Um clássico:
[…] É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre que leva os campos, as casas, as vilas, as cidades, os castelos, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que ou não se padeça ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro: – o pai não tem seguro o filho; o rico não tem segura a fazenda; o pobre não tem seguro o seu suor; o nobre não tem segura a sua honra; o eclesiástico não tem segura a imunidade; o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro. […] (P. A. Vieira)
Ao menos, as suas, - de Vieira - são palavras abstractas – para nós,
não para ele, que tanto sentiu na pele batalhadora, tais violências, lançadas
ao vento do nosso prazer literário egoísta, que nada pode fazer contra o que
hoje se passa, arrepiantemente concretizado na distância, seja no Médio Oriente, seja em Cabo Delgado, seja por onde se materializam as discórdias do poder…
A Covid-19 tem escondido estes casos,
mas não deixamos de neles pensar, na aflição da fome, do frio e do desconforto
de que as crianças são vítimas precoces. Arrepiante. Agradeçamos a quem relembra
a “Guerra na Síria”. Neste caso, a Pedro
Bastos Reis.
Guerra na Síria. Dez anos de um país devastado /premium
Uma década de violência deixou um
rasto de 500 mil mortos e mais de 12 milhões de refugiados. Assad consolidou o
poder, mas a paz e a estabilidade ainda são uma miragem.
OBSERVADOR, 15 mar
2021
15 de março de 2011.
Milhares
de pessoas saíam às ruas de várias cidades sírias, incluindo a capital, Damasco, para protestar contra as desigualdades sociais e
contra a corrupção e exigir democracia. Esse
sonho de revolução, porém, acabou esmagado pela repressão do regime autoritário
de Bashar al-Assad e pelos anos seguintes de uma sangrenta guerra civil, com o
país transformando num tabuleiro de interesses geopolíticos.
Inspirados
pelos ventos de mudança que a Primavera
Árabe prometia noutros países do Médio Oriente e do Norte
África, como a Tunísia, o Egito ou o Iémen, os sírios começaram a contestação
ao regime em Deera, no sul do país,
quando jovens grafitaram paredes de uma escola com mensagens a exigir a saída
do ditador do poder.
A
contestação esbarrou na intransigência das autoridades, mas os protestos
pacíficos foram crescendo e alastrando a todo o país, até ganharem projeção
nacional e serem violentamente reprimidos, com manifestantes mortos a tiro
e detenções em massa, duas semanas depois, a 15 de março de 2011,
a data em que começou a guerra civil da Síria que já causou mais de 500 mil mortos e
milhões de refugiados.
Dez anos depois do início dos protestos contra Assad, a Síria, nas
palavras do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, “continua a
ser um pesadelo vivo”, sem solução à vista, num país partido
despedaçado onde se jogam as ambições geopolíticas de vários países, da Turquia
ao Irão, dos Estados Unidos à Rússia.
Ao longo de dez anos de uma sangrenta guerra civil, segundo os números das Nações Unidas, mais de 12
milhões de sírios — cerca de metade da população do país — fugiram das suas
casas. Metade (5,6 milhões de pessoas)
refugiou-se principalmente em países vizinhos como a Turquia, o Líbano ou a
Jordânia, mas também na Europa. Os restantes 6,6 milhões de sírios são
deslocados internos, e muitos vivem em campos de refugiados erigidos para
abrigar aqueles que fugiram da violência.
Pandemia agravou crise humanitária
Particularmente difícil e dura tem sido a vida das crianças sírias. Em todo
o país, segundo um relatório publicado esta semana pela Unicef, existem mais
de seis milhões de crianças a precisar de ajuda
humanitária para sobreviver, sendo que muitas delas nasceram em
contexto de guerra.
“É
uma situação muito crítica. Mas os sírios são muito resilientes. Para nós, é
quase impossível imaginar como é a vida das crianças que nascem nestas
condições, que não conhecem outra realidade”, conta ao Observador Chenery
Lim, coordenadora dos Médicos Sem Fronteiras (MSF) no noroeste da Síria, realçando que 80% dos
deslocados internos são mulheres e crianças.
