quinta-feira, 18 de março de 2021

Com pezinhos de lã


Um texto – de FRANCISCO BETHENCOURT - de nobre aparência, que uma vez mais traz a lume o problema sobre o racismo, como forma de manter a atenção sobre isso, acirrando ódios e manifestações, quantas vezes, com o propósito não de verdadeira bondade, mas de pertencer às modas de novos conceitos igualitários - que, nessa onda de afecto – unilateral, embora, - nos registos escolares em França, segundo li, se propõem também riscar as designações pai e mãe, substituindo-as por “progenitor 1 ou 2” - por via das discriminações a casais homossexuais, a quem generosamente se concede o direito de sobrepor o seu estatuto - muito mais elegante como morfema e, valha a verdade, até como semantema - à banalidade dos de pai e mãe, que isso é designação comum a toda a espécie animal (embora, por outro lado, a humana tendência virtuosa seja de aproximação igualitária a todo esse mundo zoológico).

Quanto à questão do racismo, tão explorado nos nossos dias, acrescento um texto antigo - de JOÃO PEDRO MARQUESque, com saber, esclarecerá sobre a evolução dos direitos do homem e, naturalmente, dos povos, ao longo dos séculos, com a abolição do esclavagismo, que complemento com a frase seguinte, dele extraída:

«Apesar de tudo, no espaço de um século, e numa das mais surpreendentes reviravoltas da história da humanidade, o Ocidente pôs fim ao sistema escravista, sistema que vinha desde as profundezas do tempo e que constituía uma fonte substancial da sua riqueza, o que é extraordinário.»

I- OPINIÃO

Memória histórica

Acusar de fractura da identidade nacional a denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão do lado da lei.

FRANCISCO BETHENCOURT

PÚBLICO, 18 de Março de 2021

Nem todos os portugueses partilham o sentimento de hiperidentidade que o Eduardo Lourenço elogiou na passagem da ditadura para a democracia. A crítica histórica é sentida por alguns como um atentado ao ser colectivo, enquanto a crítica literária, inclusive de autores que se distinguiram pelo julgamento corrosivo do seu mundo contemporâneo, como Eça de Queirós, levanta imediatamente um coro de protesto. O património literário ou histórico não é uma relíquia; Eça ironizou sobre o tema. Existe uma hipersensibilidade negativa que não parece espontânea, faz parte do jogo político mais recente.

A crítica é inerente ao devir de uma nação, não existe nem pode existir uma visão uniforme do que somos hoje e do que fomos no passado. Qualquer país é atravessado por divisões sociais com interesses divergentes e mesmo antagónicos, que se reflectem em visões conflituosas do passado e do presente. É dessa dinâmica que se faz uma nação enquanto dimensão colectiva de um povo com património linguístico e cultural multidireccional, em permanente construção e reconstrução.

Quando organizei com o Diogo Ramada Curto o livro A memória da nação (1991), a ideia era justamente compreender as múltiplas dimensões de um devir histórico modelado por relações de poder em constante negociação, direitos contra privilégios, regimes de propriedade, formas religiosas e configurações culturais que contribuíram para formas plurais de identidade. Esse projecto era inspirado por três autores, Pierre Nora, que publicara os Lugares de memória, um vasto estudo colectivo do património francês como marca identitária, Alphonse Dupront, interessado na história do mito da cruzada e na fabricação do sentimento nacional, e Eric Hobsbawm, o historiador inglês mais influente do século XX, que estudou processos de invenção do passado. Embora a dimensão de classe social e de construção histórica estivessem presentes, a dimensão de género e a dimensão étnica ou racial não estavam assimiladas.

A diferença entre memória histórica, baseada na análise crítica do passado, e a memória colectiva, necessariamente plural, em permanente mudança em função das realidades do presente, que impõem reorganizações e amnésias na percepção do passado, ficou contudo clara. Existem intersecções entre a memória histórica e a memória colectiva, pois as políticas da memória desenvolvidas pelos poderes públicos procuram celebrar acontecimentos e erigir monumentos que consagrem os fundamentos dos respectivos regimes.

