segunda-feira, 31 de agosto de 2020

«Sabe-se lá!»


Rui Tavares está muito pessimista, com receio de que Donald Trump ganhe as próximas eleições. Cá por mim, que só sei que nada sei, vou com a nossa Amália, no fado dos compositores Frederico Valério / Silva Tavares, que eles todos é que sabiam bem:

«Lá porque ando em baixo agora  Não me neguem vossa estima  Que os alcatruzes da nora  Quando chora  Não andam sempre por cima  Rir da gente ninguém pode  Se o azar nos amofina  E se Deus não nos acode  Não há roda que mais rode  Do que a roda da má sina.

«Sabe-se lá
Quando a sorte é boa ou má
Sabe-se lá
Amanhã o que virá
Breve desfaz-se
Uma vida honrada e boa
Ninguém sabe, quando nasce
Pró que nasce uma pessoa.

«O preciso é ser-se forte  Ser-se forte e não ter medo  Eis porque às vezes a sorte  Como a morte  Chega sempre tarde ou cedo  Ninguém foge ao seu destino  Nem para o que está guardado  Pois por um condão divino  Há quem nasça pequenino  Pra cumprir um grande fado.

OPINIÃO

O estilo apocalíptico na política americana

Para os republicanos os EUA estão ao mesmo tempo no melhor momento da história — e à beira do colapso

RUI TAVARES

PÚBLICO, 28 de Agosto de 2020

Num dos mais importantes ensaios políticos do século XX, o historiador Richard Hofstadter escreveu sobre “o estilo paranóico na política americana”. A sua primeira frase é: “a política americana tem muitas vezes sido uma arena para mentes zangadas”. O estilo paranóico, explica Hofstadter, “não é uma coisa nova e não é necessariamente de direita”, mas a designação inovadora que ele emprega é necessária para descrever a amplitude e a intensidade que essa atitude política foi assumindo até à época em que o ensaio foi escrito, nos anos 1960: “chamo-lhe o estilo paranóico simplesmente porque nenhuma outra palavra evoca adequadamente a sensação de exagero fervoroso, suspeição e fantasia conspiratória que tenho em mente”.

Passado meio século, o ensaio de Hofstadter continua a ser brilhante, mas foi superado pelos acontecimentos. Já não é possível chamar à maneira de fazer política de um Donald Trump “estilo paranóico”. A paranóia continua a fazer parte, mas atingiu um tal ponto de incandescência que se torna necessário encontrar um novo termo para esta fase. Proponho “apocalíptico”.

Na convenção republicana desta semana os oradores sucederam-se repetindo sempre o mesmo motivo discursivo paradoxal: que os EUA estão ao mesmo tempo no melhor momento da história — e à beira do colapso. Para Trump e os seus apoiantes é considerado possível e até lógico acreditar nas duas coisas ao mesmo tempo: para poder ganhar, Trump tem de repetir contra todas as evidências que tornou a “América grande de novo”; para que o seu adversário perca, Trump tem de provar que essa América “grande de novo” é afinal tão frágil que, se Biden ganhar, o país acaba. Como disse o vice-presidente Pence na convenção republicana: “a escolha nestas eleições é se a América continua a ser a América”.

Seria fácil descontar esta retórica como banal à aproximação de actos eleitorais. Aconteça o que acontecer, a América não vai desaparecer depois das eleições. Mas implícita naquela frase está uma insinuação à base eleitoral demograficamente mais homogénea dos republicanos: sem Trump, a América que desaparece é aquela em que automaticamente vocês fazem parte da maioria e estão no topo da hierarquia, a América mais branca, mais masculina e mais velha, na qual vocês se sentem mais escudados da competição de uma América mais jovem, mais feminista e mais multicolor.

Trump precisa que essa “nova América”, — ao invés de ser o resultado da evolução da sociedade, das lutas históricas das minorias e da implementação real de direitosseja assustadora. Ele precisa que a sua descrição das cidades americanas como vivendo num estado de “carnificina” seja real, precisa que o país pareça como estando à beira da guerra civil. Só assim o estilo apocalíptico parecerá credível, demovendo alguns de votar e levando outros a votar como se as suas vidas dependessem disso. Só assim Trump poderá ganhar, ou ficar tão próximo disso que a definição do vencedor real das eleições se torne incerta. E, digam as sondagens o que disserem agora, isto não é uma impossibilidade.

