quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Tempo de Alberto Caeiro


Para nós. Para o ex-rei.

Mas é coisa antiga, o sofrimento – real ou imaginado. Sabemo-lo, por explicação de Hesíodo, poeta grego, autor da «Teogonia», sobre os mitos dos Deuses, e de «Trabalhos e Dias», sobre os homens e os seus trabalhos e sentenças. Alberto Caeiro resume-o com saudosismo anulador, bem doloroso:

 

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada

E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

 

Quem me dera que eu fosse os rios que correm

E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

 

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio

E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

 

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro

E que ele me batesse e me estimasse...

 

Antes isso que ser o que atravessa a vida

Olhando para trás de si e tendo pena...

1914

Mas afinal, as desgraças, como todos sabemos, - mas só agora li na tradução de Frederico Lourenço “POESIA GREGA – DE HESÍODO A TEÓCRITO” (maravilhosa oferta de anos) o descritivo de PANDORA, segundo HESÍODO, de que transcrevo um excerto, para acentuar que esta coisa dos males já vem de longe, de muito longe, ordenados estes por Zeus a vários dos seus deuses através do fabrico de uma mulher – a tal - que os destapasse do seu “tonel” – ou caixa – a qual os atirou, da perfeita Idade de Ouro para esta dos males e trabalhos, em que só restou a Esperança, por ter tapado o tonel a tempo de a prender ainda, como coisa derradeira para os mortais:

 

«Antes, pois, as tribos de homens viviam na terra

Isentas e afastadas de males e sem trabalho duro

E sem doenças dolorosas, elas que dão destinos aos homens.

(Pois depressa na miséria os mortais envelhecem).

Mas a mulher, tirando com as mãos a grande tampa do tonel,

Espalhou-<as>; e congeminou para os homens tristes desgraças.

Só a Esperança em moradas inquebrantáveis

Ficou, sob os lábios do tonel, e porta fora

Não voou; pois antes ela repusera a tampa do tonel,

Por deliberação de Zeus detentor da égide e amontoador das nuvens.

Mas desgraças sem número vagueiam entre os homens.

Pois a terra está cheia de males; cheio está o mar.

Doenças para os homens de dia e as de noite

Vêm por si próprias, trazendo males para os mortais

Pela calada; pois Zeus prudente “lhes” tirou a voz.

Assim, não há como fugir à mente de Zeus. (Trabalhos e Dias”, vs. 90 – 105)

 

Salles da Fonseca vai analisando os males que sobre o ex-rei desabaram, que o seu ex-povo se entretém, talvez, a acentuar, na discórdia de uma desunião exacerbada pela divergência política.

Mas a esperança, como coisa última a desaparecer, graças a Pandora, poderá ainda favorecer o ex- Rei de Espanha, como todos nós, que o desejamos infindavelmente…

 

TAPAS Y CASTAÑOÇAS – 3

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 11.08.20

 

O Chefe de um Estado é um Rei, um Presidente ou um Papa. Não me lembro de outras possibilidades. Sim, há o Dalai Lama que se equiparo aos Papas e há os Imperadores que são Reis turbo.
Espiritualidades à parte, resta o mundo temporal que se divide entre Reis e Presidentes.
Num plano de grande generalidade, ao Chefe de Estado actual, seja ele Rei ou Presidente, cumpre garantir a unidade nacional e o cumprimento da Constituição.
No que se refere ao modo como exercem essas tarefas, vão desde o simbolismo da Rainha de Inglaterra e do Presidente da Alemanha aos executivos Presidentes americanos e russos. A meio da tabela estão o Presidente de Portugal e o Rei de Espanha, cada um com as especificidades que as respectivas Constituições determinam.
* * *Para mim, português, é relativamente fácil abordar a questão espanhola - o que não significa que o não faça com alguma preocupação
. Com base na vitória militar (numa primeira fase), à custa da ditadura (numa segunda fase) e da autocracia e do garrote (numa terceira fase e até final do seu Regime), Franco assegurou a integridade territorial de Espanha e o cumprimento da sua própria Constituição; D. Juan Carlos assegurou a integridade territorial e o cumprimento de uma Constituição democrática sem outros instrumentos para além da sua capacidade de diálogo, o seu inegável Sentido de Estado e, a partir do momento que em 1981 se afirmou (e foi claramente reconhecido pela maioria dos espanhóis) como «o Pai da Democracia espanhola», com o seu prestígio pessoal. Mas abdicou porque é pública a vida privada de qualquer Chefe de Estado. Então, quando muitos espanhóis e alguns estrangeiros esperávamos que D. Juan Carlos tivesse passado à História, eis que lhe acendem as luzes negras da ribalta. E a pergunta é: - Quem acendeu toda essa negritude? Segue-se a resposta: - As luzes negras da nova ribalta de D. Juan Carlos não foram acesas pelos puritanos moralistas, os «ayatollahs» da nossa praça, foram acesas precisamente pelos inimigos (adversários numa escala letal) da Espanha unitária e liberal. Inimigos da Espanha unitária porque adeptos dos vários nacionalismos a que – para facilitação de linguagem - chamamos espanhóis; inimigos da Espanha liberal porque adeptos do marxismo nas suas formas mais brutas (stalinismo, trotskismo, maoismo…) ou mais sofisticadas (gramscianismo, berlinguerismo…). A gravidade maior foi terem-se misturado nacionalistas com revolucionários num «caldinho» que faz lembrar a «geringonça» de Manuel Azaña. Ou seja, está-se na iminência de entornar o caldo. A menos que… (continua) Agosto de 2020

