Um texto – de FRANCISCO
BETHENCOURT - de nobre aparência, que uma vez mais traz a lume o
problema sobre o racismo, como forma de manter a atenção sobre isso, acirrando
ódios e manifestações, quantas vezes, com o propósito não de verdadeira bondade,
mas de pertencer às modas de novos conceitos igualitários - que, nessa onda de
afecto – unilateral, embora, - nos registos escolares em França, segundo li, se
propõem também riscar as designações pai
e
mãe, substituindo-as por “progenitor 1 ou 2” - por via das discriminações a casais homossexuais, a
quem generosamente se concede o direito de sobrepor o seu estatuto - muito mais
elegante como morfema e, valha a verdade, até como semantema - à banalidade dos
de pai e mãe, que isso é designação comum a toda a espécie animal
(embora, por outro lado, a humana tendência virtuosa seja de aproximação igualitária
a todo esse mundo zoológico).
Quanto à questão do racismo, tão explorado
nos nossos dias, acrescento um texto antigo - de JOÃO PEDRO MARQUES – que, com
saber, esclarecerá sobre a evolução dos direitos do homem e, naturalmente, dos
povos, ao longo dos séculos, com a abolição do esclavagismo, que complemento
com a frase seguinte, dele extraída:
«Apesar de tudo,
no espaço de um século, e numa das mais surpreendentes reviravoltas da história
da humanidade, o Ocidente pôs fim ao sistema escravista, sistema que vinha
desde as profundezas do tempo e que constituía uma fonte substancial da sua
riqueza, o que é extraordinário.»
I- OPINIÃO
Memória histórica
Acusar de fractura da identidade
nacional a denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão
do lado da lei.
FRANCISCO
BETHENCOURT
PÚBLICO, 18 de
Março de 2021
Nem
todos os portugueses partilham o sentimento de hiperidentidade que o Eduardo
Lourenço elogiou na passagem da ditadura para a
democracia. A crítica histórica é sentida por alguns como um atentado ao ser
colectivo, enquanto a crítica literária, inclusive de autores que se
distinguiram pelo julgamento corrosivo do seu mundo contemporâneo, como Eça de
Queirós, levanta imediatamente um coro de protesto. O património literário ou
histórico não é uma relíquia; Eça ironizou sobre o tema. Existe uma
hipersensibilidade negativa que não parece espontânea, faz parte do jogo
político mais recente.
A
crítica é inerente ao devir de uma nação, não existe nem pode existir uma visão
uniforme do que somos hoje e do que fomos no passado. Qualquer país é
atravessado por divisões sociais com interesses divergentes e mesmo
antagónicos, que se reflectem em visões conflituosas do passado e do presente.
É dessa dinâmica que se faz uma nação enquanto dimensão colectiva de um povo
com património linguístico e cultural multidireccional, em permanente
construção e reconstrução.
Quando
organizei com o Diogo Ramada Curto o
livro A memória da nação (1991),
a ideia era justamente compreender as múltiplas dimensões de um devir
histórico modelado por relações de poder em constante negociação, direitos
contra privilégios, regimes
de propriedade, formas religiosas e configurações culturais que contribuíram
para formas plurais de identidade. Esse projecto
era inspirado por três autores, Pierre Nora,
que publicara os Lugares de memória, um
vasto estudo colectivo do património francês como marca identitária, Alphonse
Dupront, interessado na história do mito da
cruzada e na fabricação do sentimento nacional, e Eric Hobsbawm, o historiador inglês mais influente do século XX,
que estudou processos de invenção do passado. Embora a dimensão de classe social e de construção
histórica estivessem presentes, a dimensão de género e a dimensão
étnica ou racial não estavam assimiladas.
A diferença entre memória histórica, baseada
na análise crítica do passado, e a memória
colectiva, necessariamente plural, em permanente mudança em
função das realidades do presente, que impõem reorganizações e amnésias na percepção do passado, ficou
contudo clara. Existem
intersecções entre a memória histórica e a memória colectiva, pois as políticas
da memória desenvolvidas pelos poderes públicos procuram celebrar
acontecimentos e erigir monumentos que consagrem os fundamentos dos respectivos
regimes.
