sábado, 29 de agosto de 2020

Uma sensaboria mistificatória

Este livro que o meu filho Artur me ofereceu pelos anos, que, naturalmente agradeço, para ir podendo aperceber-me do que vai sendo publicado uma ou outra vez, ciente, todavia, das limitações da idade, que me vai garantindo que não devo acumular mais poeira à poeira dos livros já acumulados ao longo da vida, livros que não deixarão senão trabalhos aos que vierem depois de mim e tiverem que deles se desfazer, na frieza da indiferença que apunhala de antemão quem toda a vida os amou, e neles se apoiou, seus companheiros de prazer. Mas tal apenas significa o que significa para todos, o apego à vida e aos afectos e a antevisão do nada em que nos tornamos, pese embora a nossa incapacidade de o exprimir, apenas aptos a prostrarmo-nos diante da monumental construção artística pessoana, que continuamente o salienta, nas suas obras de dispersa patronímia, quais pirâmides da sua eternidade.

Mas fui lendo escrupulosamente este livro de João Céu e Silva, publicado no mês de Julho passado, em volume, de antemão reproduzido em fascículos de doze episódios no “DIÁRIO DE NOTÍCIAS” e que, naturalmente, receberá o galardão da sua originalidade. «A segunda vida de Fernando Pessoa», - assim se chama, título que logo atrai as atenções, por ser Fernando Pessoa quem nós sabemos - génio literário que experimentou facetas inúmeras de uma criação sem precedentes, de que o seu “Livro do Desassossego” é pura magia verbal acompanhando um pensamento de complexidade ampla em torno do eu - a acrescentar às suas criações em verso, ficcionadas segundo a sua própria mistificação de diferentes géneses criativas, outros “alter egos” de uma heteronímia correspondente a diferentes personagens das suas realidades forjadas em situações específicas, conforme explica na longa carta de 13 de Janeiro de 1935 a Adolfo Casais Monteiro.

 

Trata-se de um romance, aparentemente, este “A segunda vida de Fernando Pessoa”, de João Céu e Silva, pretendendo repor o heterónimo inicial responsável ficcionalmente pela autoria de «Livro do Desassossego, de nome Vicente Guedes, fazendo-o retomar uma vida que se esvaiu imperceptivelmente no “Livro do Desassossego”, substituído pelo de Bernardo Soares. Mas, para iniciar o próprio processo mistificatório, de professor a ser gradualmente transferido para a personagem Vicente Guedes, o próprio escritor João Céu e Silva antepõe ao início da sua ficção, excertos de apresentação que o próprio “Livro do Desassossego” traz em “Apêndice”, retirado dos escritos de Pessoa:

… «Este livro é a biografia de alguém que nunca teve vida. De Vicente Guedes não se sabe nem quem era nem o que fazia. Este livro não é dele: é ele”….”Ele viveu definitivamente a anestesia interior, aquela atitude de alma que mais se parece com a própria atitude de corpo de um aristocrata completo”…

Todavia, JCS deixa de parte, entre outras referências, um outro escrito de Pessoa sobre Vicente Guedes, que reflecte o seu próprio complexo de ser um simples empregado comercial, peso que acompanhou Pessoa, pela injustiça imerecida de génio que assim se sabia e que não era reconhecido ainda, como merecia:

«Tout notaire a rêvé des sultanes…

Tenho um prazer íntimo, da ironia do ridículo imerecido, quando, sem que alguém estranhe, declaro, nos actos oficiais, em que é preciso dizer a profissão: empregado no comércio. Não sei como inserto o meu nome vem assim no anuário comercial.

Epígrafe ao Diário:

Guedes (Vicente), empregado no comércio, Rua dos Retroseiros, 17-4º, Anuário Comercial de Portugal»

(Em parêntese, aponto que tal atitude, de resto, nem é de estranhar, tive ocasião de o notar em colegas, excelentes alunos do liceu, como o poeta Rui Knopfli fora, que, por razões próprias não vieram para Portugal tirar um curso superior, e quando regressámos com os nossos cursos, o repúdio irónico era uma constante na sua relação para com os “doutores”, afinal, limitados ao seu labor de sustento, mas de capacidades criativas nitidamente inferiores às suas.)