No
noroeste da Síria, para onde fugiram milhares de sírios e onde os confrontos
ainda persistem, apesar do cessar-fogo, a situação é
particularmente complexa, com campos de refugiados sobrelotados e dificuldades
no acessos a bens essenciais, como água ou comida. As cheias dos
últimos meses tornaram tudo ainda mais difícil, destruindo as tendas de
milhares de pessoas e condicionando a chegada de apoio humanitário.
Além do tratamento de doentes, a MSF, que actua em várias zonas da
Síria — apesar de ainda não ter tido luz verde para aceder às zonas controladas
pelo regime de Assad — presta também auxílio aos refugiados que vivem nos
campos através da distribuição de água, comida, produtos de higiene e outros
bens essenciais que escasseiam, e cujas dificuldades se exacerbaram com a
pandemia de Covid-19.
“Os campos estão sobrelotados, sem
possibilidades para isolamento ou quarentena. O acesso a água para lavar as
mãos é muito condicionado. A pandemia tornou ainda mais difícil a vida das
pessoas”, lamenta Chenery Lim, acrescentando que, apesar de a MSF ter
instalações onde os sírios podem cumprir quarentena, muitos não o querem fazer,
devido à crise económica.
“Muitas pessoas não querem vir para as nossas
instalações, porque não querem passar lá 14 dias por medo de perderem o emprego
e ficarem sem condições para levar comida para a mesa”, afirma a coordenadora
médica da MSF no noroeste da Síria.
"A
Síria perdeu completamente a sua soberania económica e política e depende
principalmente do apoio externo. Tudo isto significa que o regime está a
colapsar economicamente" Zaki Mehchy, analista do think tank
Chatham house
A
falta de acesso a comida é um problema que se tem vindo a agravar em todo o
território sírio e só no último ano o número de pessoas a passar fome no país
aumentou em 4,5 milhões — de acordo
com um relatório publicado pelo Programa Alimentar Mundial no
passado mês de Fevereiro, são agora 12.4
milhões de sírios (cerca de 60% da população) que sofrem de insegurança
alimentar.
“Precisamos
garantir que as pessoas não esquecem a Síria. Os conflitos ainda estão lá e os
sírios dependem de ajuda humanitária, porque não têm um governo que lute pelos
seus direitos e pelas suas necessidades. Estamos a falar de vidas humanas e de
dignidade”, desabafa Chenery Lim.
Um país partido em quatro
Durante
estes dez anos, a guerra civil síria já passou por várias fases, num tabuleiro
geopolítico em constante transformação. Após a violenta repressão de Assad
contra o seu povo, inclusive com recurso a armas químicas, a
Síria viu nascer, em 2014, o Daesh,
um grupo jihadista que aproveitou o vazio de poder para impor um califado que se estendeu até ao vizinho Iraque, e que chegou a controlar um território superior ao
tamanho do Reino Unido.
A Rússia e o Irão entraram em cena para apoiar o regime
de Assad e para combater o Daesh,
enquanto os Estados Unidos,
que, juntamente com a Turquia, já tinham ajudado a armar grupos rebeldes, contaram com o apoio de Reino Unido e França para
bombardear as posições controladas pelos jihadistas, contando ainda com a
preciosa ajuda das milícias curdas.
Em comum com o Ocidente, Assad
e os seus aliados tinham o Daesh como inimigo, e o ditador, cuja
permanência no poder nos primeiros anos de guerra parecia datada, conseguiu
consolidar a sua posição com a derrota dos
jihadistas em 2019, contando, sobretudo, com a ajuda dos
bombardeamentos russos que, pelo caminho, destruíram hospitais e infraestruturas
por todo o país, matando um número indeterminado de civis.
Actualmente,
explica ao Observador a analista Dareen Khalifa , a Síria está dividida em quatro zonas de influência: a do regime de Assad, que governa mais
de 60% do território, incluindo
as grandes cidades (como Damasco); o
nordeste, controlada pelas forças curdas apoiadas pelos Estados Unidos; uma zona a oeste de Alepo, perto da
fronteira turca, sob controlo de rebeldes apoiados pela Turquia; e o noroeste, dominado pelos rebeldes
islamistas do Hayet Tahrir al Sham, o ex-braço da Al-Qaeda na Síria.
