Bastaria ler o D. Quixote da Mancha para se
ficar irremediavelmente preso a um povo de grandeza e fidalguia, de mistura com
o sentido do caricato, picaresco e democrático da condição humana que alia
Quixotes a Sanchos, sabedoria e simplicidade com esperteza malandra mas
dedicada, que define alegremente coragem e loucura, ingenuidade e coesão,
sisudez e obsessão. Também este texto de Salles da Fonseca nos faz encarar com simpatia um povo e um homem a ele
pertencente, com defeitos, sim, mas de quem nunca esqueceremos a altiva e
sintética interrogação a um desprezível palrador assente em superioridade
petrolífera, para ele arrasadora – o «Por
qué no te callas» firmemente silenciador, sem preconceito.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 06.08.20
Correu
aí pelos meios de comunicação uma reportagem sobre uma ocorrência no sul de
Espanha em que o dono de um estabelecimento (de comes e bebes?) a quem as
Autoridades queriam impor o encerramento temporário por causa da pandemia, ele
dizia às televisões que o filmavam que aquele era o seu modo de vida e que
defenderia a tiro o seu negócio. E repetiu várias vezes que - Moriré
matando! Não me aterei na apreciação de que lado estava a razão, apenas
constato a seriedade e a violência da afirmação. Para melhor percebermos
Espanha, pode ser de alguma utilidade que o «povo de brandos costumes» tome
nota de que os métodos ali ao lado são muito diferentes dos nossos. Por lá,
aplaudem a morte pública do toiro; por cá, pegamo-lo de caras. Eles fazem os
ciganos subir ao «tablau»[i];
nós, não. Somos diferentes, nem melhores nem piores. * * *
Juan Calos de Borbon y Borbon é, quer se queira quer não, o único
símbolo vivo da Espanha unitária e liberal.
Muitas
foram as dúvidas que se levantaram quando o Cadlillo do «fascio» espanhol o
nomeou seu sucessor passando por cima do candidato à Coroa, D. Juan, Conde
de Barcelona, Pai do então indigitado. Desconheço totalmente que
conversações terão decorrido entre os representantes do «usurpador»[ii]
e o da Casa Real Espanhola para conseguirem que o Conde abdicasse do Trono a
favor do filho.
Objectivamente, D. Juan Carlos foi
entronizado de acordo com o protocolo então em vigor e tudo começou…
Os
historiadores, se forem minimamente imparciais, terão muito mais bem a dizer
desse reinado do que mal mas eu não sou historiador e não preciso de ir aos
arquivos à procura de informação. Eu sou o documento coevo, eu olhei a prudente
distância (sem envolvimentos nem paixões que me fizessem imiscuir em assuntos
estrangeiros) para todo o reinado de D. Juan Carlos. E desde já digo que o
meu distanciamento se deve não só por ser estrangeiro como devido ao facto de
ser filosoficamente republicano. Em compensação, a minha declarada
simpatia para com o hoje Rei emérito se deve a que, com ele comungo do sentido
liberal em que a sociedade se deve movimentar.
Outro
motivo de simpatia tem a ver com a descontracção com que o ainda Príncipe (e
não se mesmo, incógnito, já Rei), convivia com o vulgo da sociedade portuguesa
frequentadora duma discoteca específica em Cascais. Lá estava com
parentes e amigos e, todos nós, os outros, lhe respeitávamos a privacidade. Mas
ninguém abandonava a pista de dança se o Príncipe/Rei ia dançar. E assim era
que um Rei dançava tranquilamente perto de republicanos, monárquicos e agnósticos.
Não seria necessário mais para que a simpatia fosse uma realidade. Nem formal
nem informalmente fui apresentado a D. Juan Carlos mas sempre pensei que quem
se comportava daquele modo não podia ser mau rapaz.
Foi,
pois, à distância geográfica e institucional que fui vendo a evolução de
Espanha.
