Ainda há pouco era só o contacto
telefónico, que, aliás, não esmoreceu, permitindo bastos enredos, reais ou fictícios, mas hoje são frequentes horas inteiras
gastas sobre um instrumento que se envolve numa mão, dócil e maneirinho, a
outra servindo para traçar caracteres de mensagens, deslizando o dedo freneticamente, até
chegar ao local do nosso anseio. Mas não há dúvida que também obtemos
informações preciosas, através desse instrumento alienante, colmatando a nossa
ignorância, ou o nosso esquecimento cada vez mais frequente, sinto-o bem. Sim,
o livro é bem mais cansativo, os hábitos de leitura vão, talvez, esmorecendo,
mas continua a haver gostos para tudo, e o certo é que estas tecnologias de
ponta não deixam de criar um homem novo, mais vivo e sagaz até, pela forma como
manipula estes aparelhos, como a Internet, tão complicada e tão sedutora, que,
aliás, permite inúmeras leituras e ensinamentos. Mas é um texto bastante
expressivo este de Patrícia
Alves Fernandes, acerca deste nosso mundo de hoje, de manipulação e
desumanização.
Os novos parolos digitais
Ironicamente, nada mais somos que um
hamster preso numa roda, um rato que percorre quilómetros sem sair do lugar, na
ânsia de superar a imagem postada há segundos.
PATRÍCIA ALVES FERNANDES
OBSERVSADOR, 27
mar 2021
Uma
sala de espera que se preze tem sempre meia dúzia de revistas do ano passado,
uma Hola e um exemplar de capa dura das melhores paisagens do Tibete. Na
parede, sobrevive uma cópia murcha do Guernica que desafia teimosamente as maleitas dos
pacientes. Isto era uma sala de espera para quem realmente esperava.
Hoje,
só vejo um corredor de cabeças curvadas sobre uma janela que se segura entre
as mãos. Ninguém tem a ousadia de conversar, não se fazem considerações
sobre o tempo nem elogios ao bebé que nos sorri da cadeira em frente, mas
trocamos furiosamente trezentos caracteres com um desconhecido que está do
outro lado do Atlântico. Já não damos pela demora nem pulamos da cadeira quando
chamam o nosso nome. Causa-nos até um certo aborrecimento, porque têm a ousadia
de interromper o momento em que estávamos a participar no mundo com gostos e
bonequinhos coloridos, que expressam sentimentos e dão rosto às nossas emoções.
Somos
seres digitais, modernos e tecnologicamente emancipados. Temos orgulho no feed alinhado com o
melhor da nossa suposta vida, onde as escolhas são refinadas, as opiniões têm
superlativo valor, onde estamos sempre mais magros e mais altos, vivemos de
comida saudável e colorida, em casas imaculadas que realçam o nosso charme
mesmo em pijama e cara lavada de ontem. Ironicamente, nada mais somos que um hamster preso
numa roda, um rato que percorre quilómetros sem sair do lugar, na ânsia de
superar a imagem postada há segundos.
Vivemos
presunçosos numa linha trendy, boho-chic, onde uma lixeira pode ser
sinónimo de estilo dependendo do enquadramento. Mas não passamos de uns
parolos, uns pacóvios à mercê de um algoritmo, num plano desfigurado da
realidade. Uma rede de contactos alimentados a toques no ecrã,
que é mais vasta e mais vistosa do que os três amigos verdadeiros que nos ligam
no aniversário, porque se lembraram mesmo de nós e não precisam de alertas para
saberem quando estamos desamparados e sós.
Inevitavelmente estamos quase todos lá.
A assumir o nosso papel num paralelo fictício, mais fácil, frenético, no qual
recebemos como verdadeiro o que nos é oferecido, inevitavelmente mais propício
a exageros, uma vertigem alimentada por uma paleta de filtros impossíveis de
replicar. Subimos ao palco numa tela aos
quadradinhos onde as personagens sabem o seu lugar: o protagonista
influenciador, o interveniente por uma causa, o crítico descrente, voyeur mudo,
artista despretensioso, partidário do contra… o que quisermos ser, dependendo
do talento, do descaramento e da coragem de cada um.
Passamos horas no beiral desta janela portátil como vizinhas
curiosas. Debruçados sobre tudo sem absorver
quase nada. Atentos e cautelosos para não nos deixarmos cair. A minha avó dizia
que a cabeça é mais pesada que o corpo. Concordo com ela mais do que nunca,
porque se há tempo em que nos esvaziamos de matéria e nos poluímos com
informação inútil, esse tempo é este.
SOCIEDADE PANDEMIA SAÚDE TECNOLOGIA
COMENTÁRIOS:
Liberales Semper Erexitque: A palavra é alienação. Jorge Martins Silva: Infelizmente é a verdade.
Dantes, nas salas de espera dos consultórios, falava-se de doenças.
Agora quase todos consultam o telemóvel e os restantes, os mais idosos,
olham para o tecto. A conversa acabou.... Patricia Fernandes > Jorge Martins Silva: Obrigada pela sua opinião Jorge.
Muita saúde Henrique
Mota: Velhos do
Restelo. Sempre que o mundo avança aparecem para diminuir a importância das
novas formas. Sou insuspeito. Já passei dos setenta. Mas existe alguma
comparação com este novo processo de aceder à informação quando comparada com
um livro ou um jornal. Estáticos, datados. Aqui podemos interagir, perguntar,
comparar informação ao toque de um dedo. Que diferença. Patricia Fernandes > Henrique Mota: Obrigada pela sua atenção e observações. Muita
saúde Sr
Leão: Muito bom artigo.
Com poucas palavras traçou-se o
quadro da nossa miserável sujeição a... a quê? A quase nada, como diz a
articulista. E assim vai o mundo, despejando na cabeça das pessoas uma
avalanche de convicções que de verdadeiro não têm nada. Pois, não têm nada. Mas
ocupam imenso espaço, como o algodão doce das feiras. Patricia Fernandes
> Sr Leão: Obrigada pela opinião. Algodão doce das feiras...
Adorei a observação. Muita saúde
Miguel Caldeira: Infelizmente não é novidade. Já acontece há anos.
Ganha cada vez mais adeptos. É cada vez mais forte. Tem cada vez mais peso e
influências em todos os campos da sociedade, incluindo o da decisão política. A
minha noção de felicidade e solidariedade com o próximo não existe neste
contexto. Os valores humanos e sociais são outros. Bem hajam aos que ainda
conseguem ver "fora da caixa". Patricia Fernandes > Miguel Caldeira: Obrigada pela opinião Miguel.
Muita saúde André
Osório: It's a brave new
world... impessoal e ao mesmo tempo demasiadamente abusado na partilha da nossa
intimidade. Criamos caracteres para reflectir o nosso estado de espírito e
emoções de forma que o semblante real, impávido, desprovido de emoções, possa
ser interpretado na janela digital que referes. Fico feliz por ainda não ter
sido (completamente) contaminado e preferir o contacto pessoal. O defeito à
virtude maquilhada. No fundo as pessoas e não a sua projecção. É difícil manter
equilíbrio entre o uso indiscriminado, supérfluo, e o que realmente é útil e
necessário. Patricia
Fernandes > André Osório: Muito fundamentada a opinião. Muito obrigada. Saúde é
o que lhe desejo.
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