sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Revivendo a História

 

Não deixa de ser o reavivar de um facto, talvez embelezado pela projecção que as figuras descritas tiveram no mundo, e que não correspondam totalmente a uma realidade sem mancha, como prova o comentador Amandio Teixeira-Pinto. É certo que podemos sempre ver, nesse pacto com a Rússia, um desespero egoísta contra o avanço nazi…

O Atlântico, 79 anos depois /premium

Os líderes políticos deveriam preocupar-se menos com a futilidade do seu mediatismo e pensar no mundo que querem construir amanhã. O que Roosevelt e Churchill nos deixaram durou quase um século.

SEBASTIÃO BUGALHO

OBSERVADOR, 14 ago 2020

Em 1941, em plena Segunda Guerra, o primeiro-ministro britânico esteve incontactável durante seis dias.

Churchill, irremediavelmente irrequieto e devoto ao trabalho e à acção, viu-se privado de correio, sinal de rádio e, naturalmente, telefone. A bordo do navio Prince of Wales, entre desvios, tempestades e perdas de escolta, atravessou um oceano Atlântico infestado de submarinos alemães. Para realizar a viagem, o portador de todas as responsabilidades foi obrigado a delegar brevemente as suas. O motivo para o raro desassomo, no entanto, era urgente. Churchill ia reunir-se pessoalmente com o presidente dos Estados Unidos da América, Franklin D. Roosevelt, na Terra Nova (hoje, costa do Canadá), no convés do USS Augusta. O propósito do encontro não era único, antes pelo contrário, visando não só alterar o desenrolar dos acontecimentos da Segunda Guerra até então, como influenciar e desenhar o seu desenlace e a arquitectura de uma futura paz. Durante a travessia, Churchill leu um romance, jogou gamão e viu um filme diferente todas as noites (não gostou de Citizen Kane), sendo impensável imaginar um líder actual, neste mundo que não pára, a gozar semelhantes prazeres a meio de um conflito de escala global.

O Twitter, certamente, não lhe perdoaria.

Quando as embarcações se cruzaram em Placentia Bay, cada uma entoou o hino nacional da outra, à distância, em jeito de saudação. No dia seguinte, celebrou-se uma missa conjunta, com as bandeiras cruzadas sobre o mesmo altar. Roosevelt, segundo o historiador Andrew Roberts, mandou entregar volumes de 200 cigarros a cada marinheiro presente, tratando-se esse de outro pecado que a contemporaneidade seguramente lincharia.

Mas não foi só isso que, entretanto, perdemos, pois não?

Esquecendo o simbolismo, a religião e a tolerância ao bem-viver, há qualquer coisa no retrato desta reunião que parece distante de nós, longínquo num tempo além das oito décadas que passaram. Há qualquer coisa ali, naquela amizade improvável – mas inevitável –, na manutenção da elegância no desespero, no cumprimento entre dois homens e duas nações como se o tempo parasse só para que elas o conseguissem mudar. Há qualquer coisa aí, nessa grandeza, nessa ousadia, nessa convicção em comum, que já não vemos hoje.

Ao documento que emergiu das conversas privadas entre Churchill e FDR – e das negociações entre os respectivos gabinetes – chamou-se A Carta do Atlântico ou, em inglês, The Atlantic Charter. E talvez o seu conteúdo, se citado, sirva de melhor exemplo para a invulgaridade do que ali se passou.

Ora diz assim: “O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro, Sr. Churchill, encontrando-se juntos, julgam justo tornar conhecidos certos princípios comuns nas políticas nacionais dos seus respectivos países, nas quais depositam esperanças para um melhor futuro para o mundo”. Os ditos princípios passavam por não procurar qualquer tipo de expansão para si próprios, por assegurar que qualquer alteração territorial corresponderia aos desejos e à liberdade dos povos em questão, por respeitar “o direito de todos a escolherem a sua forma de governo” e pela promessa – solene, marcante, histórica – de que aqueles que desse direito haviam sido despojados pelo nazismo o recuperariam. Para um Presidente que ainda não declarara guerra a ninguém e para um inglês jurado em defender o Império Britânico, o texto é uma obra-prima de cedências à exigência da História. É, numa palavra, excepcional. E hoje, dia 14 de agosto, faz 79 anos que foi tornado público.

