… citemos o seu poema que serviu
simultaneamente de retrato de Amália e do povo
do regime salazarista, de que trata Paulo
Tunhas, no seu artigo, que
mereceria muitas respostas inflamadas, naturalmente. Fiquemos, pois, com O’Neill, com Paulo Tunhas e com Amália, cuja voz soará
herculeamente, como nenhuma outra, guardiã deste país…
MINUCIOSA
FORMIGA
Minuciosa
formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.
Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.
Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.
Assim devera eu ser
se não fora não querer.
“Portugal?
Salazar? Que horror!” /premium
Alexandre
O’Neill não tinha, como é óbvio, qualquer simpatia pelo regime
de Salazar, mas sabia em toda a sua extensão o abismo que o separava de um
regime totalitário como o soviético.
PAULO TUNHAS OBSERVADOR, 25 mar 2021
A
história foi-me contada há muito tempo. Suponho que na segunda metade dos anos
sessenta, Alexandre O’Neill, regressando de um congresso de escritores algures
na Europa, e de passagem por Paris, jantou com um grupo de portugueses amigos
ou conhecidos. E relatou uma curta troca de palavras com um outro escritor
também presente no congresso. Este perguntou-lhe pela nacionalidade e O’Neill
disse-lhe que era português. O outro resolveu exprimir-se: “Portugal? Salazar?
Que horror!”. Foi a vez de O’Neill lhe fazer a mesma pergunta. Era russo. E
O’Neill: “Rússia? Estaline? Que horror!”.
Sempre
gostei muito desta história. O’Neill não tinha, como é óbvio, qualquer simpatia
pelo regime de Salazar, e, de resto, se há poesia que descreve as mil e uma
formas de menorização e subserviência que o salazarismo instaurou é mesmo a
sua. Do “medo perfilado” ao “modo funcionário de viver”, passando pela “pequena
dor à portuguesa / tão mansa quase vegetal”, a “feira cabisbaixa” e o
“Fazmòbséquio” dirigido ao funcionário que “destrabalha” no outro lado do
guichê, está quase tudo lá, embora sem nenhuma cedência ao folclore da banda
oposta, ou, como ele uma vez disse, da banda da barricada que se entrega ao
“pequeno-almoço auroral” da boa consciência. O’Neill não tinha, portanto,
qualquer gosto pelo salazarismo. Mas sabia em toda a sua extensão o abismo que
o separava de um regime totalitário como o soviético. E a resposta dele recolhe
a sua maravilhosa e surpreendente eficácia da rigorosa simetria formal dar a
ver uma colossal assimetria substantiva, numa perfeita economia de palavras que
vale por mil laboriosas explicações. O óbvio, por assim dizer, surge óbvio, sem
dar lugar a possíveis argumentos encobridores, que é o que mais há por aí, e
hoje não menos do que no tempo dele.
De
facto, há algo de quase semelhante ao koan zen na resposta de
O’Neill. Como se sabe, os mestres zen respondiam aos discípulos com frases
enigmáticas. É verdade que (com intuitos pedagógicos) também lhes berravam
ou davam pauladas, mas estes processos não se recomendam hoje e tornariam a
vida universitária de um mestre zen um pesadelo no qual o melhor é nem
pensar. Um koan, pelo contrário, é admissível. Ele visa, através da
tal resposta enigmática, despertar aquilo que os sábios chamam a Grande Dúvida,
primeiro passo para a descoberta de princípios da realidade para lá das
opiniões privadas, uma iluminação súbita ou gradual (aqui as escolas divergem)
que nos permite perceber o mundo fenomenal do ponto de vista desperto e não
adormecido pelo barulho do mundo.
Porque
o mundo é barulhento. Tão
barulhento que – li no outro dia num artigo do Wall
Street Journal – os próprios astrónomos têm dificuldade em capturar os
sinais vindos do espaço porque o ruído dos sistemas de comunicação humanos
(satélites de TV e companhias telefónicas) congestionam o espectro das bandas
sonoras, algo que não acontecia no século passado. Como alguém disse, “é
como tentar escutar uma pessoa que murmura algo enquanto todos os outros nos
berram ao ouvido”. Uma descarga electrónica defeituosa de um urinol ou
um aparelho de micro-ondas que produz um ruído agudo quando aberto podem, num
observatório radioastronómico, afectar fortemente a observação de um pulsar. A
ideia de que a descarga de um urinol pode abafar um venerando vestígio da
implosão de uma supernova dá que pensar.