“Há
um cessar-fogo em todo o país desde março do ano passado, quando a Turquia
interveio militarmente para impedir uma ofensiva apoiada pela Rússia em Idlib, no
noroeste da Síria. No entanto, o status quo é muito frágil e os
cessar-fogo são violados diariamente por quase todas as partes”, sublinha a analista da organização não-governamental
(ONG) International Crisis Group.
Nesse
sentido, Dareen Khalifa considera que “existe um risco real de um novo
conflito no norte da Síria”, particularmente em Idlib, uma das zonas mais
críticas da guerra síria neste momento. “A Rússia deixou claro que
o cessar-fogo em Idlib é temporário e
pode não abdicar do seu desejo de restabelecer, a qualquer custo, o controlo de
Assad sobre cada centímetro do país”, alerta.
Em
relação ao nordeste, onde existe enorme tensão entre as milícias curdas e a
Turquia, Khalifa admite que, “mesmo com a presença dos Estados
Unidos, Ancara pode decidir lançar uma nova ofensiva para preservar o que
considera a sua segurança nacional na região”, abrindo a porta ao agudizar do
conflito entre curdos e turcos.
Regime a “colapsar economicamente”
Nas
áreas controladas pelo regime, o principal desafio de Bashar al-Assad é manter
a lealdade dos seus apoiantes locais. Contudo, sublinha o analista Zaki Mehchy, o
poder de Assad não está totalmente cimentado, uma vez que o Presidente sírio
depende dos “senhores da guerra e das forças militares e de segurança que são
os líderes de facto” nessas áreas, assim como do apoio da Rússia e do Irão, que
assumiram, por si próprios, o controlo de vastos territórios.
“O
principal problema para Assad é vir a perder o controlo que tem sobre os seus
apoiantes, enquanto não tem qualquer influência sobre os seus aliados externos”, afirma ao Observador o analista do think
tank Chatham House.
Sufocado
pelas sanções impostas pelos Estados Unidos e pelo bloqueio de fundos que
permitam reconstruir uma Síria devastada por dez anos de guerra, Assad está
muito limitado e depende da ajuda externa dos seus aliados para se manter no
poder. A profunda crise económica, que se agrava a cada dia que passa, aumenta
a instabilidade do regime.
“O
país perdeu completamente a sua soberania económica e política e depende
principalmente do apoio externo. Tudo isto significa que o regime está a
colapsar economicamente. A questão é saber quando e como é que o colapso
económico pode levar ao colapso das principais instituições do regime”,
salienta o analista Zaki Mehchy.
À
desvalorização da libra síria acresce a também profunda crise económica no vizinho Líbano,
país que era usado por empresários sírios com dinheiro que queriam fugir às
sanções ocidentais. Com o impacto da pandemia de Covid-19, não é expectável que
a situação melhore no país em breve e, com isso, virá a inevitável perda de apoio.
“Devido
à pobreza, a falta de oportunidades de trabalho e aos pobres serviços públicos,
Assad está a
perder legitimidade entre as comunidades que o sempre o apoiaram fortemente
desde o início do conflito”, acrescenta Mechy, que, no entanto, não antevê
grandes protestos que tentem derrubar o regime nesta fase.
“Acho
que o povo sírio vive num estado de frustração e o seu foco principal é
alimentar os seus filhos. Além disso, falta uma alternativa política que
consiga motivar as pessoas novamente”, diz Zaki Mehchy. “Protestos para mudar
pacificamente não vão acontecer. Mas manifestações violentas a exigir comida e
melhores condições de vida são mais prováveis.”
Assad acusado de crimes contra a
humanidade
Enquanto
as sanções ocidentais, nas palavras da analista Dareen Khalifa, vão “empurrando
a economia síria para um buraco profundo, ampliando a miséria dos sírios
comuns”, activistas no exílio e organizações não-governamentais (ONG) procuram
justiça para as atrocidades cometidas pelo regime de Bashar al-Assad.