A visão do transatlantismo, da democracia, da liberdade e desses ideais como indispensáveis para a paz tem aí a sua génese, o seu berço, a sua fundação. À beira de celebrar o seu octogésimo aniversário, oito décadas depois, está na altura de pensar numa nova Carta do Atlântico. Com a arquitectura dessas convicções crescentemente colocada em causa por novos desafios, novas ameaças e pela cruel passagem do tempo, os líderes políticos deveriam preocupar-se menos com a futilidade do seu mediatismo e pensar, quiçá com seis dias de navegação atlântica, no mundo que querem construir amanhã. O que Roosevelt e Churchill nos deixaram durou quase um século. O Atlântico, meritoriamente, continua lá.

E os atlantistas?

P.S. Sobre os vetos de verão de Marcelo Rebelo de Sousa é-lhe devida uma nota. O Presidente da República chumbou a redução dos debates parlamentares e o aumento do número mínimo de signatários para petições. Fez muito bem. A forma obscurantista como António Costa e Rui Rio têm enclausurado a democracia portuguesa – negociando acordos e medidas à porta fechada, longe dos seus partidos, das suas bancadas e dos seus eleitores – é de uma inconsciência que o Presidente tinha de travar. Subtrair a democracia de si mesma, como o Primeiro-Ministro e o líder da oposição têm feito (veja-se as indicações para as CCDR), é fazer um favor aos populistas que a democracia deve limitar. Que Marcelo seja o único a dizê-lo é grave. Esperemos que não seja o único a pensá-lo.

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COMENTÁRIOS:

Amandio Teixeira-Pinto: O cuidado e atenção que a "democracia" merecia destes dois fariseus acabaram por se revelar na forma como foi tratada a Polónia (cuja invasão foi defendida pelo Reino Unido para declarar guerra à Alemanha - calando e aceitando de forma cúmplice depois a invasão, a 17 de Setembro, da mesmíssima Polónia pela URSS), que foi entregue no fim da guerra sem discussões ao comunismo (bem como a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia, a Bulgária, etc.... Escapou a Grécia porque o Staline não percebeu que Winston Churchill aceitaria uma partição da mesma. As cedências americanas a Staline culminaram, entre outras, com a divisão da Alemanha, que viveu dividida durante quase 50 anos (com tudo o que de instabilidade isso trouxe ao nosso modo de viver - chamou-se Guerra Fria a essa instabilidade). Portanto uma coisa é a propaganda dos vencedores e outra bem diferente a realidade. Lembro que os "democratas" americanos pretendiam invadir e tomar conta dos Açores, território de Portugal, um país neutro, Portugal. Valeu o secretário do Foreign Office britânico que tinha alguma noção das coisas e em particular da decência.

Joaquim Moreira: Depois de um tão texto eloquente, a lembrar os tempos de antigamente, tinha de estragar tudo com o “PS”, no finalmente! Antes de mais, devo lembrar, que nesse tempo estes dois homens nem tempo tinham para se coçar. Quanto mais, para "debates quinzenais". Muito menos para, perante um vírus "bonzinho", obrigar a "ficar em casa" ou confinar, quem era preciso para o combater e lutar. Contra um inimigo muito mais difícil de evitar. Com estes dois exemplos, pretendo apenas assinalar, que, entre esses dois tempos, muita coisa mudou e continua a mudar. Menos as teorias dos que nada fizeram e que só sabem criticar. E, como dizia Miguel Poiares Maduro, a fazer política – Na política o que conta é o que os outros dizem. Mesmo assim, e por isso, ainda bem que temos um líder da oposição, que, quer queiram quer não, muita coisa quer mudar. Assim, a maioria do povo português seja bem informada e deixe de continuar a ser enganada.

bento guerra: O negócio da política é de curto prazo, embora renovável, se os adversários forem maus

João Paulo Reis: Embora concordando com o autor em relação MRS em Post Scriptum, é pena que acabe um populista misturado com dois grandes estadistas, Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt. Dito isto, creio que o isolamento durante vários dias de qualquer líder político nos nossos tempos, seria perfeitamente viável de concretizar, o problema seria encontrar políticos à altura e de craveira intelectual para produzirem decisões relevantes. Do outro lado do Atlântico, nem o actual Presidente nem o seu opositor teriam capacidade de discernir nada de relevante. Deste lado do Atlântico, estaríamos melhor servidos, fosse com Ângela Merkel ou Boris Johnson. À laia de brincadeira, desafio-vos a imaginar um encontro de vários dias entre Pedro Sanchez e António Costa. Cuidado, por que aqui já fede!

 

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