futuro, não o é menos que convém ter presentes várias interpretações da mesma, sob pena dessas ilações resultarem equivocas ou mesmo perversas. A principal a tirar da vitória dos liberais sobre os absolutistas, verdade que perdura até hoje, é que a liberdade consubstanciada no respeito e criação de oportunidades por e para todos é pressuposto essencial! Não é este o pensamento de JNP.   José Miranda > Ana Ferreira: Em teoria até parece aceitável. Na prática , o século 19 foi aquele em que Portugal mais se atrasou. No fim do século 18, só 10% dos portugueses sabiam ler e escrever. Na Europa a situação era semelhante. No final do século 19, Portugal mantinha os 10%, a Espanha atingia os 60% e a maior parte da Europa chegava aos 80%. Percebe a diferença?

Mario Areias: Agora, neste tempo, é substituir o Reino Unido pela Comissão Europeia com a diferença que agora os comerciantes/empreendedores do Porto, Lisboa e todo o Portugal, mais os juristas e maçons mamam todos na teta dos fundos europeus e quando estes acabam mamam na dívida. Mas nada preocupante.

bento guerra: Sobre 1820,há tendência para esquecer que Portugal tinha um rei e corte, que deram o  salto, por sugestão dos ingleses ,que então começaram a mandar no país. Uma componente importante do PREC vintista.  Nuno Borges > bento guerra: Sugestão não, ordem: Maria Nunes: Excelente lição de História. 

Portugal, 877 anos de existência Actualmente, o espírito é o mesmo. Podemos colocar a UE no lugar do Brasil.             José Norton: Obrigado por este belo texto!

 

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