O conflito em torno das
comemorações do centenário do Infante D. Henrique em 1960, que deixou traços no
Padrão dos Descobrimentos e no arranjo da Praça do Império, opôs
uma visão da história baseada na
religião e nos homens providenciais, clara apropriação salazarista do passado,
a uma visão da história baseada na dimensão colectiva da emigração em massa (um
milhão e meio até ao início do século XIX, numa população que variou de um a
três milhões), onde os interesses económicos e comerciais desempenharam um
papel decisivo, sem esquecer a religião. A
visão elitista do salazarismo, que bem cuidou dos interesses dos ricos, como assinalou Eduardo Lourenço, está
expressa na fonte
da Praça do Império, com os brasões de armas das casas nobres que teriam feito
a expansão portuguesa. Nunca
defendi a demolição destes monumentos por duas razões: o
Padrão dos Descobrimentos foi objecto de um bom trabalho de adaptação,
memorialização e actualização de programa, enquanto a fonte deve lá ficar como testemunho de um regime ditatorial
e elitista que não pode inspirar ninguém com a cabeça no século XXI. Não falo sequer da proposta de restauro dos jardins kitsch com
a heráldica colonial, é simplesmente ofensiva dos países africanos e
asiáticos com quem devemos ter boas relações.
O
projecto de 1991, que recusava a apropriação da linguagem da nação pela
extrema-direita nostálgica, que eu distingo da direita liberal, precisa de ser
actualizado. Nos últimos 30 anos Portugal aprofundou a sua
relação com a União Europeia, embora a economia tenha registado uma relativa
estagnação desde os anos 2000, agravada pela crise financeira de 2008 e pela crise da covid-19 em 2020. Esta
relativa estagnação tem suscitado tensões numa população
que criou expectativas de uma vida melhor que não têm sido satisfeitas. A
desigualdade económica e social entre ricos e pobres, que se atenuou até ao
final dos anos de 2000, aumenta de novo, com a apropriação de boa parte da
riqueza por 1% da população mais rica. A emigração tem tido altos e baixos, mas
em relação ao total da população Portugal tem uma das taxas mais elevadas de
saídas acumuladas. Por fim, a imigração, que
teve um pico com a independência dos PALOP, continua a fluir para cobrir
as necessidades de trabalho agrícola que não atraem os portugueses, responder a
condições políticas insuportáveis noutros países, e aproveitar as novas
oportunidades de Visa Gold e impostos preferenciais para reformados
estrangeiros.
As
sondagens revelam, antes de mais, a ignorância da norma antirracista que
prevalece no mundo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica
para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige acção do ministro
responsável.
Embora
não existam estatísticas sobre a nova realidade racial da população portuguesa,
é evidente que o impacto de duas gerações de imigrantes com diferentes origens
exige um esforço de integração. A memória histórica das realidades da nossa
própria emigração multicontinental pode ajudar. O debate em
torno do racismo não pode ser varrido como um problema artificial, tornando
equivalentes racistas e antirracistas, manobra maliciosa de naturalização e
justificação da discriminação. Acusar de fractura da identidade nacional a
denúncia do racismo é uma tentativa de calar os que sofrem e estão do lado da
lei. Os últimos estudos económicos sobre
discriminação racial, como o de Heather McGhee em relação aos Estados Unidos, certamente com
problema mais fundo, mostram a importância de políticas de desenvolvimento
integradas.
Todos
conhecemos as sondagens europeias mais recentes que indicam 60% da
população portuguesa com opiniões racistas. A minha definição de racismo envolve duas componentes,
preconceito contra descendência étnica combinado com acção discriminatória. A maioria da população não está envolvida na
discriminação de minorias, mas o problema deve ser tratado com toda a
seriedade, pois existem crimes racistas regulares, como o assassinato recente de Bruno Candé, os
constantes ataques físicos e verbais a dirigentes associativos e jogadores de futebol, as pichagens insultuosas nas paredes de associações e
escolas, a interrupção de sessões escolares com mensagens racistas.
As crianças devem ser protegidas de traumatismos que ficam para a vida.
