segunda-feira, 15 de março de 2021

Um texto contido


Na expressão da amizade, na expressão da saudade, salientes no humor com que evoca um episódio com o seu grotesco, ante a impassibilidade, um tanto inconsciente, desse homem estimado, menino mimado, caprichoso e sempre adulado, que foi Mário Soares, pronto a enfrentar situações, de humilhação que fossem, sabendo que tudo se resolveria a seu contento, e tudo relativizando. Uma aventura incómoda, num sítio que nos habituáramos a imaginar de tenebroso, mas que se tornou numa aventura aliciante, pela evocação do comportamento impassível de um homem que muito falou, e de quem muito se falou, espécie de ídolo, pelo que representou por cá. Um riso entre dentes, de Pacheco Pereira, em que se prevê o riso da caricatura, ultrapassado pelo sorriso da ternura.

OPINIÃO

Para não falarmos sempre das mesmas coisas: com Mário Soares em Moscovo diante da Lubianka

Como devem imaginar, foi uma grande viagem. Tudo à nossa volta estava a acabar, a URSS já tinha morrido e a Federação Russa estava a tentar segurar o império a ferro e fogo.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO; 13 de Março de 2021,

FOTO: Sede do KGB

Não sou muito de penar pelos mortos, nem tenho aquela obsessão pela morte que se transforma numa saudade mórbida da memória dos que morreram. Acontece. Pode-se sempre filosoficamente dizer que o facto de toda a gente ter morrido até agora não garante que os vivos de hoje vão morrer. Pode-se sempre ler Hume e esperar que o princípio da indução alimente o erro de pensar que lá por uma coisa ter sempre acontecido vai acontecer. Mas, como entretanto tem acontecido, lá vão morrendo pessoas. Dessas pessoas, uma das de quem tenho saudades, pelas suas enormes qualidades e pelos seus enormes defeitos, é Mário Soares.

Nessa memória viva, contam várias histórias, uma das quais poucas pessoas testemunharam e nalguns acasos apenas eu. Tratou-se de uma viagem a convite russo que nos foi feito, a mim, Mário Soares e Vítor Alves, para participarmos num debate em Moscovo a propósito do 25 de Abril, já Soares não era presidente. E lá fomos, para chegar ao aeroporto principal de Moscovo e ficarmos retidos na fronteira. Eu fui o primeiro a ser preso e levado para uma sala onde estavam uns somalis com ar infeliz. Passado um bocado, chega Mário Soares, a quem perguntei: “Então vem-me buscar?” ao que ele respondeu: “Não, também fui preso.” Vítor Alves tinha passado sem problemas e o embaixador Nunes Barata que estava do lado de lá da fronteira não percebia muito bem o que se estava a passar. Soares lá se sentou na sala, juntamente com os somalis, com uma guarda da fronteira que era, até há pouco tempo, uma das funções de unidades especiais do KGB. Soares dizia: “Só me aborrece porque fiquei sem o passaporte e o bilhete.” De resto, achava graça à situação. Eu tentei explicar num pseudo-russo gutural à guarda que se tratava de um antigo presidente de Portugal, ao que ela deve ter pensado que eu era Napoleão. Passado para aí meia hora, libertaram-nos e deram-nos os documentos sem qualquer explicação. Parece ter sido um erro no visto passado em Lisboa. E lá fomos ter com um muito preocupado embaixador e com o militar de Abril, que, enquanto Soares falava e falava, ele permanecia quase mudo.

Começou pois auspiciosamente a viagem. Mário Soares estava feliz da vida, sem as obrigações de presidente, queria ver à vontade Moscovo que nunca visitara como ele gostava, sem protocolo. Tinha lá ido a primeira vez antes do 25 de Abril, num convite intermediado por Cunhal, ficou no Hotel Ukraina, o “bolo de noiva”, e detestou o que viu. Agora queria ver, acima de tudo, a Moscovo da “revolução”, os sítios icónicos como a Praça Vermelha, o túmulo de Lenine, o Museu da Revolução, a sede do KGB na sinistra Lubianka, as ruas e as russas. Com alguma fúria não conseguiu ir ao mausoléu de Lenine, porque estava lá uma delegação vietnamita. E entre as fotografias dessa viagem, há uma ou duas diante da sede do KGB, que tinha mudado de nome nesses dias, mais ou menos de irónico punho erguido, com Vítor Alves alheado como de costume sem perceber a coreografia.

