segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Questões de semântica

 

Unidade e união, têm, de facto, conotações diferentes, podendo coexistir ou não. Uma forte união, fundada em laços de coesão em torno de dedicação ao rei, juntou os três mosqueteiros – Athos, Porthos e Aramis – e o futuro chefe dos escuteiros D’Artagnan, numa profunda amizade, feita de idêntica valentia e de idêntico rancor para com os sectários do cardeal. E todavia nunca figuras mais divergentes entre si foram descritas, com as suas vivências e personalidades distintas - um sombrio e nobre Athos, um fanfarrão Porthos, um sedutor e beato Aramis, um corajoso e vivo d’Artagnan - que tornaram o livro de Dumas, de uma qualidade de aventura ficcional de leveza e vivacidade, num verdadeiro encantamento, com a sua urdidura de imaginação apoiada em pesquisa histórica e grande poder romanesco, sem pretensiosismos retóricos, todavia.

No caso político da “União Nacional”, “pelas conotações históricas que tem”, sendo “sempre má”, segundo António Barreto, (pese embora a conjuntura económica e política em que surgiu, que a tornou indispensável), pede-se que a “unidade nacional” não falte nunca, o que parece utópico, vistos os interesses e as divergências que opõem os cidadãos entre si, talvez também por deficiência de “união educacional”, indispensável para uma abertura para a união e a unidade nacionais.

OPINIÃO

Um país dividido

A epidemia actual transformou-se rapidamente numa ameaça excepcional, reconhecida por quase toda a gente. Houve polémicas sobre a estratégia sanitária e controvérsias sobre os planos para cuidar dos efeitos sociais da doença. É verdade. Mas o clima prevalecente foi e tem sido o de unidade e o de uma relativa moderação de rivalidades.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO,23 de Agosto de 2020

A “união nacional”, pelas conotações históricas que tem, é sempre má. Já a unidade nacional merece discussão. Quando esta se perfila no horizonte como resposta a um perigo ameaçador ou como exigência diante de crise excepcional, uma relativa unidade, feita de convenção voluntária e contrato assumido, pode ser de grande utilidade e de real eficácia para lutar contra crises e ameaças.

O problema, muitas vezes, reside na definição de perigo e de ameaça, assim como de crise ou de excepção. Não é difícil perceber que as situações são mais claras do que as definições prévias. Invasão inimiga, catástrofe natural ou de origem humana, pandemia, acidente grave e inesperado ou crise mundial são suficientemente explícitos para se reconhecerem quando estão diante de nós, sem que haja necessariamente acordo formal prévio. É verdade que há sempre, felizmente, quem discorde, mesmo estando errado. Mas a percepção de uma grande crise é mais fácil do que se pensa.

A epidemia actual transformou-se rapidamente numa ameaça excepcional, reconhecida por quase toda a gente. Houve polémicas sobre a estratégia sanitária e controvérsias sobre os planos para cuidar dos efeitos sociais da doença. É verdade. Mas o clima prevalecente foi e tem sido o de unidade e o de uma relativa moderação de rivalidades. Apesar de quase toda a gente ter ideias definitivas sobre o assunto, da biologia à economia, da física às finanças, a verdade é que o litígio ácido e crispado tem sido evitado. Uma espécie de moratória do afrontamento foi aceite por partidos e instituições, por associações e comunidades. Não se pode dizer que a pandemia criou uma trégua política, mas estamos perto disso. O que não é particularmente negativo, dado que a unidade, temporária por definição, faz-se justamente para atacar problemas graves, crises e ameaças.

