Estou numa
esplanada que fica por trás de uma estação de comboios, e em frente a um lugar
de pão, de comestíveis leves e de café, e onde me sento, muitas vezes, por ser
espaço de sol e de sombra, de café mais barato, e de silêncio bastante para a
concentração na leitura, liberta da alienação caseira. Contudo, o café sai-me
sempre mais caro, já o tenho experimentado inúmeras vezes, por conta das
figuras de repente a fazer-me sombra sobre a mesa, a lembrar em surdina as suas
fomes. Refilo sempre, começo por recusar – a esmola, digo - acabo cedendo. Mas
por fases. Como hoje. Não era a ciganita que costuma pedir para o filho que não
traz, era o homem de cara chupada e fato largo e sujo no corpo estreitamente
velho, a pedir o quantitativo suficiente para quatro carcaças, não sei se
alguma recheada com algum croquete para lhe abrandar a fome. Refilo sempre,
pois é um perfeito abuso esta extorsão contínua que me interrompe a abstracção da
leitura, e os engulhos da poupança, mas acabo por ceder, não só para retomar a
leitura, mas por ser resistente ao velho conceito sofismado de que dar a esmola
ao mendigo significa estimular a mendicidade. Começo, pois, categoricamente, por recusar, mas,
instada, acabo por procurar, não em algibeira onde poderia guardar mais
dinheiro, como o tal Álvaro de Campos, mas numa das bolsas do porta-moedas,
onde apalpo os trocos mais pequenos: 45 cêntimos, eis o que nesse lado
encontrei. Mas o cara-chupada protestou tristemente que aquilo não chegava para
as quatro carcaças – são sempre quatro, as carcaças – e depois de regatearmos,
com a minha proposta rígida de que comprasse só três, lá procurei o euro,
como da outra vez, na outra bolsa do porta-moedas, e assim fizemos a troca: eu
dei-lhe o euro, ele devolveu-me, escrupulosamente, os 45 cêntimos, agradeceu,
via-se que com sinceridade, e enfiou-se no interior do pequeno estabelecimento,
com avidez, mas donde saiu, não a comer, mas agradecendo muito, deixando-me a
pensar que as carcaças seriam antes para a família, apesar da sua cara
tristemente chupada e o velho corpo enfezado, a pedir comida.
Retomei a leitura do recente livro de João Céu e Silva – “A Segunda Vida de Fernando Pessoa”, que vou lendo às
pressas, para me despachar da atmosfera de mistério insistente e de
sobrenatural, mais depressiva até do que este quadro constante da nossa
mendicidade amarfanhada, e jamais reparada, embora de absoluta confraternização
democrática.
O certo é que, sempre que me instalo aqui, ou noutra qualquer esplanada, me vêm ao encontro esses que Joracy Camargo descreve como finórios, embora com melhor apresentação do que por aqui se vê. No entanto, não tenho de que me queixar, pois este meu extorsor sabe defender honradamente o seu mísero raciocínio. E a ciganita também, o discurso evoluiu, desde os séculos da “velhinha suja” que pede meigamente o cigarro do seu vício.
Não volto cá, a esta esplanada, assediada que sou e explorada que me sinto!
Mas…
«Que importa tudo isto, mas que importa tudo
isto»
-Não mais
«Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de
hoje?»
- Mas simplesmente
Ao
silêncio amarfanhante do confinamento de hoje,
Que
nem sequer é obstáculo
A
uma continuação das necessidades vitais
Das
sobrevivências de todo o sempre?
Muito pelo contrário, indeed!
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