 

Mas, se nos parece original – ou nem tanto assim – a ideia desconcertante de fazer ressurgir um dos heterónimos de Pessoa, com o fito – generoso, embora - de lembrar ao mundo uma atribuição póstuma de um Prémio Nobel a um génio literário - que, de resto, se sabia dele merecedor, como ele-próprio o afirma na Carta a Adolfo Casais Monteiro – e se o livro de João Céu e Silva nos parece uma recriação vivencial que, combinando registos de variadas experiências pessoais do seu autor (literárias, artísticas, comezinhas, por vezes puramente grotescas) se nos afigura de pura profanação – que nos revolta - ao pretender transformar em criatura real, através de uma absurda mistificação, por muito engenhosa que se queira revelar, alguém que, pela sua obra, permanece como um extraordinário espírito criador, que a si próprio se reconhece “emissário de um rei desconhecido” – no que acreditamos piamente.

É certo que João Céu e Silva nos traz à memória inspirações miméticas de intertextualidade – que de resto não esconde – como a Divina Comédia, como inspiradora da visionação de um mundo irreal a que o próprio nome da heroína – Beatriz – surgido tardiamente no enredo (sem quaisquer laivos de semelhança, todavia, com a heroína dantesca), pretende dar mais credibilidade – mas a sua trama nem de longe nem de perto se equipara à irrealidade do encontro de Dante com Virgílio, e mais adiante com Beatriz, nem no sentido crítico que impregna o percurso dos dois poetas sobre os desmandos da época. Mas a fantasia criadora de mitos é coisa antiga e o encontro de vivos e mortos já o próprio Virgílio o desenhara na sua Eneida, certamente inspiradora da Divina Comédia, para não referirmos as práticas do cristianismo sobre a ressurreição de Cristo, ou mesmo o mundo sobrenatural explícito nos autos do nosso Gil Vicente, sem falar, é claro, nas visões apocalípticas do Apóstolo João, e as “Visões da Revelação”…

Aliás, por muito engenhoso que pretenda apresentar-se - nesta construção arrastada, de contínuo suspense, a lembrar os percursos detectivescos da novelística policial –no caso presente de um professor em licença sabática que, por contrato com um misterioso Sena que lhe paga bem, vai seguindo pistas contínuas de leituras e ordens por aquele propostas, num enredo que envolve um aparente suicídio muito anterior, de uma “Besta” na Boca do Inferno, onde Sena também se suicidará, desaparecida a sua razão de existir, e o professor, igualmente se sentirá atraído para o mesmo destino de que será salvo e conduzido pela misteriosa figura de mulher que desde o início Sena lhe destinara – a tal Beatriz - transformado gradualmente em Vicente Guedes, dados os seus traços de semelhança com Pessoa, e objectivo final do agente inicial da trama – Sena – enfim, tanto engenho que mistura pedantemente alhos com bugalhos, numa caldeirada pretensiosa, de revelações literárias frequentes ou outros registos de movimentação fílmica, de alusões literárias descabidas, por vezes de referências fúteis a necessidades básicas, a lembrar a arte realista da actualidade, apesar do clima de mistério da trama, não propícia a pornografias ou sexualidades – haverá quem aprecie o livro, não sei. Eu por mim, vou arrumá-lo, julgo que para sempre.

Julgo que “Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”, conforme se lê na capa, esquecido Vicente Guedes como seu inicial fautor, não passa de mais uma mistificação “à Fernando Pessoa” que só esse poderia formalizar, sem necessitar de esclarecimentos. Apesar da carta a Adolfo Casais Monteiro, com informações sobre a génese da sua heteronímia mais conhecida.


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