quarta-feira, 12 de agosto de 2020

“Lodoso o rio, e glacial, corria”

 Tenho presente uma folha extraída do Jornal “NOTÍCIAS”, de 26 de Janeiro, creio que de 2008, (já que o livro “Um génio ignorado – CESÁRIO VERDE”, assunto do texto, foi publicado em Outubro de 2007), consistindo numa crítica literária de António Mega Ferreira a esse livro de Maria Filomena Mónica, que guardei, por ter, em parte, concordado com a opinião de Mega Ferreira. E transcrevo dessa folha, os dois primeiros parágrafos desse seu texto – “Génio porque sim” - que pretende demonstrar a forma caprichosa com que, enveredando por afirmações de absolutismo informativo, Filomena Mónica endeusa ou desvaloriza os poetas de que se ocupa, cabendo o epíteto “ignorado” ao público nacional, o que, naturalmente, António Mega Ferreira contesta com ironia, por ser falso.

De facto, Cesário é um poeta bastante apreciado e estudado com certo relevo, apesar da sua obra diminuta - em virtude da brevidade da sua vida - mas essa designação “génio” lembra-me bem o entusiasmo da minha juventude - quando lhe reconhecia particularidades de inteligência, sensibilidade e originalidade literária (temática e de estilo), de uma precocidade já relativa a escolas posteriores - modernismo, neo-realismo, simbolismo, até mesmo surrealismo (“vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras” (“O sent. de um Oc., IV) - junto de um professor que me orientou a tese de licenciatura – sem, todavia, cometer a arrogância de o apelidar de “génio” - que sabia eu disso? - ainda que, intimamente o sinta, como Filomena Mónica, nunca, apesar da idade, deixando de o venerar como tal. Mas muitos mais poetas e prosadores nossos foram por mim estudados com emoção e gosto, que considero geniais.

Quanto ao livro de MFM, julgo que foi um aturado e apaixonado trabalho de pesquisa biográfica que o país, naturalmente, deve reconhecer.

Começo por transcrever, desse texto que guardei – “GÉNIO PORQUE SIM”, de AMF, os dois primeiros parágrafos:

«É um livro desconcertante este “Cesário Verde, um Génio ignorado”, que Maria Filomena Mónica publicou recentemente (“Alêtheia”, 2007). Escrito para “chamar a atenção para um poeta que muitos dos meus contemporâneos desconhecem”, o livro parte de duas ideias que MFM tem sobre Cesário: que ele foi um “génio”; e que é um “génio ignorado”. Mas o adjectivo não corresponde à realidade; e, expressamente, a autora renuncia a explicar em que assenta a “originalidade” do poeta.

Cesário “ignorado”? Desde que me conheço, nunca deixei de ver nos escaparates, edições, eruditas ou populares, regulares ou de bolso, de “O Livro de Cesário Verde”. Só nas minhas estantes há quatro: de 1958, de 1975, duas de 2004. Acresce que, pelo menos de há cinquenta anos para cá, todos os programas escolares incluem o estudo de Cesário. E basta consultar a extensa bibliografia indicada pela autora para perceber que são inúmeros os estudos, ensaios e artigos, a mostrar como o poeta vem apelando à sensibilidade dos críticos, de há um século a esta parte. MFM, que leu e cita Pessoa a este propósito, sabe como este e os seus contemporâneos prezavam a obra de Cesário. Como a “Presença” o valorizou; como Joel Serrão, Nemésio, Jacinto do Prado Coelho o exaltaram. E a autora deve saber que sobre o poeta escreveram, só nos últimos vinte anos, Margarida Vieira Mendes, Hélder Macedo, Cabral Martins, Vasco Graça Moura, Fernando Pinto do Amaral, etc, etc.»

Outros mais analistas de Cesário poderia citar, que coloquei na Bibliografia que consultara para a minha tese, para além da bibliografia sobre estilística, sobre que ela versou. Quanto ao resto do testemunho analítico de António Mega Ferreira, não o transcrevo, conquanto me identifique em parte com a sua crítica. Cito apenas um passo em que discordo do articulista:

«MFM acha que o poeta “controla a língua de forma magistral” por ter escrito “lodoso, o rio, e glacial corria”? Mas não seria igualmente “magistral” ter escrito “lodoso o rio corria, e glacial”? …»

Vejamos:

O rio corria lodoso e glacial” – a frase informativa, o discurso denotativo, a prosa comum, com a sequência normal dos elementos sintagmáticos.

Desvios poéticos- entre outros possíveis (naturalmente aqui não apontados):

Lodoso o rio, e glacial, corria” ("Noite Fechada") – o discurso magistral de Cesário, na asserção – correcta  – de MFM - a sequência dos ii como que acompanhando o fluir das águas do rio, para além da sábia colocação – mais sequente – dos adjectivos a “rodear” o substantivo – adj., nome, adj com copulativa de ligação, e o verbo de movimento e progressão, no final, como palavra grave, recaindo o acento na penúltima sílaba, para efeito de arrastamento, de efeito visualizante… (Para além da rima adequada na estrofe).

Lodoso o rio corria, e glacial” – proposta – incorrecta de AMF para um discurso possível de magistralidade: não só uma sequência de ii de fraco valor expressivo (com o nome e o verbo no meio dos adjectivos, sem o mesmo efeito quer de assonância e fluência do exemplo anterior, com o verso agudo travando o efeito de arrastamento, equiparável ao deslizar das águas, a expressão central “o rio corria” da linguagem comum, sem desvio poético, mas, sobretudo, a deformação do ritmo decassílabo, com o acrescentamento de uma ou duas sílabas – uma perfeita anomalia no poeta da exactidão, do “desenho de compasso e esquadro” – pese embora o desvio poético do sintagma adjectival final - e glacial”, no seu afastamento do adjectivo inicial – “lodoso”. 

 

Nenhum comentário: