Para nós. Para o ex-rei.
Mas é coisa antiga, o sofrimento – real ou
imaginado. Sabemo-lo, por explicação de Hesíodo, poeta grego, autor da «Teogonia», sobre os mitos dos Deuses, e de «Trabalhos e Dias», sobre os
homens e os seus trabalhos e sentenças. Alberto Caeiro resume-o com saudosismo anulador, bem doloroso:
Quem me dera
que eu fosse o pó da estrada
E que os pés
dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera
que eu fosse os rios que correm
E que as
lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera
que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só
o céu por cima e a água por baixo...
Quem me dera
que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me
batesse e me estimasse...
Antes isso
que ser o que atravessa a vida
Olhando para
trás de si e tendo pena...
1914
Mas afinal, as desgraças, como todos
sabemos, - mas só agora li na tradução de Frederico
Lourenço “POESIA GREGA – DE HESÍODO A TEÓCRITO” (maravilhosa
oferta de anos) o descritivo de PANDORA, segundo
HESÍODO, de que transcrevo um excerto,
para acentuar que esta coisa dos males já vem de longe, de muito longe,
ordenados estes por Zeus a vários dos seus deuses através do fabrico de uma
mulher – a tal - que os destapasse do seu “tonel” – ou caixa – a qual os atirou,
da perfeita Idade de Ouro para esta dos males e trabalhos, em que só restou a
Esperança, por ter tapado o tonel a tempo de a prender ainda, como coisa
derradeira para os mortais:
«Antes,
pois, as tribos de homens viviam na terra
Isentas
e afastadas de males e sem trabalho duro
E sem
doenças dolorosas, elas que dão destinos aos homens.
(Pois
depressa na miséria os mortais envelhecem).
Mas
a mulher, tirando com as mãos a grande tampa do tonel,
Espalhou-<as>;
e congeminou para os homens tristes desgraças.
Só
a Esperança em moradas inquebrantáveis
Ficou,
sob os lábios do tonel, e porta fora
Não
voou; pois antes ela repusera a tampa do tonel,
Por
deliberação de Zeus detentor da égide e amontoador das nuvens.
Mas
desgraças sem número vagueiam entre os homens.
Pois
a terra está cheia de males; cheio está o mar.
Doenças
para os homens de dia e as de noite
Vêm
por si próprias, trazendo males para os mortais
Pela
calada; pois Zeus prudente “lhes” tirou a voz.
Assim,
não há como fugir à mente de Zeus. (Trabalhos e Dias”, vs. 90 – 105)
Salles da Fonseca vai analisando os
males que sobre o ex-rei desabaram, que o seu ex-povo se entretém, talvez, a acentuar,
na discórdia de uma desunião exacerbada pela divergência política.
Mas a esperança, como coisa última a
desaparecer, graças a Pandora, poderá ainda favorecer o ex- Rei de Espanha,
como todos nós, que o desejamos infindavelmente…
TAPAS Y CASTAÑOÇAS – 3
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 11.08.20
O
Chefe de um Estado é um Rei, um Presidente ou um Papa. Não me lembro de outras
possibilidades. Sim, há o Dalai Lama que se equiparo aos Papas e há os
Imperadores que são Reis turbo.
Espiritualidades à parte, resta o mundo temporal que se divide entre Reis e
Presidentes.
Num plano de grande generalidade, ao Chefe de Estado actual, seja ele Rei ou
Presidente, cumpre garantir a unidade nacional e o cumprimento da Constituição.
No que se refere ao modo como exercem essas tarefas,
vão desde o simbolismo da Rainha de Inglaterra e do Presidente da Alemanha aos
executivos Presidentes americanos e russos. A meio da
tabela estão o Presidente de Portugal e o Rei de Espanha, cada um com as
especificidades que as respectivas Constituições determinam.
* * *Para mim, português, é relativamente fácil abordar a questão
espanhola - o que não significa que o não faça com alguma preocupação. Com
base na vitória militar (numa primeira fase), à custa da ditadura (numa segunda
fase) e da autocracia e do garrote (numa terceira fase e até final do seu
Regime), Franco assegurou a integridade territorial de Espanha e o cumprimento
da sua própria Constituição; D. Juan Carlos assegurou a integridade territorial
e o cumprimento de uma Constituição democrática sem outros instrumentos para
além da sua capacidade de diálogo, o seu inegável Sentido de Estado e, a partir
do momento que em 1981 se afirmou (e foi claramente reconhecido pela maioria dos
espanhóis) como «o Pai da Democracia espanhola», com o seu prestígio pessoal. Mas abdicou porque é pública a vida privada de qualquer Chefe de
Estado. Então,
quando muitos espanhóis e alguns estrangeiros esperávamos que D. Juan Carlos
tivesse passado à História, eis que lhe acendem as luzes negras da ribalta.