Ao contrário do que defendem os amantes das fracturas, a contenção política e social é muitas vezes um instrumento indispensável para resolver crises graves. Sobretudo quando resulta de esforço voluntário e conjunto levado a cabo por partidos políticos, instituições, associações, sindicatos, comunidades e outras formas de agremiação. São conhecidos, pelo menos na Europa, múltiplos casos de “pactos de paz social”, de “acordos nacionais”, de “coligações nacionais”, de “convenções” e de outras formas de criar uma unidade, geralmente temporária e com objectivo definido. Na Suíça, em Espanha, na Itália, na Alemanha e até em França viveram-se ou vivem-se situações destas que foram aliás de enorme utilidade para o desenvolvimento e para o funcionamento das instituições. Em Portugal, poucas experiências decorrem desta necessidade ou deste objectivo. Em certa medida, talvez a Constituição de 1976 represente um momento desses, de grande unidade entre forças livres e de colaboração voluntária. Outros esforços, como sejam o famigerado “bloco central” de 1983 e o “compromisso nacional” de 2011, não tiveram o mesmo impacto nem consequências equiparáveis. Deram um notável contributo para a resolução das crises, mas não tiveram a profundidade daquela primeira experiência.

O clima de relativa unidade que se vive agora é útil, mas insuficiente, e não tem futuro. Trata-se, perante perigos ameaçadores, de uma espécie de convergência inescapável sem estratégia global nem metas definidas. Tem uma amplitude de objectivos extremamente reduzida e resulta da inevitabilidade mais do que de uma atitude voluntária. Não propõe um esforço comum, não projecta acções futuras nem programa políticas ulteriores.

Ora, Portugal necessita de um esclarecimento político essencial e de um esforço comum capazes de fundamentar coesão, decência e desenvolvimento para os próximos anos. Antes da pandemia, já se sabia que o país caminhava aceleradamente para um afrontamento. Como nunca nas últimas décadas, a divisão entre esquerda e direita desenha-se no horizonte com nitidez. Já não se trata da divisão entre democracia e não democracia, como foi o caso dos primeiros anos após o 25 de Abril: agora é cada vez mais entre esquerda e direita. Com uma singularidade: “esquerda” inclui as esquerdas não democráticas, enquanto “direita” inclui igualmente as direitas não democráticas. Sob este ponto de vista, a situação política nacional raramente esteve tão polarizada e tão radicalmente dividida como hoje. O que não é muito favorável ao desenvolvimento económico e social.

A convergência de vários factores de crise é geralmente nociva. Até se inventou uma expressão interessante: a “tempestade perfeita”. Não sabemos, ainda, se esta existe ou não, se está presente em Portugal ou não, mas sabemos que há muitos argumentos nesse sentido, a começar pela simultaneidade de causas externas e internas. O recuo das democracias nas Américas e na Europa é um mau sinal. A ascensão do nacionalismo autoritário na Europa e na Ásia é flagrante. A crise da defesa ocidental e europeia, em resultado da política americana e da agressividade russa, é real, já não é apenas uma hipótese. As dificuldades de relançamento económico da Europa e de reorganização da União são as maiores de sempre. As sequelas da crise pandémica são incomensuráveis e ainda hoje difíceis de enumerar.

Todas as razões externas e globais têm consequências em Portugal. A essas, acrescentamos evidentemente as nossas próprias. A divisão entre esquerdas e direitas, agora acrescentadas das respectivas extremas, é radical e dificilmente ultrapassável. A animosidade e a contradição entre sectores público e privado (na economia, na saúde, na educação...) atingem graus inéditos e nefastos. O elevadíssimo grau de corrupção e de promiscuidade financeira e política exige uma justiça pronta e eficaz que não temos. O agravamento da desigualdade social e da ineficiência dos serviços públicos, em resultado da pandemia, é visível e inquietante. A inclusão, no debate político, da questão racial, é uma novidade de efeitos imprevisíveis, mas seguramente ácidos. A retórica do antifascismo e do anticomunismo torna todas as soluções mais difíceis.

Qualquer esforço de desenvolvimento, de coesão e de paz social, exige unidade e convergência de esforços. Sem receios atávicos da “união nacional”. Seria tão bom e tão útil ao país que as principais forças políticas percebessem!

