sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Uma bonita história de ali ao lado


Bastaria ler o D. Quixote da Mancha para se ficar irremediavelmente preso a um povo de grandeza e fidalguia, de mistura com o sentido do caricato, picaresco e democrático da condição humana que alia Quixotes a Sanchos, sabedoria e simplicidade com esperteza malandra mas dedicada, que define alegremente coragem e loucura, ingenuidade e coesão, sisudez e obsessão. Também este texto de Salles da Fonseca nos faz encarar com simpatia um povo e um homem a ele pertencente, com defeitos, sim, mas de quem nunca esqueceremos a altiva e sintética interrogação a um desprezível palrador assente em superioridade petrolífera, para ele arrasadora – o «Por qué no te callas» firmemente silenciador, sem preconceito.

TAPAS Y CASTAÑOLAS

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 06.08.20

Correu aí pelos meios de comunicação uma reportagem sobre uma ocorrência no sul de Espanha em que o dono de um estabelecimento (de comes e bebes?) a quem as Autoridades queriam impor o encerramento temporário por causa da pandemia, ele dizia às televisões que o filmavam que aquele era o seu modo de vida e que defenderia a tiro o seu negócio. E repetiu várias vezes que - Moriré matando! Não me aterei na apreciação de que lado estava a razão, apenas constato a seriedade e a violência da afirmação. Para melhor percebermos Espanha, pode ser de alguma utilidade que o «povo de brandos costumes» tome nota de que os métodos ali ao lado são muito diferentes dos nossos. Por lá, aplaudem a morte pública do toiro; por cá, pegamo-lo de caras. Eles fazem os ciganos subir ao «tablau»[i]; nós, não. Somos diferentes, nem melhores nem piores.   * * *

Juan Calos de Borbon y Borbon é, quer se queira quer não, o único símbolo vivo da Espanha unitária e liberal.

Muitas foram as dúvidas que se levantaram quando o Cadlillo do «fascio» espanhol o nomeou seu sucessor passando por cima do candidato à Coroa, D. Juan, Conde de Barcelona, Pai do então indigitado. Desconheço totalmente que conversações terão decorrido entre os representantes do «usurpador»[ii] e o da Casa Real Espanhola para conseguirem que o Conde abdicasse do Trono a favor do filho.

 Objectivamente, D. Juan Carlos foi entronizado de acordo com o protocolo então em vigor e tudo começou

Os historiadores, se forem minimamente imparciais, terão muito mais bem a dizer desse reinado do que mal mas eu não sou historiador e não preciso de ir aos arquivos à procura de informação. Eu sou o documento coevo, eu olhei a prudente distância (sem envolvimentos nem paixões que me fizessem imiscuir em assuntos estrangeiros) para todo o reinado de D. Juan Carlos. E desde já digo que o meu distanciamento se deve não só por ser estrangeiro como devido ao facto de ser filosoficamente republicano. Em compensação, a minha declarada simpatia para com o hoje Rei emérito se deve a que, com ele comungo do sentido liberal em que a sociedade se deve movimentar.

Outro motivo de simpatia tem a ver com a descontracção com que o ainda Príncipe (e não se mesmo, incógnito, já Rei), convivia com o vulgo da sociedade portuguesa frequentadora duma discoteca específica em Cascais. Lá estava com parentes e amigos e, todos nós, os outros, lhe respeitávamos a privacidade. Mas ninguém abandonava a pista de dança se o Príncipe/Rei ia dançar. E assim era que um Rei dançava tranquilamente perto de republicanos, monárquicos e agnósticos. Não seria necessário mais para que a simpatia fosse uma realidade. Nem formal nem informalmente fui apresentado a D. Juan Carlos mas sempre pensei que quem se comportava daquele modo não podia ser mau rapaz.

Foi, pois, à distância geográfica e institucional que fui vendo a evolução de Espanha.