As sondagens revelam, antes de mais,
a ignorância da norma antirracista que prevalece no mundo desde a Declaração
Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, a qual influenciou a
nossa constituição e legislação penal, baseadas na noção de dignidade e igualdade
de todos os seres humanos. Trata-se de uma falha clamorosa de educação cívica
para a qual o Conselho de Educação já alertou e que exige acção do ministro
responsável. Professor no King's College de
Londres
TÓPICOS RACISMO
HISTÓRIA DIREITOS HUMANOS COLONIALISMO PORTUGAL DESCOBRIMENTOS ESCRAVATURA
COMENTÁRIOS:
Coletivo Criatura INFLUENTE: Uma visão sem estados de alma,
ponderada e daquelas que devem entrar no debate sobre o que foi a nossa
história, o que somos e o que queremos vir a ser: menos racistas e mais
inclusivos. Lembro que há, nesta área, dois extremos, que mutuamente se alimentam.
Importa avançar no combate ao racismo, às desigualdades sociais, etc. É esse o
combate e não a construção de ódios mútuos, sem esquecer que há quem não queira
trabalhar criticamente a memória e quem a queira manipular por interesse
ideológico. Quanto aos 60% referidos, o valor não tem particular interesse,
sabendo o que sabemos sobre a construção deste tipo de inquéritos. Fossem 30% e
já seria mau! Não devia haver uma só pessoa vítima de racismo, a sofrer, a não
ver reconhecida a sua dor. Jonas Jerónimo INICIANTE: Aconselho a todos a leitura do livro "História
dos Racismos", do Professor Francisco. Uma lição.
II - Onde estão os factos? Réplica a Francisco
Bethencourt
É uma maçada quando a ideologia se
agiganta, extravasa e condiciona o que devia ser o principal métier do
historiador, isto é, a fria análise de factos e argumentos.
JOÃO PEDRO
MARQUES OBSERVADOR, 01 ago 2019
Francisco Bethencourt dedica um artigo no Público a João Miguel
Tavares e a mim, artigo que é, na parte que me toca, uma tentativa de resposta
a comentários
que fiz a um anterior texto seu. Nesse texto Bethencourt havia
afirmado, taxativamente, que tinham sido as revoltas de escravos dos séculos
XVIII e XIX a suscitar o problema político da escravatura. Eu contestei essa
afirmação e afirmei que ela não tinha suporte factual, além de ser coxa do
ponto de vista lógico.
Infelizmente neste seu novo artigo Francisco
Bethencourt não traz suporte factual nem melhora a lógica dessa sua afirmação.
De facto, ilude todas as minhas objecções e perguntas, baralha-as numa série de
referências sortidas, mas não nos mostra que revoltas escravas concretas
teriam suscitado o problema político da escravatura, nem por que razão, antes
do desenvolvimento do abolicionismo, as muitas revoltas escravas ocorridas em
várias partes do mundo foram incapazes de suscitar esse problema político e de levar
à abolição da escravidão. Em vez de nos falar de rebeliões concretas
Francisco Bethencourt prefere medir o impacto de algumas delas pelo eco que
terão tido em Wilberforce e Clarkson, dois abolicionistas britânicos da viragem
de Setecentos para Oitocentos, mas esse não é um bom método de avaliação. Os
abolicionistas falavam assiduamente de revoltas escravas, potenciais ou
efectivas, com o intuito de explorar o medo, isto é, como mais um argumento a
favor da abolição que desejavam implementar. Era um elemento de propaganda. O
medo, compreensível e inevitável em toda e qualquer sociedade escravista,
nunca, ao longo de milénios, impediu a escravatura, nunca evitou que os
senhores distribuíssem armas a alguns dos seus escravos, tal como não obstou a
que continuassem a praticar a escravidão, mesmo com trágicos e sangrentos
exemplos à frente dos olhos. Bastará pensar que a generalidade das
abolições, no Ocidente, só ocorreu 40 a 90 anos depois da revolta que levaria à
independência do Haiti e que tinha implicado a morte de 80 mil europeus e o
extermínio dos brancos na ex-colónia. O que pôs fim ao tráfico de
escravos e à escravidão não foi o medo, mas sim um novo pensamento sobre
liberdade e direitos das pessoas. Foi lenta a difusão e aceitação desse
pensamento? Talvez, como é usual na difusão de ideias, sobretudo quando
enfrentam muitos e poderosos interesses instalados. Apesar de tudo no espaço de
um século, e numa das mais surpreendentes reviravoltas da história da
humanidade, o Ocidente pôs fim ao sistema escravista, sistema que vinha desde
as profundezas do tempo e que constituía uma fonte substancial da sua riqueza,
o que é extraordinário.
