Não deixa de ser o reavivar de um facto,
talvez embelezado pela projecção que as figuras descritas tiveram no mundo, e que
não correspondam totalmente a uma realidade sem mancha, como prova o comentador
Amandio Teixeira-Pinto. É certo que podemos sempre ver, nesse pacto com a Rússia,
um desespero egoísta contra o avanço nazi…
O Atlântico, 79 anos depois /premium
Os líderes políticos deveriam
preocupar-se menos com a futilidade do seu mediatismo e pensar no mundo que
querem construir amanhã. O que Roosevelt e Churchill nos deixaram durou quase
um século.
OBSERVADOR, 14
ago 2020
Em
1941, em plena Segunda Guerra, o primeiro-ministro britânico esteve
incontactável durante seis dias.
Churchill,
irremediavelmente irrequieto e devoto ao trabalho e à acção, viu-se privado de
correio, sinal de rádio e, naturalmente, telefone. A bordo do navio Prince of
Wales, entre desvios, tempestades e perdas de escolta, atravessou um oceano
Atlântico infestado de submarinos alemães. Para realizar a viagem, o portador
de todas as responsabilidades foi obrigado a delegar brevemente as suas. O
motivo para o raro desassomo, no entanto, era urgente. Churchill ia
reunir-se pessoalmente com o presidente dos Estados Unidos da América, Franklin
D. Roosevelt, na Terra Nova (hoje, costa do Canadá), no convés do USS Augusta.
O propósito do encontro não era único, antes pelo contrário, visando não só
alterar o desenrolar dos acontecimentos da Segunda Guerra até então, como
influenciar e desenhar o seu desenlace e a arquitectura de uma futura paz.
Durante a travessia, Churchill leu um romance, jogou gamão e viu um filme
diferente todas as noites (não gostou de Citizen Kane), sendo impensável
imaginar um líder actual, neste mundo que não pára, a gozar semelhantes
prazeres a meio de um conflito de escala global.
O
Twitter, certamente, não lhe perdoaria.
Quando
as embarcações se cruzaram em Placentia Bay, cada uma entoou o hino nacional da
outra, à distância, em jeito de saudação. No dia seguinte, celebrou-se uma
missa conjunta, com as bandeiras cruzadas sobre o mesmo altar. Roosevelt,
segundo o historiador Andrew Roberts, mandou entregar volumes de 200 cigarros a
cada marinheiro presente, tratando-se esse de outro pecado que a
contemporaneidade seguramente lincharia.
Mas não foi só isso que, entretanto,
perdemos, pois não?
Esquecendo o simbolismo, a religião e
a tolerância ao bem-viver, há qualquer coisa no retrato desta reunião que
parece distante de nós, longínquo num tempo além das oito décadas que passaram.
Há qualquer coisa ali, naquela amizade improvável – mas inevitável –, na
manutenção da elegância no desespero, no cumprimento entre dois homens e duas
nações como se o tempo parasse só para que elas o conseguissem mudar. Há
qualquer coisa aí, nessa grandeza, nessa ousadia, nessa convicção em comum, que
já não vemos hoje.
Ao
documento que emergiu das conversas privadas entre Churchill e FDR – e das
negociações entre os respectivos gabinetes – chamou-se A Carta do
Atlântico ou, em inglês, The Atlantic
Charter. E talvez o seu conteúdo, se citado,
sirva de melhor exemplo para a invulgaridade do que ali se passou.
Ora
diz assim: “O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro,
Sr. Churchill, encontrando-se juntos, julgam justo tornar conhecidos certos
princípios comuns nas políticas nacionais dos seus respectivos países, nas
quais depositam esperanças para um melhor futuro para o mundo”. Os ditos princípios passavam por não
procurar qualquer tipo de expansão para si próprios, por assegurar que qualquer
alteração territorial corresponderia aos desejos e à liberdade dos povos em
questão, por respeitar “o direito de todos a escolherem a sua forma de governo”
e pela promessa – solene, marcante, histórica – de que aqueles que desse
direito haviam sido despojados pelo nazismo o recuperariam. Para um Presidente que ainda não declarara guerra
a ninguém e para um inglês jurado em defender o Império Britânico, o texto é
uma obra-prima de cedências à exigência da História. É, numa palavra, excepcional.
E hoje, dia 14 de agosto, faz 79 anos que foi tornado público.
A
visão do transatlantismo, da democracia, da liberdade e desses ideais como
indispensáveis para a paz tem aí a sua génese, o seu berço, a sua fundação.