E vi o Rei a construir a paz social trazendo Santiago Carrillo a conversar com ele na Zarzuela, vi o Rei a impor a ordem democrática quando, aos tiros nas Cortes, a quiseram derrubar, vi uma Espanha ainda estigmatizada na cena internacional transformar-se numa potência europeia, vi o característico orgulho espanhol a desviar-se do doentio irredentismo para a via económica, vi a Peseta a ultrapassar o Escudo, vi uma Espanha aberta ao mundo, vi a redução drástica do fluxo emigratório e vi uma nova realidade em que a maioria passou a ter o gosto de nela viver.

Para muito melhor, a Espanha que era no dia da entronização de D. Juan Carlos não «chegava aos calcanhares» da Espanha unitária e liberal que legou ao seu sucessor. 

 (continua)

Agosto de 2020  Henrique Salles da Fonseca

[i]- «Tablado», tabuado, palco

[ii]- Franco, na boca pequena dos monárquicos liberais fiéis à linha sucessória dos Borbon cujo Chefe era, então, D. Juan, Conde de Barcelona

Tags: "política alheia"

 

COMENTÁRIOS

Anónimo 06.08.2020: M/ Caro Dr. Salles da Fonseca: Para lá de outros argumentos, certamente mais especiosos, Franco, El Caudillo, usou o mais prosaico: cortaria a mesada à Família Real - mesada pontualmente entregue todos os meses, em notas e por mão própria - se a sua vontade não fosse prontamente obedecida. Era disso que a Família Real, por cá, vivia - que outros rendimentos não teria.

Henrique Salles da Fonseca 06.08.2020: Isabel O"Sullivan said: VERY GOOD

Anónimo 06.08.2020: Apoiado! Um rei com altos e baixos, mas que fez imenso pela sociedade e pela democracia espanhola! Isso o manterá nos livros de história. Quanto ao resto é assunto da justiça que o devia julgar como julga o simples cidadão! Em Portugal, infelizmente os corruptos não precisam de fugir porque não têm ninguém a que prestar satisfações!

Henrique Salles da Fonseca 07.08.2020: Texto fantástico, Henrique. Um forte abraço José Guerra

Anónimo 07.08.2020: Meu amigo Henrique, de acordo com tudo o que disseste de positivo e, certamente, mais haveria de dizer. Por exemplo, Espanha não teve tanta escassez de petróleo, quando do choque petrolífero de 1973, exactamente graças às relações chegadas (tratam-se por irmãos) entre o Rei Juan Carlos e o Rei da Arábia Saudita, as mesmas relações, entre as duas Casas Reais, que agora estão a dar grandes ralações. Quando vivia em Madrid, comprei um livro do jornalista José García Abad, intitulado “La Soledad del Rey”, relativo a Dom Juan Carlos. O livro é de 2004, editado por La Esfera de los Livros, e o capítulo VIII inicia-se e termina com frases premonitórias que transcrevo: “El dinero parece ser el flanco más débil de Su Majestad. Mucho más que ese corazón enamoradizo que le legaron sus antepassados y que sólo escandaliza a unos pocos…” E Cabe esperar, tanto por el escarmiento que pudieran haber producido en el Rey los encándalos que no han podido silenciarse en su totalidad – Conde, De la Rosa, Prado -, como por la edad del Monarca, que entra en la etapa del abuelo venerable, que no sufra el prestígio de la monarquia, que no deja de ser un elemento positivo en un país tan atormentado en su historia por la inestabilidad política. No obstante, permanecem abiertos casos que no permiten ir más allá de las esperanzas y los buenos deseos. Aos casos então abertos, juntaram-se, entretanto, outros. Sabes que mais? O teu texto deu-me ganas de reler o livro que comprei há 16 anos. Abraço. Carlos Traguelho

Adriano Lima 07.08.2020:Excelente análise com a qual concordo em toda a linha. A introdução é soberba. Este é daqueles casos em que se tem de olhar para a floresta e não para a árvore isolada que apodrece. Da minha parte, também sempre senti simpatia por Juan Carlos.

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