É verdade que Francisco Bethencourt nos diz, en passant, que “várias formas
de escravatura continuam a existir no mundo, incluindo no mundo ocidental”. É
um argumento curioso que procura contrariar a tese da “bondade do Ocidente” (a
expressão é sua). Mas é um falso argumento. A história humana é feita de
subidas e descidas, de avanços e recuos, de acções e reacções. O facto de
existirem, hoje, formas de exploração parecidas com a antiga escravatura (e
convém lembrar que essa antiga escravatura implicava a posse da pessoa e da sua
descendência, o que hoje é inteiramente ilegal) não invalida que ela tenha sido
abolida e suprimida no passado. Aconteceu. Foi feito, no Ocidente, pelo homem
branco e pelos negros que se juntaram à sua causa. Isto não significa que haja
alguma superioridade do homem branco relativamente a outros, apenas que eram os
brancos que, naquela circunstância, sendo livres e detendo o poder, estavam em
posição de o fazer. E fizeram-no, com sacrifício de bens e de vidas, e muitas
vezes contra os seus interesses materiais imediatos. Não há aqui nenhuma
hierarquia branco-negro nem nenhuma teoria sobre superioridade cultural. O que
há é a constatação de factos que não podem ser apagados, adulterados e
substituídos por versões politicamente correctas.
Se não quer dar-nos exemplos de revoltas concretas, a
verdade é que Bethencourt também já não se atreve a repetir a sua afirmação
anterior. Agora, já não diz que foram as revoltas de escravos dos séculos
XVIII e XIX que suscitaram o problema político da escravatura. Divide essa sua
afirmação por três “causas” diferentes — a perda das colónias da América do
Norte, as revoltas de escravos nas Caraíbas, e o liberalismo económico assente
em Adam Smith — e afunila o assunto, focando-se única e exclusivamente no caso
britânico, quando há muitos outros casos, como se sabe. Sim, as abolições
tiveram várias causas, como já escrevi inúmeras vezes — Bethencourt está a
pregar a um convertido — mas, com excepção do caso particularíssimo do Haiti,
que analisei em artigo anterior, as revoltas escravas não fazem parte dessas
causas. Não houve revoltas escravas a anteceder, de forma próxima, as
abolições em Portugal, Espanha, Dinamarca, Estados Unidos, Holanda, etc. Mesmo
nos casos muito especiais da primeira abolição francesa (1794) e da
Grã-Bretanha só houve revoltas visando o fim da escravidão depois de
abolicionistas terem começado a agitar as águas e a apontar nessa direcção.
Acresce que Bethencourt parece ignorar (ou não valorizar) o facto de já ter
havido abolições da escravidão em Portugal, com o marquês de Pombal, e em
vários estados do norte dos Estados Unidos antes da campanha abolicionista ter
arrancado na Grã-Bretanha e em França e da eclosão das revoltas de escravos nas
Caraíbas a que vagamente alude. Ou seja, desde meados do século XVIII que a
contestação à escravidão estava em marcha, no Ocidente, contestação que viria,
depois, a ter expressão política, fosse ou não sob a forma de grupos
organizados e de acção de massas. Ao contrário do que Francisco Bethencourt
sugere, o facto de os Países Baixos, Portugal e, até, a França, terem tido
movimentos abolicionistas relativamente fracos não significa uma ausência de
“bondade” no Ocidente e que tudo tivesse sido feito, nesses países, por
mesquinho interesse económico. Não eram necessários movimentos abolicionistas
pujantes para se chegar à abolição. Esse foi o modelo anglo-saxónico que
mais uma vez deforma a perspectiva do meu colega Bethencourt. No resto dos
países a abolição foi assunto decidido pelas elites políticas nos parlamentos
ou nos corredores e gabinetes dos governos, e, depois, aceite pela população em
geral. O Brasil, que, nas últimas décadas do século XIX seguiu o modelo
anglo-saxónico e teve um movimento abolicionista vigoroso foi, curiosamente, o
último país ocidental a abolir a escravidão. O importante, de qualquer modo, é
sublinhar que o pensamento e sentimento abolicionistas se difundiam no mundo
ocidental desde meados do século XVIII. Só depois disso eclodiram algumas
revoltas escravas que, apanhando essa onda de contestação ao escravismo,
visavam o fim da escravidão. Isto não exclui os escravos negros da história, mas
realça o facto de que a escravidão não acabou devido às suas revoltas.
