terça-feira, 25 de agosto de 2020

“Rolam os olhos como dois escarros”…


Estou numa esplanada que fica por trás de uma estação de comboios, e em frente a um lugar de pão, de comestíveis leves e de café, e onde me sento, muitas vezes, por ser espaço de sol e de sombra, de café mais barato, e de silêncio bastante para a concentração na leitura, liberta da alienação caseira. Contudo, o café sai-me sempre mais caro, já o tenho experimentado inúmeras vezes, por conta das figuras de repente a fazer-me sombra sobre a mesa, a lembrar em surdina as suas fomes. Refilo sempre, começo por recusar – a esmola, digo - acabo cedendo. Mas por fases. Como hoje. Não era a ciganita que costuma pedir para o filho que não traz, era o homem de cara chupada e fato largo e sujo no corpo estreitamente velho, a pedir o quantitativo suficiente para quatro carcaças, não sei se alguma recheada com algum croquete para lhe abrandar a fome. Refilo sempre, pois é um perfeito abuso esta extorsão contínua que me interrompe a abstracção da leitura, e os engulhos da poupança, mas acabo por ceder, não só para retomar a leitura, mas por ser resistente ao velho conceito sofismado de que dar a esmola ao mendigo significa estimular a mendicidade. Começo, pois, categoricamente, por recusar, mas, instada, acabo por procurar, não em algibeira onde poderia guardar mais dinheiro, como o tal Álvaro de Campos, mas numa das bolsas do porta-moedas, onde apalpo os trocos mais pequenos: 45 cêntimos, eis o que nesse lado encontrei. Mas o cara-chupada protestou tristemente que aquilo não chegava para as quatro carcaças – são sempre quatro, as carcaças – e depois de regatearmos, com a minha proposta rígida de que comprasse só três, lá procurei o euro, como da outra vez, na outra bolsa do porta-moedas, e assim fizemos a troca: eu dei-lhe o euro, ele devolveu-me, escrupulosamente, os 45 cêntimos, agradeceu, via-se que com sinceridade, e enfiou-se no interior do pequeno estabelecimento, com avidez, mas donde saiu, não a comer, mas agradecendo muito, deixando-me a pensar que as carcaças seriam antes para a família, apesar da sua cara tristemente chupada e o velho corpo enfezado, a pedir comida.

Retomei a leitura do recente livro de João Céu e Silva – “A Segunda Vida de Fernando Pessoa”, que vou lendo às pressas, para me despachar da atmosfera de mistério insistente e de sobrenatural, mais depressiva até do que este quadro constante da nossa mendicidade amarfanhada, e jamais reparada, embora de absoluta confraternização democrática.

O certo é que, sempre que me instalo aqui, ou noutra qualquer esplanada, me vêm ao encontro esses que Joracy Camargo descreve como finórios, embora com melhor apresentação do que por aqui se vê. No entanto, não tenho de que me queixar, pois este meu extorsor sabe defender honradamente o seu mísero raciocínio. E a ciganita também, o discurso evoluiu, desde os séculos da “velhinha suja” que pede meigamente o cigarro do seu vício.

 Não volto cá, a esta esplanada, assediada que sou e explorada que me sinto!

Mas…

«Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto»

-Não mais

«Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?»

- Mas simplesmente

Ao silêncio amarfanhante do confinamento de hoje,

Que nem sequer é obstáculo

A uma continuação das necessidades vitais

Das sobrevivências de todo o sempre?

Muito pelo contrário, indeed!


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