O conflito em torno das comemorações do centenário do Infante D. Henrique em 1960, que deixou traços no Padrão dos Descobrimentos e no arranjo da Praça do Império, opôs uma visão da história baseada na religião e nos homens providenciais, clara apropriação salazarista do passado, a uma visão da história baseada na dimensão colectiva da emigração em massa (um milhão e meio até ao início do século XIX, numa população que variou de um a três milhões), onde os interesses económicos e comerciais desempenharam um papel decisivo, sem esquecer a religião. A visão elitista do salazarismo, que bem cuidou dos interesses dos ricos, como assinalou Eduardo Lourenço, está expressa na fonte da Praça do Império, com os brasões de armas das casas nobres que teriam feito a expansão portuguesa. Nunca defendi a demolição destes monumentos por duas razões: o Padrão dos Descobrimentos foi objecto de um bom trabalho de adaptação, memorialização e actualização de programa, enquanto a fonte deve lá ficar como testemunho de um regime ditatorial e elitista que não pode inspirar ninguém com a cabeça no século XXI. Não falo sequer da proposta de restauro dos jardins kitsch com a heráldica colonial, é simplesmente ofensiva dos países africanos e asiáticos com quem devemos ter boas relações.

O projecto de 1991, que recusava a apropriação da linguagem da nação pela extrema-direita nostálgica, que eu distingo da direita liberal, precisa de ser actualizado. Nos últimos 30 anos Portugal aprofundou a sua relação com a União Europeia, embora a economia tenha registado uma relativa estagnação desde os anos 2000, agravada pela crise financeira de 2008 e pela crise da covid-19 em 2020. Esta relativa estagnação tem suscitado tensões numa população que criou expectativas de uma vida melhor que não têm sido satisfeitas. A desigualdade económica e social entre ricos e pobres, que se atenuou até ao final dos anos de 2000, aumenta de novo, com a apropriação de boa parte da riqueza por 1% da população mais rica. A emigração tem tido altos e baixos, mas em relação ao total da população Portugal tem uma das taxas mais elevadas de saídas acumuladas. Por fim, a imigração, que teve um pico com a independência dos PALOP, continua a fluir para cobrir as necessidades de trabalho agrícola que não atraem os portugueses, responder a condições políticas insuportáveis noutros países, e aproveitar as novas oportunidades de Visa Gold e impostos preferenciais para reformados estrangeiros.

As sondagens revelam, antes de mais, a ignorância da norma antirracista que prevalece no mundo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige acção do ministro responsável.

Embora não existam estatísticas sobre a nova realidade racial da população portuguesa, é evidente que o impacto de duas gerações de imigrantes com diferentes origens exige um esforço de integração. A memória histórica das realidades da nossa própria emigração multicontinental pode ajudar. O debate em torno do racismo não pode ser varrido como um problema artificial, tornando equivalentes racistas e antirracistas, manobra maliciosa de naturalização e justificação da discriminação. Acusar de fractura da identidade nacional a denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão do lado da lei. Os últimos estudos económicos sobre discriminação racial, como o de Heather McGhee em relação aos Estados Unidos, certamente com problema mais fundo, mostram a importância de políticas de desenvolvimento integradas.

Todos conhecemos as sondagens europeias mais recentes que indicam 60% da população portuguesa com opiniões racistas. A minha definição de racismo envolve duas componentes, preconceito contra descendência étnica combinado com acção discriminatória. A maioria da população não está envolvida na discriminação de minorias, mas o problema deve ser tratado com toda a seriedade, pois existem crimes racistas regulares, como o assassinato recente de Bruno Candé, os constantes ataques físicos e verbais a dirigentes associativos e jogadores de futebol, as pichagens insultuosas nas paredes de associações e escolas, a interrupção de sessões escolares com mensagens racistas. As crianças devem ser protegidas de traumatismos que ficam para a vida.