Afirmar, como faz Francisco Bethencourt, que a
“bondade” do Ocidente foi, na verdade, movida pelo interesse económico e
“imposta pela Royal Navy a outras potências coloniais para evitar assimetrias
de concorrência” é mais outra afirmação que não resiste à crítica. A tese do
interesse económico, associada à perda das colónias americanas e à resistência
escrava, só se aplicaria, se fosse verdadeira, à Grã-Bretanha, é velha e relha,
vem, no essencial, de Eric Williams (1944) e começou a ser demolida por Seymour
Drescher nos anos 70. E a ideia de que a Royal Navy “impôs” as abolições é uma
generalização insustentável. Se é em grande medida válida no que respeita
aos casos do tráfico transatlântico de escravos português e brasileiro, não se
aplica aos países mais poderosos. Os ingleses não desejavam enfrentar os
Estados Unidos, a França ou, até mesmo, a Espanha. Quando interferiram com a
navegação dos Estados Unidos, em 1812, tiveram uma guerra que não ganharam. E,
como toda a gente compreenderá a Royal Navy, que sulcava os mares, nada tem a
ver com a abolição da escravidão nos territórios africanos ou americanos de
cada potência. Esse foi um processo inteiramente interno, mesmo no caso de países
debilitados ou dependentes como era, por exemplo, Portugal. Bethencourt engana-se redondamente quando supõe
que o fim da escravidão nas colónias portuguesas foi forçado pela Grã-Bretanha.
A abolição do tráfico de escravos e da escravidão foi,
essencialmente e na origem, uma causa de alguns homens brancos e os escravos
tinham plena consciência do que lhes deviam e da ajuda que junto deles podiam
encontrar. Foi por isso que, ao avistarem, em pleno Atlântico, um brigue de
guerra britânico, os africanos transportados num navio negreiro suplicaram, em
gritos lancinantes, auxílio ao abolicionista Wilberforce (“Mr. Wilberforce make
we free”); foi por isso que em Richmond, Virginia, já perto do final da Guerra
da Secessão, os escravos recém-libertados se ajoelharam à passagem do
presidente Lincoln (que lhes pediu que se erguessem). Estas pessoas que assim
se comportavam percebiam bem melhor do que vários académicos da actualidade
aquilo que fora feito, a que custo e por quem.
A importância do abolicionismo e a romântica ilusão de
que teriam sido as revoltas escravas a provocá-lo são temas aos quais dediquei
um livro, em 2006, livro esse que viria a ser publicado em
Nova Iorque e Oxford, em 2010, com novo título — Who Abolished
Slavery? — e muito enriquecido porque a ele se juntaram, sob a forma de debate, as contribuições,
os comentários, as críticas, de onze colegas historiadores da escravatura. Não
sei se Francisco Bethencourt conhece esse livro ou se, conhecendo-o, optou por
não considerar o que aí se discutiu e concluiu. Seja como for, convém lembrar
que a maioria dos intervenientes nesse debate — maioria na qual se incluem
historiadores da craveira de David B. Davis e de Seymour Drescher — concordou
com a minha tese central, isto é, que a abolição da escravidão não foi resultado da resistência dos escravos, mas
sim da emergência de um novo factor: o abolicionismo.
Em suma, neste seu mais recente artigo Francisco
Bethencourt desvia-se a tal ponto das questões que eu lhe coloquei que nos
deixa, no que à história da escravatura diz respeito, uma mão cheia de nada e
outra de coisa nenhuma. Nesse sentido faz-me lembrar o historiador
norte-americano Ira Berlin, que em 2015 escreveu um livro para refutar aquilo que eu
escrevi, mas na verdade não refutou um único dos meus argumentos. Passou-lhes
inteiramente ao lado, limitando-se a repetir fórmulas antigas e a contestar o
conteúdo do filme Lincoln, de
Steven Spielberg (que também não lhe agradou por Spielberg ter atribuído um
papel muito importante aos políticos brancos na abolição da escravidão nos
Estados Unidos). É uma maçada quando a ideologia se agiganta,
extravasa e condiciona o que devia ser o principal métier do historiador, isto é, a fria
análise de factos e argumentos. Historiador e romancista
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