E a pergunta é: - Quem acendeu toda essa negritude? Segue-se a resposta: - As
luzes negras da nova ribalta de D. Juan Carlos não foram acesas pelos puritanos
moralistas, os «ayatollahs» da nossa praça, foram acesas precisamente pelos inimigos
(adversários numa escala letal) da Espanha unitária e liberal. Inimigos da
Espanha unitária porque adeptos dos vários nacionalismos a que – para
facilitação de linguagem - chamamos espanhóis; inimigos da Espanha liberal
porque adeptos do marxismo nas suas formas mais brutas (stalinismo, trotskismo,
maoismo…) ou mais sofisticadas (gramscianismo, berlinguerismo…). A gravidade maior foi terem-se misturado
nacionalistas com revolucionários num «caldinho» que faz lembrar a «geringonça»
de Manuel Azaña. Ou seja, está-se na iminência de entornar o caldo. A menos
que… (continua) Agosto
de 2020
Henrique Salles da
Fonseca
Anónimo, 11.08.2020: Vão mesmo
fatiar a Espanha como fatiam o presunto, só que deste fatiado vai sair muito
sangue
Anónimo, 11.08.2020: Continuemos,
Henrique, e passo a comentar o teu belíssimo texto no qual suscitas questões
muito importantes. Claro que quer o teu post, quer o meu comentário têm de ser
lidos em aditamento aos teus post e aos meus comentários anteriores de 7 e 8,
do corrente mês.
“Juan Carlos I, el Breve” assim foi baptizado por Santiago Carrillo, quando
este estava exilado. Não foi breve (1975-2014), “gracias a Dios”, segundo
expressão que o próprio Carrillo, a título de remissão, haveria de pronunciar
perante o Rei, e que este divulgaria em público. No início deste século, e
disso fui testemunha, especulava-se em Espanha se haveria condições para que
Felipe viesse a ser coroado rei. Foi-o. Agora, fazem-se análogas conjecturas em
relação à Princesa Leonor. Espero que o seja, embora eu já não o veja.
No meio da instabilidade que envolve
actualmente a Monarquia, aproveitam a ocasião alguns para questionar se esta
tem legitimidade institucional, atendendo a que fora opção de Franco e que o
povo não tinha sido chamado a pronunciar-se. Nada
de mais falacioso. O povo,
no que foi conhecido por período de transição, foi ouvido três vezes, a
saber: em dezembro 1976
quando, por referendo, ratificou a Lei para a Reforma Política, aprovada
pelas Cortes, a qual derrogou tacitamente o regime franquista e marcou eleições
para uma Assembleia com poderes constituintes; as mencionadas eleições
realizaram-se em junho de 1977; e, finalmente, em dezembro de 1978 novo
referendo para aprovar a Constituição saída das Cortes. Certamente que
estes referendos e eleições foram mais democráticos, livres e legais do que
o pretenso referendo ocorrido em 2017, na Catalunha, em que as
autoridades locais perguntavam aos respectivos habitantes se queriam ser
independentes, sob a forma de república.
A “incertidumbre” que envolve actualmente
o regime espanhol é potenciador de novos riscos, pois podem ser aproveitadas
possíveis fragilidades do Estado (o teu artigo termina entreabrindo a porta a
este tema, parece-me) O espectro
dos separatismos poderá reanimar (há já indícios disso), mas será exigência da
memória das mais 800 vítimas do terrorismo que o Estado Espanhol o não permita.
Vi Juan Carlos, num programa da TVE (Yo, Juan Carlos, Rey de Espanha, de
2016, disponível no YouTube), revelar que, no leito de morte, Franco lhe
dissera. “A única coisa que lhe peço, Majestade, é que mantenha a Espanha
unida”.
Olhando para trás, esta Família Bourbón tem vivido um autêntico drama
shakespeariano. Primeiro foi a ruptura entre o Conde
Barcelona e o seu filho por aquele ter sido preterido, por Franco, a favor de
Juan Carlos, na sucessão monárquica, e este ter aceitado. Agora é entre Juan Carlos e o seu filho Felipe, a
propósito do exílio daquele, que possivelmente foi mais imposto do que
consentido.
Tentando perscrutar na negritude que foi acendida, para utilizar uma feliz
expressão tua, diria que se há necessidade de apurar a verdade dos factos,
então que se apure em sede própria, com a dignidade exigida, e não na
comunicação social, nem na rua, nem tampouco nas Cortes. E também não se
considerem como definitivas versões vazadas por quem efectivamente está a ser
investigado. O que pode vir a estar em causa, se a situação se vier
a degradar, é a Monarquia Parlamentar e a Unidade do País, como realças.
Não
creio que nenhum político estrangeiro tenha sido alvo de tanto apreço por parte
de Portugal do que Juan
Carlos. Isso
está bem evidenciado pelas condecorações concedidas. Ele fez o pleno das 4 de Ordem
Militar e das 2 de Ordem Nacional, tendo bisado na mais importante –Torre e
Espada. Possui a grã-cruz, dada em 1970, e
o grande colar. As 7 condecorações foram-lhe outorgadas desde 1970 até 2007. Sabes, Henrique, com independência de tudo o mais,
penso que Juan Carlos talvez não se tenha apercebido das mudanças geracionais e
de valores que se estavam a operar em Espanha, ao longo do seu longo reinado.
Para as novas gerações, os efeitos directos ou indirectos do regime
franquista já pouco lhes diziam; não possuíam ou estava esbatida memória dos
esforços do Rei para consolidar a Democracia, para além de terem uma postura
mais exigente para determinados comportamentos que gerações anteriores estavam
habituadas a acomodar. Forte abraço. Carlos Traguelho
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