E
vi o Rei a construir a paz social trazendo Santiago Carrillo a conversar com
ele na Zarzuela, vi o Rei a impor a ordem democrática quando, aos tiros nas
Cortes, a quiseram derrubar, vi uma Espanha ainda estigmatizada na cena
internacional transformar-se numa potência europeia, vi o característico
orgulho espanhol a desviar-se do doentio irredentismo para a via económica, vi
a Peseta a ultrapassar o Escudo, vi uma Espanha aberta ao mundo, vi a redução
drástica do fluxo emigratório e vi uma nova realidade em que a maioria passou a
ter o gosto de nela viver.
Para
muito melhor, a Espanha que era no dia da entronização de D. Juan Carlos não
«chegava aos calcanhares» da Espanha unitária e liberal que legou ao seu
sucessor.
(continua)
Agosto de 2020 Henrique Salles da Fonseca
[i]- «Tablado»,
tabuado, palco
[ii]- Franco, na
boca pequena dos monárquicos liberais fiéis à linha sucessória dos Borbon cujo
Chefe era, então, D. Juan, Conde de Barcelona
Tags:
"política alheia"
COMENTÁRIOS
Anónimo 06.08.2020: M/ Caro Dr.
Salles da Fonseca: Para lá de outros argumentos, certamente mais especiosos,
Franco, El Caudillo, usou o mais prosaico: cortaria a mesada à Família Real -
mesada pontualmente entregue todos os meses, em notas e por mão própria - se a
sua vontade não fosse prontamente obedecida. Era disso que a Família Real, por
cá, vivia - que outros rendimentos não teria.
Henrique Salles da Fonseca 06.08.2020: Isabel
O"Sullivan said: VERY GOOD
Anónimo 06.08.2020: Apoiado! Um
rei com altos e baixos, mas que fez imenso pela sociedade e pela democracia
espanhola! Isso o manterá nos livros de história. Quanto ao resto é assunto da
justiça que o devia julgar como julga o simples cidadão! Em Portugal,
infelizmente os corruptos não precisam de fugir porque não têm ninguém a que
prestar satisfações!
Henrique Salles da
Fonseca 07.08.2020: Texto
fantástico, Henrique. Um forte abraço José Guerra
Anónimo 07.08.2020: Meu amigo
Henrique, de acordo com tudo o que disseste de positivo e, certamente, mais
haveria de dizer. Por exemplo, Espanha não teve tanta escassez de petróleo,
quando do choque petrolífero de 1973, exactamente graças às relações chegadas
(tratam-se por irmãos) entre o Rei Juan Carlos e o Rei da Arábia Saudita, as
mesmas relações, entre as duas Casas Reais, que agora estão a dar grandes
ralações. Quando vivia em Madrid, comprei um livro do jornalista
José García Abad, intitulado “La Soledad del Rey”, relativo a Dom Juan Carlos. O livro é de 2004, editado por La Esfera de los Livros, e o capítulo VIII
inicia-se e termina com frases premonitórias que transcrevo: “El
dinero parece ser el flanco más débil de Su Majestad. Mucho más que ese corazón
enamoradizo que le legaron sus antepassados y que sólo escandaliza a unos pocos…” E “Cabe
esperar, tanto por el escarmiento que pudieran haber producido en el Rey los
encándalos que no han podido silenciarse en su totalidad – Conde,
De la Rosa, Prado -, como por la edad del Monarca, que entra en la etapa
del abuelo venerable, que no sufra el prestígio de la monarquia, que no deja de
ser un elemento positivo en un país tan atormentado en su historia por la
inestabilidad política. No obstante, permanecem abiertos casos que no
permiten ir más allá de las esperanzas y los buenos deseos”. Aos casos então abertos, juntaram-se,
entretanto, outros. Sabes que mais? O teu texto deu-me ganas de reler o livro
que comprei há 16 anos. Abraço. Carlos Traguelho
Adriano Lima 07.08.2020:Excelente
análise com a qual concordo em toda a linha. A introdução é soberba. Este é
daqueles casos em que se tem de olhar para a floresta e não para a árvore
isolada que apodrece. Da minha parte, também sempre senti simpatia por Juan
Carlos.
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