Sociólogo

TÓPICOS       OPINIÃO  COVID-19  PARTIDOS POLÍTICOS  ACORDO

COMENTÁRIOS:

Gualter Cabral EXPERIENTE: É quase unanime, se o não for mesmo, o estado de espírito que preside as excelsas cabeças dos cidadãos quando põe na mão, deste ou daquele partido, em separado ou coligado, os destinos da nação, sem que estes "escutem" a vontade popular, e para isso temos os referendos (que não são usados), " É gente que não sabe o que quer, e, assim fazemos-lhes a vontade" --- dizem os nossos mandatados, que, ( e agora vou citar: "como bola colorida nas mãos de uma criança" sem regra, sem vigilância, sem normas; com pleno despudor chutam para o lado que mais lhes convém ( a eles; evidentemente) Como é que as pessoas, na sua quase generalidade não confiam nos Governos nem nos políticos, falam, falam...e depois não fazem nada? Não exigem os seus direitos na participação da governação, como por exemplo em referendos (que lhes são negados) não podem escolher os candidatos à AR nem preterir os que não querem, os deputados eleitos (fora os dirigentes) não podem advogar na AR as causas dos seus eleitores - sem o consentimento dos seus chefes - fazem toda a sorte de tropelias sem serem acusados de crime nem castigo, as petições que não forem a "jeito" não são discutidas, etc .etc. etc. E, depois disto tudo, vão paulatinamente, votar às cegas e a contra gosto, em mais do mesmo. É preciso ter pachorra! 23.08.2020

Fowler Fowler INICIANTE Há anos que a elite económica e financeira de Portugal tem um desejo chamado “maioria de 2/3” a concretizar-se, preferencialmente, à direita ou, nessa impossibilidade, pela “convergência de esforços” das principais forças políticas (PS e PSD). Os desejos húmidos dessa elite, aqui representada pela sua marioneta culta, António Barreto, pretende primeiro conquistar a opinião pública para depois fazer o que, na sua opinião consentida, deve ser feito: alterar a Constituição e o Regime, reduzindo ao mínimo o papel do Estado na sociedade portuguesa. É isto o que a maioria dos portugueses pretende para o país? No momento, parece-me que não. A mim e a Marcelo Rebelo de Sousa (ver a sua posição em 1983 sobre o “famigerado” Bloco Central).

Paulo Batista INICIANTE: "Este livro nasceu do sentimento de que, no contrato que estabelecemos com o Estado, somos nós, cidadãos, quem geralmente perde" in Visitas ao Poder, Maria Filomena Monica. Edição da Quetzal 4a edição Fevereiro 2020. Estou a ler e é um bom retrato do País. Com a pandemia creio que tudo está a piorar ... até estourar ! É a vida ... 23.08.2020

fernando jose silva EXPERIENTE: Portugal caminha para uma autocracia musculada onde as pessoas, os portugueses, contam pouco. Os partidos unem-se para nos esfolar a pele e instalarem o aparelho e sobas espalhados por pontos chaves são chaves do sistema. O compadrio e a corrupção serão o eixo principal deste poder adulterado e assim só os mesmos irão encher os bolsos na bazuca que aí vem, se vier. Este acordo das CCrs é um pontapé na democracia, corrupção política da pior, com assentimento de partidos e presidente, Uma união dos mais fortes contra a maioria que são os frágeis sem voto na matéria nem liberdade de escolha política ou económica. Os dramas de oitocentos repetem-se, agora de forma sofisticada preserva. É errada esta visão? Tomara que fosse em razão dum futuro que não se vê. A frente é opaca.

Jonas Almeida MODERADOR: Concordo! Este artigo é um bom ponto de partida para a discussão, e inclui elementos com que todos concordarão - como o estado lastimável do sistema de Justiça - mas erra completamente no "Já não se trata da divisão entre democracia e não democracia". A cedência da autodeterminação a Bruxelas instalou um europeísmo cacique que prefigura claramente a autocracia como sistema político. O seu músculo e violência é a da imposição de regras de empobrecimento e suserania económica a rendas hereditárias. A Europa reinventou o fascismo e a autocracia sob a liderança dos países onde esses racionalismos se deram historicamente bem. Ao contrário do que propõe, o conflito que cresce é precisamente "entre democracia e não democracia".

