Tenho presente uma folha extraída do Jornal “NOTÍCIAS”, de 26 de Janeiro, creio que de 2008, (já que o livro “Um génio ignorado – CESÁRIO VERDE”, assunto do texto, foi publicado em Outubro de 2007), consistindo numa crítica literária de António Mega Ferreira a esse livro de Maria Filomena Mónica, que guardei, por ter, em parte, concordado com a opinião de Mega Ferreira. E transcrevo dessa folha, os dois primeiros parágrafos desse seu texto – “Génio porque sim” - que pretende demonstrar a forma caprichosa com que, enveredando por afirmações de absolutismo informativo, Filomena Mónica endeusa ou desvaloriza os poetas de que se ocupa, cabendo o epíteto “ignorado” ao público nacional, o que, naturalmente, António Mega Ferreira contesta com ironia, por ser falso.
De facto, Cesário é um poeta
bastante apreciado e estudado com certo relevo, apesar da sua obra diminuta -
em virtude da brevidade da sua vida - mas essa designação “génio” lembra-me bem
o entusiasmo da minha juventude - quando lhe reconhecia particularidades de
inteligência, sensibilidade e originalidade literária (temática e de estilo), de
uma precocidade já relativa a escolas posteriores - modernismo, neo-realismo, simbolismo,
até mesmo surrealismo (“vêm lágrimas de luz dos
astros com olheiras” (“O sent. de um
Oc., IV) - junto de um professor que me orientou a tese de licenciatura – sem,
todavia, cometer a arrogância de o apelidar de “génio” - que sabia eu disso? -
ainda que, intimamente o sinta, como Filomena Mónica, nunca, apesar da
idade, deixando de o venerar como tal. Mas muitos mais poetas e prosadores
nossos foram por mim estudados com emoção e gosto, que considero geniais.
Quanto ao livro de MFM, julgo que foi um
aturado e apaixonado trabalho de pesquisa biográfica que o país, naturalmente,
deve reconhecer.
Começo por transcrever, desse texto que
guardei – “GÉNIO PORQUE SIM”, de AMF, os dois primeiros
parágrafos:
«É um livro desconcertante este “Cesário Verde, um Génio
ignorado”, que Maria Filomena Mónica publicou recentemente (“Alêtheia”, 2007).
Escrito para “chamar a atenção para um poeta que muitos dos meus contemporâneos
desconhecem”, o livro parte de duas ideias que MFM tem sobre Cesário: que
ele foi um “génio”; e que é um “génio ignorado”. Mas o adjectivo não corresponde à
realidade; e, expressamente, a autora renuncia a explicar em que assenta a “originalidade” do
poeta.
Cesário “ignorado”? Desde que me
conheço, nunca deixei de ver nos escaparates, edições, eruditas ou populares,
regulares ou de bolso, de “O Livro de Cesário Verde”. Só nas minhas
estantes há quatro: de 1958, de 1975, duas de 2004. Acresce que, pelo menos de
há cinquenta anos para cá, todos os programas escolares incluem o estudo
de Cesário. E basta consultar a extensa bibliografia indicada pela autora para
perceber que são inúmeros os estudos, ensaios e artigos, a mostrar como o poeta
vem apelando à sensibilidade dos críticos, de há um século a esta parte. MFM, que leu e
cita Pessoa a este propósito, sabe como este e os seus
contemporâneos prezavam a obra de Cesário. Como a “Presença” o valorizou;
como Joel Serrão, Nemésio, Jacinto do Prado Coelho o exaltaram. E
a autora deve saber que sobre o poeta escreveram, só nos últimos vinte anos, Margarida Vieira Mendes,
Hélder Macedo, Cabral Martins, Vasco Graça Moura, Fernando Pinto do Amaral, etc, etc.»
Outros mais analistas de Cesário poderia
citar, que coloquei na Bibliografia que consultara para a minha tese, para além
da bibliografia sobre estilística, sobre que ela versou. Quanto ao resto do
testemunho analítico de António Mega Ferreira, não o transcrevo,
conquanto me identifique em parte com a sua crítica. Cito apenas um passo em
que discordo do articulista:
«MFM
acha que o poeta “controla a língua de
forma magistral” por ter escrito “lodoso,
o rio, e glacial corria”? Mas não seria igualmente “magistral” ter escrito
“lodoso o rio corria, e glacial”? …»
Vejamos:
“O rio corria lodoso e glacial” – a
frase informativa, o discurso denotativo, a prosa comum, com a sequência normal
dos elementos sintagmáticos.
Desvios poéticos- entre outros possíveis
(naturalmente aqui não apontados):
“Lodoso o rio, e
glacial, corria” ("Noite Fechada") – o discurso magistral de
Cesário, na asserção – correcta – de MFM - a sequência dos ii
como que acompanhando o fluir das águas do rio, para além da sábia colocação –
mais sequente – dos adjectivos a “rodear” o substantivo – adj., nome,
adj com copulativa de ligação, e o verbo de movimento e progressão, no final, como
palavra grave, recaindo o acento na penúltima sílaba, para efeito de arrastamento, de efeito visualizante…
(Para além da rima adequada na estrofe).
“Lodoso o rio corria, e glacial” – proposta – incorrecta – de AMF para um discurso possível de magistralidade: não só uma sequência de ii de fraco valor expressivo (com o nome e o verbo no meio dos adjectivos, sem o mesmo efeito quer de assonância e fluência do exemplo anterior, com o verso agudo travando o efeito de arrastamento, equiparável ao deslizar das águas, a expressão central “o rio corria” da linguagem comum, sem desvio poético, mas, sobretudo, a deformação do ritmo decassílabo, com o acrescentamento de uma ou duas sílabas – uma perfeita anomalia no poeta da exactidão, do “desenho de compasso e esquadro” – pese embora o desvio poético do sintagma adjectival final - “e glacial”, no seu afastamento do adjectivo inicial – “lodoso”.
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