As sondagens revelam, antes de mais, a ignorância da norma antirracista que prevalece no mundo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, a qual influenciou a nossa constituição e legislação penal, baseadas na noção de dignidade e igualdade de todos os seres humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige acção do ministro responsável. Professor no King's College de Londres

TÓPICOS  RACISMO  HISTÓRIA  DIREITOS HUMANOS  COLONIALISMO  PORTUGAL  DESCOBRIMENTOS  ESCRAVATURA

COMENTÁRIOS:

Coletivo Criatura  INFLUENTE: Uma visão sem estados de alma, ponderada e daquelas que devem entrar no debate sobre o que foi a nossa história, o que somos e o que queremos vir a ser: menos racistas e mais inclusivos. Lembro que há, nesta área, dois extremos, que mutuamente se alimentam. Importa avançar no combate ao racismo, às desigualdades sociais, etc. É esse o combate e não a construção de ódios mútuos, sem esquecer que há quem não queira trabalhar criticamente a memória e quem a queira manipular por interesse ideológico. Quanto aos 60% referidos, o valor não tem particular interesse, sabendo o que sabemos sobre a construção deste tipo de inquéritos. Fossem 30% e já seria mau! Não devia haver uma só pessoa vítima de racismo, a sofrer, a não ver reconhecida a sua dor.                Jonas Jerónimo  INICIANTE: Aconselho a todos a leitura do livro "História dos Racismos", do Professor Francisco. Uma lição.

II - Onde estão os factos? Réplica a Francisco Bethencourt

É uma maçada quando a ideologia se agiganta, extravasa e condiciona o que devia ser o principal métier do historiador, isto é, a fria análise de factos e argumentos.

JOÃO PEDRO MARQUES           OBSERVADOR, 01 ago 2019

Francisco Bethencourt dedica um artigo no Público a João Miguel Tavares e a mim, artigo que é, na parte que me toca, uma tentativa de resposta a comentários que fiz a um anterior texto seu. Nesse texto Bethencourt havia afirmado, taxativamente, que tinham sido as revoltas de escravos dos séculos XVIII e XIX a suscitar o problema político da escravatura. Eu contestei essa afirmação e afirmei que ela não tinha suporte factual, além de ser coxa do ponto de vista lógico.

Infelizmente neste seu novo artigo Francisco Bethencourt não traz suporte factual nem melhora a lógica dessa sua afirmação. De facto, ilude todas as minhas objecções e perguntas, baralha-as numa série de referências sortidas, mas não nos mostra que revoltas escravas concretas teriam suscitado o problema político da escravatura, nem por que razão, antes do desenvolvimento do abolicionismo, as muitas revoltas escravas ocorridas em várias partes do mundo foram incapazes de suscitar esse problema político e de levar à abolição da escravidão. Em vez de nos falar de rebeliões concretas Francisco Bethencourt prefere medir o impacto de algumas delas pelo eco que terão tido em Wilberforce e Clarkson, dois abolicionistas britânicos da viragem de Setecentos para Oitocentos, mas esse não é um bom método de avaliação. Os abolicionistas falavam assiduamente de revoltas escravas, potenciais ou efectivas, com o intuito de explorar o medo, isto é, como mais um argumento a favor da abolição que desejavam implementar. Era um elemento de propaganda. O medo, compreensível e inevitável em toda e qualquer sociedade escravista, nunca, ao longo de milénios, impediu a escravatura, nunca evitou que os senhores distribuíssem armas a alguns dos seus escravos, tal como não obstou a que continuassem a praticar a escravidão, mesmo com trágicos e sangrentos exemplos à frente dos olhos. Bastará pensar que a generalidade das abolições, no Ocidente, só ocorreu 40 a 90 anos depois da revolta que levaria à independência do Haiti e que tinha implicado a morte de 80 mil europeus e o extermínio dos brancos na ex-colónia. O que pôs fim ao tráfico de escravos e à escravidão não foi o medo, mas sim um novo pensamento sobre liberdade e direitos das pessoas. Foi lenta a difusão e aceitação desse pensamento? Talvez, como é usual na difusão de ideias, sobretudo quando enfrentam muitos e poderosos interesses instalados. Apesar de tudo no espaço de um século, e numa das mais surpreendentes reviravoltas da história da humanidade, o Ocidente pôs fim ao sistema escravista, sistema que vinha desde as profundezas do tempo e que constituía uma fonte substancial da sua riqueza, o que é extraordinário.