Henrique Salles da Fonseca

 

COMENTÁRIOS

Anónimo, 11.08.2020: Vão mesmo fatiar a Espanha como fatiam o presunto, só que deste fatiado vai sair muito sangue

Anónimo, 11.08.2020: Continuemos, Henrique, e passo a comentar o teu belíssimo texto no qual suscitas questões muito importantes. Claro que quer o teu post, quer o meu comentário têm de ser lidos em aditamento aos teus post e aos meus comentários anteriores de 7 e 8, do corrente mês.
“Juan Carlos I, el Breve” assim foi baptizado por Santiago Carrillo, quando este estava exilado. Não foi breve (1975-2014), “gracias a Dios”, segundo expressão que o próprio Carrillo, a título de remissão, haveria de pronunciar perante o Rei, e que este divulgaria em público. No início deste século, e disso fui testemunha, especulava-se em Espanha se haveria condições para que Felipe viesse a ser coroado rei. Foi-o. Agora, fazem-se análogas conjecturas em relação à Princesa Leonor. Espero que o seja, embora eu já não o veja.

No meio da instabilidade que envolve actualmente a Monarquia, aproveitam a ocasião alguns para questionar se esta tem legitimidade institucional, atendendo a que fora opção de Franco e que o povo não tinha sido chamado a pronunciar-se. Nada de mais falacioso. O povo, no que foi conhecido por período de transição, foi ouvido três vezes, a saber: em dezembro 1976 quando, por referendo, ratificou a Lei para a Reforma Política, aprovada pelas Cortes, a qual derrogou tacitamente o regime franquista e marcou eleições para uma Assembleia com poderes constituintes; as mencionadas eleições realizaram-se em junho de 1977; e, finalmente, em dezembro de 1978 novo referendo para aprovar a Constituição saída das Cortes. Certamente que estes referendos e eleições foram mais democráticos, livres e legais do que o pretenso referendo ocorrido em 2017, na Catalunha, em que as autoridades locais perguntavam aos respectivos habitantes se queriam ser independentes, sob a forma de república.

A “incertidumbre” que envolve actualmente o regime espanhol é potenciador de novos riscos, pois podem ser aproveitadas possíveis fragilidades do Estado (o teu artigo termina entreabrindo a porta a este tema, parece-me) O espectro dos separatismos poderá reanimar (há já indícios disso), mas será exigência da memória das mais 800 vítimas do terrorismo que o Estado Espanhol o não permita. Vi Juan Carlos, num programa da TVE (Yo, Juan Carlos, Rey de Espanha, de 2016, disponível no YouTube), revelar que, no leito de morte, Franco lhe dissera. “A única coisa que lhe peço, Majestade, é que mantenha a Espanha unida”.

Olhando para trás, esta Família Bourbón tem vivido um autêntico drama shakespeariano. Primeiro foi a ruptura entre o Conde Barcelona e o seu filho por aquele ter sido preterido, por Franco, a favor de Juan Carlos, na sucessão monárquica, e este ter aceitado. Agora é entre Juan Carlos e o seu filho Felipe, a propósito do exílio daquele, que possivelmente foi mais imposto do que consentido.
Tentando perscrutar na negritude que foi acendida, para utilizar uma feliz expressão tua, diria que se há necessidade de apurar a verdade dos factos, então que se apure em sede própria, com a dignidade exigida, e não na comunicação social, nem na rua, nem tampouco nas Cortes. E também não se considerem como definitivas versões vazadas por quem efectivamente está a ser investigado.
O que pode vir a estar em causa, se a situação se vier a degradar, é a Monarquia Parlamentar e a Unidade do País, como realças.

Não creio que nenhum político estrangeiro tenha sido alvo de tanto apreço por parte de Portugal do que Juan Carlos. Isso está bem evidenciado pelas condecorações concedidas. Ele fez o pleno das 4 de Ordem Militar e das 2 de Ordem Nacional, tendo bisado na mais importante –Torre e Espada. Possui a grã-cruz, dada em 1970, e o grande colar. As 7 condecorações foram-lhe outorgadas desde 1970 até 2007. Sabes, Henrique, com independência de tudo o mais, penso que Juan Carlos talvez não se tenha apercebido das mudanças geracionais e de valores que se estavam a operar em Espanha, ao longo do seu longo reinado. Para as novas gerações, os efeitos directos ou indirectos do regime franquista já pouco lhes diziam; não possuíam ou estava esbatida memória dos esforços do Rei para consolidar a Democracia, para além de terem uma postura mais exigente para determinados comportamentos que gerações anteriores estavam habituadas a acomodar. Forte abraço. Carlos Traguelho

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