À beira de celebrar o seu octogésimo aniversário, oito décadas depois, está na
altura de pensar numa nova Carta do Atlântico. Com a arquitectura dessas
convicções crescentemente colocada em causa por novos desafios, novas ameaças e
pela cruel passagem do tempo, os líderes políticos deveriam preocupar-se menos
com a futilidade do seu mediatismo e pensar, quiçá com seis dias de navegação
atlântica, no mundo que querem construir amanhã. O que Roosevelt e Churchill
nos deixaram durou quase um século. O Atlântico, meritoriamente, continua lá.
E
os atlantistas?
P.S.
Sobre os vetos de verão de Marcelo Rebelo de Sousa
é-lhe devida uma nota. O Presidente da República chumbou a redução dos debates
parlamentares e o aumento do número mínimo de signatários para petições. Fez
muito bem. A forma obscurantista como António Costa e Rui Rio têm enclausurado
a democracia portuguesa – negociando acordos e medidas à porta fechada, longe
dos seus partidos, das suas bancadas e dos seus eleitores – é de uma
inconsciência que o Presidente tinha de travar. Subtrair a democracia de si
mesma, como o Primeiro-Ministro e o líder da oposição têm feito (veja-se as
indicações para as CCDR), é fazer um favor aos populistas que a democracia deve
limitar. Que Marcelo seja o único a dizê-lo é grave. Esperemos que não seja o
único a pensá-lo.
DEMOCRACIA SOCIEDADE WINSTON
CHURCHILL REINO UNIDO EUROPA MUNDO POLÍTICA ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA II GUERRA
MUNDIAL HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS:
Amandio Teixeira-Pinto: O cuidado
e atenção que a "democracia" merecia destes dois fariseus acabaram
por se revelar na forma como foi tratada a Polónia (cuja invasão foi defendida
pelo Reino Unido para declarar guerra à Alemanha - calando e aceitando de forma
cúmplice depois a invasão, a 17 de Setembro, da mesmíssima Polónia pela URSS),
que foi entregue no fim da guerra sem discussões ao comunismo (bem como a
Hungria, a Checoslováquia, a Roménia, a Bulgária, etc.... Escapou a
Grécia porque o Staline não percebeu que Winston Churchill aceitaria uma
partição da mesma. As cedências americanas a Staline culminaram, entre outras,
com a divisão da Alemanha, que viveu dividida durante quase 50 anos (com
tudo o que de instabilidade isso trouxe ao nosso modo de viver - chamou-se
Guerra Fria a essa instabilidade). Portanto uma coisa é a propaganda dos
vencedores e outra bem diferente a realidade. Lembro que os "democratas" americanos
pretendiam invadir e tomar conta dos Açores, território de Portugal, um país
neutro, Portugal. Valeu o secretário do Foreign Office britânico que tinha
alguma noção das coisas e em particular da decência.
Joaquim Moreira: Depois de um tão texto eloquente, a lembrar os tempos
de antigamente, tinha de estragar tudo com o “PS”, no finalmente! Antes de
mais, devo lembrar, que nesse tempo estes dois homens nem tempo tinham para se
coçar. Quanto mais, para "debates quinzenais". Muito menos para,
perante um vírus "bonzinho", obrigar a "ficar em casa" ou
confinar, quem era preciso para o combater e lutar. Contra um inimigo muito
mais difícil de evitar. Com estes dois exemplos, pretendo apenas assinalar,
que, entre esses dois tempos, muita coisa mudou e continua a mudar. Menos as
teorias dos que nada fizeram e que só sabem criticar. E, como dizia Miguel
Poiares Maduro, a fazer política – Na política o que conta é o que os outros
dizem. Mesmo assim, e por isso, ainda bem que temos um líder da oposição, que,
quer queiram quer não, muita coisa quer mudar. Assim, a maioria do povo
português seja bem informada e deixe de continuar a ser enganada.
bento guerra: O negócio da política é de curto prazo, embora
renovável, se os adversários forem maus
João Paulo Reis: Embora
concordando com o autor em relação MRS em Post Scriptum, é pena que acabe um
populista misturado com dois grandes estadistas, Winston Churchill e Franklin
D. Roosevelt. Dito isto, creio que o isolamento durante vários dias de qualquer
líder político nos nossos tempos, seria perfeitamente viável de concretizar, o
problema seria encontrar políticos à altura e de craveira intelectual para
produzirem decisões relevantes. Do outro lado do Atlântico, nem o actual
Presidente nem o seu opositor teriam capacidade de discernir nada de relevante.
Deste lado do Atlântico, estaríamos melhor servidos, fosse com Ângela Merkel ou
Boris Johnson. À laia de brincadeira, desafio-vos a imaginar um encontro de
vários dias entre Pedro Sanchez e António Costa. Cuidado, por que aqui já fede!
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