Agora,
se passarmos do mundo físico para o das opiniões, o barulho ainda é maior. Basta ver tudo o que circula por aí, com a
vergonhosa ajuda de alguns responsáveis políticos e da infame incompetência de
Ursula von der Leyen (desgraçadamente imune às avarias dos micro-ondas, que
neste caso muito jeito nos dariam), sobre a vacina da AstraZeneca. O ruído e
a desinformação não se medem. De facto, a União Europeia comporta-se um pouco
como o tipo que deixa cair no soalho algumas espessas gotas de tinta preta e
que, tentando apagar a mancha, consegue apenas fazer com que ela alastre em
todas as direcções: acaba, a bem da uniformidade, decidindo pintar todo o
soalho de preto. Está quase a conseguir, jogando forte no velho
sentimento anti-inglês, revisto e aumentado pelo Brexit. O efeito é
desastroso, como se pode ver no caso da atitude face à vacina da AstraZeneca,
esquizofrenicamente requerida como urgente e condenada como, além de ineficaz,
letal. Já não há nenhum pequeno idiota no nosso cantinho da União
Europeia (às vezes dá vontade de intercalar um “r” entre o “i” e o “a”) que não
jure que a malfadada vacina jamais lhe entrará na pele e que preferiria morrer
à fome e à sede, coberto de piolhos e de percevejos, ao som das obras completas
do Padre Fanhais, do que ser envenenado a mando de uma sinistra farmacêutica
inglesa. Multipliquem-se todas as opiniões nesta matéria por mil milhões e
ter-se-á uma muito ténue imagem do barulho opinativo – da célebre racialização
dos sujeitos ao aquecimento global – que nos rodeia. Só um mestre zen nos pode
salvar.
Por
esta e por outras, a técnica de Alexandre O’Neill parece-me, mais do que nunca,
recomendável. Apenas mais um exemplo, acompanhado de uma sugestão. Ainda
no Wall Street Journal, um outro artigo, da autoria de Gerard Baker, dava-nos conta de uma
reunião entre os membros de um grupo de responsáveis pela política externa do
Presidente Biden e alguns representantes da liderança chinesa. Yang Jiechi, o líder do departamento de negócios
estrangeiros do Partido Comunista chinês, deu uma lição sobre direitos humanos
ao Secretário de Estado americano Anthony Blinken, mencionando as
extraordinárias deficiências dos Estados Unidos no capítulo, nomeadamente no
respeitante ao tratamento das minorias e à intrínseca iniquidade da sociedade
americana.
Claro
que Blinken, sabedor que todas essas graves acusações faziam parte da
plataforma eleitoral do Partido Democrático para as eleições presidenciais, e
sabedor que Yang Jiechi igualmente o sabia, se encontrou numa posição difícil e
apenas pôde balbuciar confusamente que pelo menos nos Estados Unidos esses
problemas eram abertamente discutidos. Foi a única essencial diferença que
encontrou entre o seu país e a China. Convenhamos que sabe ridiculamente a
pouco. Mas, por um instante, imaginemos que Blinken não estava preso à corrente
ideologia da vitimização que a plataforma eleitoral democrática encarnava do
princípio ao fim. Que responderia ele a este “América? George Floyd? Que
horror!”? Pura e simplesmente: “China? Tiananmen? Que horror!”. O outro, sendo
chinês e conhecendo de certeza as escolas zen do seu país, perceberia
perfeitamente o abismo sobre o qual, diferentemente da Cidade na Colina,
repousa a Praça da Paz Celestial. Às vezes a iluminação, mesmo a imediata, é
tão fácil…
Por
mim, juraria tranquilamente limitar-me doravante, inclusive nesta coluna, a
instilar, através do método acima descrito, a Grande Dúvida conducente à
iluminação, súbita ou gradual. Seria, de resto, obviamente, uma tarefa à
minha medida. Mas a verdade é que não tenho feitio para mestre, além de que
poderia cair na tentação do berro ou da paulada (verbal), coisa que, como antes
mencionei, convém nos dias que passam mais do que nunca evitar. Para mais, por
estes tempos mergulhado na via mística de Chuang-Tzu, prefiro pensar que todas
as coisas são uma só e não agir, deixando a natureza seguir o seu curso. É o
que manda o Tao.