É verdade que Francisco Bethencourt nos diz, en passant, que “várias formas de escravatura continuam a existir no mundo, incluindo no mundo ocidental”. É um argumento curioso que procura contrariar a tese da “bondade do Ocidente” (a expressão é sua). Mas é um falso argumento. A história humana é feita de subidas e descidas, de avanços e recuos, de acções e reacções. O facto de existirem, hoje, formas de exploração parecidas com a antiga escravatura (e convém lembrar que essa antiga escravatura implicava a posse da pessoa e da sua descendência, o que hoje é inteiramente ilegal) não invalida que ela tenha sido abolida e suprimida no passado. Aconteceu. Foi feito, no Ocidente, pelo homem branco e pelos negros que se juntaram à sua causa. Isto não significa que haja alguma superioridade do homem branco relativamente a outros, apenas que eram os brancos que, naquela circunstância, sendo livres e detendo o poder, estavam em posição de o fazer. E fizeram-no, com sacrifício de bens e de vidas, e muitas vezes contra os seus interesses materiais imediatos. Não há aqui nenhuma hierarquia branco-negro nem nenhuma teoria sobre superioridade cultural. O que há é a constatação de factos que não podem ser apagados, adulterados e substituídos por versões politicamente correctas.

Se não quer dar-nos exemplos de revoltas concretas, a verdade é que Bethencourt também já não se atreve a repetir a sua afirmação anterior. Agora, já não diz que foram as revoltas de escravos dos séculos XVIII e XIX que suscitaram o problema político da escravatura. Divide essa sua afirmação por três “causas” diferentes — a perda das colónias da América do Norte, as revoltas de escravos nas Caraíbas, e o liberalismo económico assente em Adam Smith — e afunila o assunto, focando-se única e exclusivamente no caso britânico, quando há muitos outros casos, como se sabe. Sim, as abolições tiveram várias causas, como já escrevi inúmeras vezes — Bethencourt está a pregar a um convertido — mas, com excepção do caso particularíssimo do Haiti, que analisei em artigo anterior, as revoltas escravas não fazem parte dessas causas. Não houve revoltas escravas a anteceder, de forma próxima, as abolições em Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos, Holanda, etc. Mesmo nos casos muito especiais da primeira abolição francesa (1794) e da Grã-Bretanha só houve revoltas visando o fim da escravidão depois de abolicionistas terem começado a agitar as águas e a apontar nessa direcção. Acresce que Bethencourt parece ignorar (ou não valorizar) o facto de já ter havido abolições da escravidão em Portugal, com o marquês de Pombal, e em vários estados do norte dos Estados Unidos antes da campanha abolicionista ter arrancado na Grã-Bretanha e em França e da eclosão das revoltas de escravos nas Caraíbas a que vagamente alude. Ou seja, desde meados do século XVIII que a contestação à escravidão estava em marcha, no Ocidente, contestação que viria, depois, a ter expressão política, fosse ou não sob a forma de grupos organizados e de acção de massas. Ao contrário do que Francisco Bethencourt sugere, o facto de os Países Baixos, Portugal e, até, a França, terem tido movimentos abolicionistas relativamente fracos não significa uma ausência de “bondade” no Ocidente e que tudo tivesse sido feito, nesses países, por mesquinho interesse económico. Não eram necessários movimentos abolicionistas pujantes para se chegar à abolição. Esse foi o modelo anglo-saxónico que mais uma vez deforma a perspectiva do meu colega Bethencourt. No resto dos países a abolição foi assunto decidido pelas elites políticas nos parlamentos ou nos corredores e gabinetes dos governos, e, depois, aceite pela população em geral. O Brasil, que, nas últimas décadas do século XIX seguiu o modelo anglo-saxónico e teve um movimento abolicionista vigoroso foi, curiosamente, o último país ocidental a abolir a escravidão. O importante, de qualquer modo, é sublinhar que o pensamento e sentimento abolicionistas se difundiam no mundo ocidental desde meados do século XVIII. Só depois disso eclodiram algumas revoltas escravas que, apanhando essa onda de contestação ao escravismo, visavam o fim da escravidão. Isto não exclui os escravos negros da história, mas realça o facto de que a escravidão não acabou devido às suas revoltas.