Chegados ao colóquio na biblioteca estatal, a sala onde estávamos estava coberta de livros alemães, com anuários de regimentos prussianos, histórias militares, com alto grau de especialização, em edições muito raras. Vim depois a saber que faziam parte do saque russo na Segunda Guerra na Alemanha nazi e estavam na lista dos valores em negociação para serem devolvidos à procedência. A sala era por isso propícia e o debate ainda mais. Soares dizia sim e eu dizia não. Soares descrevia as reuniões do Governo americano com George W. Bush bêbado no chão. Dizia que a guerra do Golfo resultava da crença de Bush numa história mítica sobre a queda de Jerusalém, que atribuía a um teólogo marroquino. Por aí adiante, a tal ponto que uma das intérpretes me veio perguntar se ele tinha mesmo chamado “bêbado” ao Presidente americano. Tinha.

Os jornalistas russos começaram a explorar o “eu dizia sim e ele não”, ou vice-versa, e fomos convidados para várias entrevistas e debates na rádio e um na televisão. Fomos, no entanto, prevenidos de que não se podia falar na Tchechénia, que proclamara a sua independência, e onde os russos se enterraram militarmente, ao que respondemos sim, sim, sim e falámos, como é óbvio. Mas as contradições continuaram: “Deve a Rússia entrar para a Organização Mundial de Comércio?” Soares: “Nem pensar.” Eu: “Não vejo porque não deva.” E por aí adiante…

Como devem imaginar foi uma grande viagem, com longas noites na embaixada de Portugal, onde estávamos alojados, num grande edifício quase vazio, com a hospitalidade do embaixador e o grande conversador em plenas funções, numa época em que a arte de conversar já estava em extinção. Soares, que nunca foi dado a “estados de alma”, estava notoriamente feliz.

Tudo à nossa volta estava a acabar, a URSS já tinha morrido, a Federação Russa estava a tentar segurar o império a ferro e fogo, Putin em ascensão e um certo sentido de perplexidade que acompanha a história quando ela se acelera. Ieltsin adulto era muito mais bêbado do que Bush jovem. Estes tempos não se repetem, como, aliás, nenhum dos tempos.

Historiador

TÓPICOS

RÚSSIA  OPINIÃO  MÁRIO SOARES  25 DE ABRIL  GEORGE W. BUSH

COMENTÁRIOS:

rafael.guerra  EXPERIENTE: "Tratou-se de uma viagem a convite russo que nos foi feito, a mim, Mário Soares e Vítor Alves..."?! O caro autor não corrigiu a desordem russa, não respeitando a importância dos personagens nem as regras de boa educação. No melhor pano cai a nódoa...             José Berrucho  INICIANTE: Delicioso texto!    julio amado  INICIANTE: Vai sendo raro ler bons textos nos jornais. Pacheco Pereira está noutro nível intelectual. Quem não gostar ponha à borda do prato.          cedcerqueira  INICIANTE: Excelente texto, mas faltou um punchline mais forte para ser uma boa história.           GMA  EXPERIENTE: A História contado por um Historiador como quem conta estórias, muito bem contadas. "Venham mais cinco..." rtrindade  INICIANTE: As histórias dentro da história também são história. E entretêm. Obrigado JPP.   afpcarlospires.1044923 INICIANTE: A história hoje seria ligeiramente diferente, e a cidade de Moscovo uma metrópole com, arranha céus, e economia rápida......as sanções fizeram bem aos Russos, começaram a valorizar mais os seus produtos, a sua economia interna e o seu ..grande orgulho. É uma pena, esta Europa, não esteja mais de mãos dadas com a Europa....Estão todos mais interessados em apontar os defeitos que as qualidades...e assim nunca se chega á calma do entendimento.             Miguel Leitão 77  INICIANTE: Não consigo perceber este triângulo amoroso de JPP com PS e PSD. O PS é a amante, linda de morrer, inteligente e por quem está perdido de amores há anos. O PSD é a mulher gasta, que já não respeita, mas com quem continua casado. É uma típica crise de meia idade, que dura há demasiado tempo. DNG.  MODERADOR: Grande história doutor Pacheco. Grande história. Muito obrigado.           Boris Vian  MODERADOR: Pequena História. Estava à espera de mais, um outro episódio rocambolesco ... outras curiosidades. Então a convite russo, vai-se a Moscovo, à vontade, e, só por que havia uma delegação vietnamita já não foi possível visitar o mausoléu de Lenine. Huumm, viagem mal preparada. Bem, da Rússia estórias pela rama.                M Cabral  INICIANTE: Caro Pacheco Pereira, obrigado pelo prazer da leitura de mais estas interessantes e instrutivas histórias. Bom domingo.         Frank  INICIANTE: Muito bom.       Victor Nogueira EXPERIENTE: Pacheco Pereira não poucas vezes tem crónicas interessantes. mas por vezes parece que lhe falta assunto e vá de preencher o o espaço que lhe dão com éne caracteres incluindo espaços, como quem enchouriça letras. Como é o caso da presente croniqueta.

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