CRÓNICA OBSERVADOR LIBERDADES SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Luis Teixeira-Pinto: O curioso da "confrontação" entre Anthony Blinken e os diplomatas chineses, foi que ele só mostrou agressividade enquanto tinha as câmaras de TV presentes. Aí, para mostrar serviço, até pediu para uma "tréplica" à posição dos chineses, solicitando que as câmaras não se fossem embora. A reunião continuou depois, à porta fechada, e em tom obviamente mais cordato e conciliador. Nota - coitado do Prof. Salazar, que passados mais de 50 anos depois de ter falecido, ainda serve como argumento de conversa ou de tema para um artigo. E sempre pelas mesmas razões, o cuidado que ele supostamente deveria ter tido (e não teve) pelos que, à luz de uma liberdade que pregavam mas não praticavam, se opunham sistematicamente a todos os esforços de recuperar e levantar um País que se encontrava em situação dificílima, depois dos últimos anos de Monarquia constantemente minados pela maçonaria e pelos republicanos, e de 16 anos de república desbragada e de bancarrota. O tremendo esforço de modernidade que o País experimentou não foi feito por Salazar, mas pelos Portugueses, de cabeça baixa e sempre a resmungar, mas fizeram-no, mostrando do que são capazes, se bem mandados. Se a abertura é grande o resultado está à vista. Em 45 anos de democracia só não fomos ultrapassados pela Bulgária. No fim do mês é isso que conta e não os arrufos de liberdade de uns quantos. Paulo C Castro > Luis Teixeira-Pinto : Neste último ano até os meus vizinhos romenos foram embora. Dizem que Portugal já não dá lucro. Já os alunos búlgaros da escola ainda continuam por lá, por enquanto... António Sennfelt: Excelente, como sempre! Mas, já agora, e muito especialmente destinado à Dona Rato do alegado "museu da resistência", acrescentaria: "URSS? Stalin e Gulag? Que Horror!" Antonio Monge: Muito bom texto que me teria passado ao lado! Eu próprio tenho, com menor eloquência, dito algo parecido. É confrangedor assistir ao "E o vencedor é" actualmente, grassa por ali muita confusão, doutrina, mistificação e maria-vai-com-as-outras. (Veja-se a Judite França nessa rubrica da Rádio Observador a replicar a crónica da Maria João no Público. Sim, Público.) Mario Areias: Texto lúcido. Muito obrigado João Vaz: O Estado Novo era de tal maneira totalitário que, depois da guerra, quando se discutia o tipo de sistema a impor na Alemanha vencida, George Kennan (diplomata norte-americano que haveria de ser embaixador na URSS) sugeriu um modelo semelhante ao português. Mas, claro, era o imperialismo norte-americano a querer substituir um totalitarismo por outro. Porque, como se sabe, na URSS é que se gozava de amplas liberdades democráticas, posteriormente aplicadas a esse outro farol da liberdade que foi a RDA. Karl Froiz > João Vaz : Sim a RDA foi um modelo de direitos, liberdades e garantias. O Muro garantiu que não seria contaminada pelos irredutíveis Berlinenses Ocidentais com as suas manias democráticas, habituadas a poder escolher entre prateleiras cheias. João Vaz > Karl Froiz: Não só a RDA. Só falei desse caso, mas poderíamos acrescentar a Bulgária, Roménia, Albânia...esses prósperos países onde a abundância era geral e o povo vivia feliz, sob a batuta do Génio dos Cárpatos, do grande Enver Hoxha (referência maior do Major Tomé nos anos 80) e de outros da mesma estirpe. Felizmente em Portugal há quem lhe venere a memória e queira para nós a mesma fartura que havia nesses territórios. Rui Teixeira: Só um tapadinho ou um zarolho ideológico é que não vê a excelência e elegância intelectual deste texto do Paulo T. Karl Froiz > José Ribeiro: José Ribeiro se calhar o Zé Maria estava à espera duma nota de pesar pelos morte dos autores destas obras humanitárias: Stéphane Courtois, declara que "…os regimes comunistas tornaram o crime em massa uma forma de governo". Usando estimativas não oficiais, apresenta um total de mortes que chega aos 94 milhões. A estimativa do número de mortes alegado por Courtois é a seguinte: 20 milhões na União Soviética: 65 milhões na República Popular da China; 1 milhão no Vietname; 2 milhões na Coreia do Norte; 2 milhões no Camboja; 1 milhão nos Estados Comunistas do Leste Europeu; 150 mil na América Latina; 1,7 milhões na Áfricam; 1,5 milhões no Afeganistão 10 000 mortes "resultantes das acções do movimento internacional comunista e de partidos comunistas fora do poder" Henrique Goivão > Tristeza Pakivai: «Bonzinho» é o que se diz de um cão meigo, e não de regimes ou períodos históricos. À parte isso, é preciso contextualizar os regimes na sua época e, de facto, na era dos totalitarismos sanguinários, o que Portugal teve foi uma ditadura do tipo conservador e tradicionalista, nascida de um «pronunciamento», e não um hitlerismo ou um estalinismo. Não há comparação possível com os aspectos definidores destes últimos regimes. Carlos Quartel. Muito bom texto, como habitualmente. O salazarismo tem muito mais a ver com um paternalismo paroquial do que com um projecto radical, imposto a ferro e fogo, como o comunismo ou o nazismo. Salazar não queria salvar o mundo, nem criar super Viriatos, o seu ideal era um quintalinho com couves e galinhas, para todos. A tacanhez foi o seu defeito, a mesquinhez dos seus objectivos a sua limitação. Uma política africana de teimosia, uma política externa sem visão para saber da necessidade de abrir o regime, logo após o fim da guerra.. Em 45 ou 46 teria ganho umas eleições livres e conquistado respeitabilidade internacional para negociar uma solução para África. Um cepo, um matacão, isso sim, não um Estaline ou um Hitler.... Fernando Pité > Carlos Quartel: Nem Salazar nem a Inglaterra pretendiam descolonizar. Foi o "forcing" dos USA, que promeiro abriram as colÓ3nias inglesas ao comércio americano e, segundo, foram os Americanos que deram o "pontapé de saída" no caminho da descolonização, começando pela Inglaterra... O que estava na lógica politica da época, aparte os Países já independentes de Portugal e Inglaterra, era conservar as colónias como partes integrantes dos Impérios...
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