De certa forma, a Convenção de Trump não foi a do Partido Republicano — foi a que se viveu nas rua de Kenosha, Wisconsin, após o cidadão negro Jacob Blake ter sido baleado sete vezes pelas costas à queima-roupa por um polícia. Trump pretende ganhar à maneira de Nixon no tempo do “estilo paranóico”, apresentando-se como candidato da “lei e da ordem”. Talvez por isso um dos seus apresentadores predilectos — e possível candidato republicano em 2024 — tenha chegado ao ponto de justificar os actos criminosos de um adolescente de 17 anos, aderente de uma das milícias de “vigilantes”, que saiu de casa armado de uma metralhadora e fez 25 quilómetros para matar dois manifestantes nas ruas de Kenosha, Wisconsin. Tucker Carlson, o apresentador e apoiante de Trump, precisa que os seus espectadores acreditem que a situação nas cidades dos EUA é tão caótica que, numa inversão orwelliana, o crime é segurança, o tiroteio com armas semi-automáticas é paz e o homicídio indiscriminado de manifestantes é lei e ordem.

O que acontece aos movimentos apocalípticos? Uma de duas hipóteses opostas.

No mundo real, chega sempre um momento em que as profecias falham, em que a realidade lá fora não condiz com as “mentes zangadas” dos crentes, e em que a seita tem de digerir a derrota e seguir em frente, como aconteceu às várias igrejas que previram o fim do mundo para uma data precisa no calendário, e esse fim do mundo não veio.

Mas a política, em particular quando apocalíptica, corre o risco de ver as suas profecias auto-realizadas. A história conta-nos que se se repetir muitas vezes que nós, os mais poderosos e perfeitos do mundo, somos na verdade vítimas à mercê de serem destruídas, se pode eternizar um cenário de guerra civil cultural que alimenta temores de uma guerra civil real.

A tese de Joe Biden é que basta derrotar Donald Trump para que o febrão passe e a sociedade norte-americana se una. Para isso, Biden precisaria de uma vitória ampla e indubitável e de um Trump que aceitasse a derrota graciosamente. É uma história bonita — mas é difícil acreditar em milagres contra o apocalipse.

Historiador; fundador do Livre

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COMENTÁRIOS

JDF EXPERIENTE: Peço desculpa que percebi "estilo apocalipso" e pensei que eram gelados norte-americanos. Continue rui tavares! 28.08.20

Rita_Laranjeira INICIANTE: Mais uma pequena amostra da loucura que varre a esquerda radical norte-americana foi a mensagem de anteontem de Bernie Sanders: "Não mais gás lacrimogénio, não mais gás pimenta, não mais balas de borracha nos manifestantes". Só faltou acrescentar o corolário inevitável: "Deixem-nos incendiar, destruir e pilhar tudo à vontade!" 28.08.2020

Rita_Laranjeira INICIANTE: Nisso a esquerda radical também é especialista: muito críticos do capitalismo, mas em mais de 100 anos, ainda não vimos porem em prática uma alternativa melhor! Já o excepcionalismo americano está aí à vista de todos os que tiverem olhos para ver. Até os esquerdistas anti-americanos seguem as tendências da esquerda radical americana! 28.08.2020

ramalheira63 INICIANTE: Rui Tavares, por que razão não te preocupas com o que se passa em Portugal? Há 15 anos um PR, sem dizer nada a ninguém, dissolve o parlamento. Agora um PR, sem ninguém lhe ter perguntado nada, diz que não dissolve o Parlamento. 28.08.2020

bento guerra.919566 INICIANTE: Como diria o Mark Twain, o anúncio da morte politica de Trump é manifestamente exagerada. E isso deixa desesperados os anti-trumpistas de pacotilha 28.08.2020

paula.o.rego.442120 INICIANTE: "As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e não vivem sem elas" S. Freud.

 

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