No
início de Março, um consórcio de três organizações ONG apresentou
queixa, em Paris, contra Assad, acusando o Presidente da Síria de
cometer crimes de guerra, nomeadamente o uso de armas químicas, em 2013 (Duma e Ghouta Oriental) e em 2017 (Khan Sheikhoun), ataques
que causaram a morte de centenas de civis.
Em
Outubro do ano passado, as mesmas três organizações — Syrian Archive, Syrian
Center for Media and Freedom of Expression e Open Society Justice Initiative —
apresentaram uma queixa semelhante na Alemanha. O objectivo é responsabilizar
os responsáveis pelas atrocidades da guerra.
“São
passos importantes para alcançarmos justiça e responsabilização. A nossa
esperança que ambos os países [Alemanha e França] aceitem os casos e que os
dois governos trabalhem em conjunto nas investigações, para reunirem mais
facilmente provas robustas contra os principais responsáveis [pelos ataques
químicos]”, explica ao Observador Artino van Damas, coordenador de comunicação
e divulgação do Syrian Archive, um projeto da ONG Mnemonic, com
sede em Berlim.
“Sem
responsabilização, existe certamente o risco de ataques a hospitais e
instalações médicas no futuro”, alerta van Damas, considerando que estes
casos apresentados em França e na Alemanha, baseados em testemunhos e provas
documentais, são uma “oportunidade” para trazer justiça aos sírios que,
dez anos depois do início da guerra, continuam sem esperança à vista.
SÍRIA MÉDIO ORIENTE MUNDO CONFLITO NA SÍRIA PRIMAVERA ÁRABE
COMENTÁRIOS:
Francisco
Tavares de Almeida
Para
ler isto não valia a pena assinar o Observador. Sem a menor alusão - nem digo
explicação - sobre as diferenças religiosas, como se a Síria fosse uma nação,
sem a menor alusão ao que despoletou o conflito (já focado por comentadores que
me antecederam) tocando pela rama a questão curda e turca e sobretudo, a
ausência de alternativa a Assad (não há oposição, há oposições que não se
entendem e já provaram ser tão ou mais bárbaras do que ele) branqueando a
responsabilidade americana na formação e armamento do Daesh. Fica a notícia
da crise económica mas falta explicar que se Assad não tiver dinheiro para
pagar aos militares (muitos são opositores comprados) a minoria alauita a
que pertence Assad poderá sofrer um genocídio e a minoria cristã que o tem
apoiado terá o destino dos cristãos do Iraque. E "the last but not the
least" a Síria será uma nova Líbia. bento guerra: Agradeçam ao Obama I e não contem com reparação do
Obama III. E o Assad lá permanece Antes pelo contrário: O conflito na Síria é muito mais complexo do que isso e
tem raízes muitíssimo mais profundas e antigas! Porém a sua causa mais próxima,
como aliás a de todos os conflitos ocorridos desde 2009 no mundo árabe, foi Hillary
Clinton. PortugueseMan: Assad ganhou. Assad com os seus aliados, principalmente
a Rússia, acabaram por vencer o conflito. Mas como os russos não podem tirar de
lá os americanos e estes não podem tirar de lá os russos, estamos num impasse. Impasse
esse que é sempre pago pelos desgraçados que lá vivem. Seja na Síria, seja no
Afeganistão, seja na Líbia, seja no Yemen. A chave
para a paz da Síria? A saída dos EUA de cena.
Pode não ser o desfecho que muitos queriam, mas vão ficar melhor do que estão
agora. A chave para isto? Conseguirem tirar os americanos do Iraque, que neste
momento já são considerados uma força ocupante, com uma resistência crescente. Os
americanos só se conseguem manter na Síria, pelas bases de suporte no Iraque. Vem
aí ainda muitos anos de mais desgraça é só o que posso concluir. Francisco Tavares de Almeida > PortugueseMan: Já
nos encontrámos antes do Nord Stream 2 e, tal como agora, não me surpreende o
anti-americanismo mas surpreende-me o apoio reiterado, aqui pelo silêncio, à
Rússia de Putin. É que a Rússia, imperialista desde sempre ao longo da história,
ameaçadora para a Europa pela sua dimensão, é hoje governada por gangsters. Não
é flor que se cheire.
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