Roberto34 INFLUENTE: "A Europa reinventou o fascismo e a autocracia": propaganda ao mais alto nível sem qualquer fundamento e verdade. O Jonas continua constantemente a ignorar o óbvio. Os problemas em Portugal não são da responsabilidade da UE ou dos outros. Já cá existiam muito antes de a UE existir sequer. E muitos não desapareceram com ela. Outros sim, felizmente. Portugal está incomparavelmente melhor desde que entrou na UE e passou a pertencer a família Europeia. Isto são factos. O que você escreve é propaganda sem qualquer fundamento. 23.08.2020

Jonas Almeida MODERADOR: Haaa primeiro era sempre mais europa, agora é a europa é inocente em tudo em que está a mais. Que cambada! Quando entra o euro a dívida em queda ia pelos 50% e a economia crescia a 4% anuais há 6 anos. O que é claro é que o europeismo culpa as suas vítimas e já nem sequer é movido por um mercado comum (como nota o The Economist, a zona euro e' hoje um espaço estruturados por suseranias rentistas) e mostra já sem fingimentos como se nomeiam presidentes de ramos executivos (tiram-se da cartola do ministério da defesa alemão), presidentes do BCE (vem directo ou de direcções gerais da Goldman ou de presidências do FMI), iniciativas legislativas (monopólio do ramo executivo), etc. Nada disto é mais escondido - qualquer europeísta confirmará aqui sem hesitar q esta é a ideia deles de "Democracia". 23.08.2020

Manuel Pessoa INICIANTE: Parece-me uma análise correcta, com que concordaria se apontasse caminhos. Parece-me também que os portugueses, refiro-me `a grande fatia do povo que se ocupa mais com trabalhar do que com a leitura de jornais e audição de discursos, entre belas palavras e obra razoável optam pela última.

Jose EXPERIENTE: António Barreto apela à recuperação política do "arco da governação" destruído, só no plano da comunicação política, pela fractura de Passos Coelho em 2015. Rui Rio/Marcelo/Costa estão a trabalhar essa reconstituição desde antes da pandemia, usam a pandemia para avançar mais na hegemonia do poder político de toda a burguesia política, empresarial, social, económica e financeira. Visam manter o status quo dos últimos 45 anos e penalizar os trabalhadores e o povo com cortes dos direitos e rendimentos. A colossal crise que vem de trás vai exponenciar-se antes do Natal e não há bazuca que valha à Direita que estiver no poder do Estado. A pandemia está a ser instrumentalizada para aumentar as desigualdades no mundo. Uma reacção virá da base da pirâmide social. Nem a cartilha anticomunista valerá 23.08.2020

bento guerra.919566 INICIANTE: Rebanho nacional, é sempre o objectivo das "esquerdas". É que eles "conhecem" o trilho para o oásis 23.08.2020

Fun.eduardoferreira.883473 EXPERIENTE: Das esquerdas, das direitas, ambos rebanhos, enfrentamos na lógica tribal das claques, umas mais broncas, outras menos, mas sempre tribos que negam a liberdade de escolha e pensamento, tanto faz se são “vermelhos” ou de outra cor qualquer, são como a birra de uma criança que acaba se lhe não ligarmos nenhuma. Feliz por saber que o Bento guerra vive numa sociedade em que se lhe permite escrever o que pensa, mesmo se esse pensamento seja a negação dessa liberdade e tolerância. Bom domingo a todos e sejam livres! 23.08.2020

Fun.eduardoferreira.883473 EXPERIENTE

Sem dúvida um retrato da situação estrutural portuguesa. Não se trata de coligações pois elas são efémeras e visam uma lógica de matemática parlamentar que não vão além de uma legislatura. Por muito que custe às “franjas” que materializam extremismos anti sistema, uns romanticamente persistentes como os de esquerda e outros na exaltação oportunista do descontentamento irracional materializado na extrema-direita, ambas nunca passarão de uma minoria barulhenta. É pois responsabilidade do centro que é a incontestável maioria, a fundação de um pacto de regime que trace a estratégia de longo prazo, identificando e resolvendo as nossas dificuldades estruturais independentemente de quem forma governo. É essa a missão de Costa e Rio ou pelo menos deveria ser pondo o país à frente dos partidos. 23.08.2020

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