Afirmar, como faz Francisco Bethencourt, que a “bondade” do Ocidente foi, na verdade, movida pelo interesse económico e “imposta pela Royal Navy a outras potências coloniais para evitar assimetrias de concorrência” é mais outra afirmação que não resiste à crítica. A tese do interesse económico, associada à perda das colónias americanas e à resistência escrava, só se aplicaria, se fosse verdadeira, à Grã-Bretanha, é velha e relha, vem, no essencial, de Eric Williams (1944) e começou a ser demolida por Seymour Drescher nos anos 70. E a ideia de que a Royal Navy “impôs” as abolições é uma generalização insustentável. Se é em grande medida válida no que respeita aos casos do tráfico transatlântico de escravos português e brasileiro, não se aplica aos países mais poderosos. Os ingleses não desejavam enfrentar os Estados Unidos, a França ou, até mesmo, a Espanha. Quando interferiram com a navegação dos Estados Unidos, em 1812, tiveram uma guerra que não ganharam. E, como toda a gente compreenderá a Royal Navy, que sulcava os mares, nada tem a ver com a abolição da escravidão nos territórios africanos ou americanos de cada potência. Esse foi um processo inteiramente interno, mesmo no caso de países debilitados ou dependentes como era, por exemplo, Portugal. Bethencourt engana-se redondamente quando supõe que o fim da escravidão nas colónias portuguesas foi forçado pela Grã-Bretanha.

A abolição do tráfico de escravos e da escravidão foi, essencialmente e na origem, uma causa de alguns homens brancos e os escravos tinham plena consciência do que lhes deviam e da ajuda que junto deles podiam encontrar. Foi por isso que, ao avistarem, em pleno Atlântico, um brigue de guerra britânico, os africanos transportados num navio negreiro suplicaram, em gritos lancinantes, auxílio ao abolicionista Wilberforce (“Mr. Wilberforce make we free”); foi por isso que em Richmond, Virginia, já perto do final da Guerra da Secessão, os escravos recém-libertados se ajoelharam à passagem do presidente Lincoln (que lhes pediu que se erguessem). Estas pessoas que assim se comportavam percebiam bem melhor do que vários académicos da actualidade aquilo que fora feito, a que custo e por quem.

A importância do abolicionismo e a romântica ilusão de que teriam sido as revoltas escravas a provocá-lo são temas aos quais dediquei um livro, em 2006, livro esse que viria a ser publicado em Nova Iorque e Oxford, em 2010, com novo título — Who Abolished Slavery? — e muito enriquecido porque a ele se juntaram, sob a forma de debate, as contribuições, os comentários, as críticas, de onze colegas historiadores da escravatura. Não sei se Francisco Bethencourt conhece esse livro ou se, conhecendo-o, optou por não considerar o que aí se discutiu e concluiu. Seja como for, convém lembrar que a maioria dos intervenientes nesse debate — maioria na qual se incluem historiadores da craveira de David B. Davis e de Seymour Drescher — concordou com a minha tese central, isto é, que a abolição da escravidão não foi resultado da resistência dos escravos, mas sim da emergência de um novo factor: o abolicionismo.

Em suma, neste seu mais recente artigo Francisco Bethencourt desvia-se a tal ponto das questões que eu lhe coloquei que nos deixa, no que à história da escravatura diz respeito, uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Nesse sentido faz-me lembrar o historiador norte-americano Ira Berlin, que em 2015 escreveu um livro para refutar aquilo que eu escrevi, mas na verdade não refutou um único dos meus argumentos. Passou-lhes inteiramente ao lado, limitando-se a repetir fórmulas antigas e a contestar o conteúdo do filme Lincoln, de Steven Spielberg (que também não lhe agradou por Spielberg ter atribuído um papel muito importante aos políticos brancos na abolição da escravidão nos Estados Unidos). É uma maçada quando a ideologia se agiganta, extravasa e condiciona o que devia ser o principal métier do historiador, isto é, a fria análise de factos e argumentos.          Historiador e romancista     

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