Na expressão da amizade, na expressão da
saudade, salientes no humor com que evoca um episódio com o seu grotesco, ante
a impassibilidade, um tanto inconsciente, desse homem estimado, menino mimado,
caprichoso e sempre adulado, que foi Mário
Soares, pronto a enfrentar situações, de humilhação que fossem, sabendo que
tudo se resolveria a seu contento, e tudo relativizando. Uma aventura incómoda,
num sítio que nos habituáramos a imaginar de tenebroso, mas que se tornou numa
aventura aliciante, pela evocação do comportamento impassível de um homem que
muito falou, e de quem muito se falou, espécie de ídolo, pelo que representou
por cá. Um riso entre dentes, de Pacheco
Pereira, em que se prevê o riso da caricatura, ultrapassado pelo sorriso da
ternura.
OPINIÃO
Para não
falarmos sempre das mesmas coisas: com Mário Soares em Moscovo diante da
Lubianka
Como devem imaginar, foi uma grande
viagem. Tudo à nossa volta estava a acabar, a URSS já tinha morrido e a
Federação Russa estava a tentar segurar o império a ferro e fogo.
PÚBLICO; 13 de Março de 2021,
FOTO: Sede do KGB
Não sou muito de penar pelos mortos, nem tenho aquela
obsessão pela morte que se transforma numa saudade mórbida da memória dos que
morreram. Acontece. Pode-se sempre filosoficamente dizer que o facto de toda a
gente ter morrido até agora não garante que os vivos de hoje vão morrer.
Pode-se sempre ler Hume e esperar que o princípio da indução alimente o erro de
pensar que lá por uma coisa ter sempre acontecido vai acontecer. Mas, como
entretanto tem acontecido, lá vão morrendo pessoas. Dessas pessoas, uma das de
quem tenho saudades, pelas suas enormes qualidades e pelos seus enormes
defeitos, é Mário Soares.
Nessa memória viva, contam várias histórias, uma das
quais poucas pessoas testemunharam e nalguns acasos apenas eu. Tratou-se de uma
viagem a convite russo que nos foi feito, a mim, Mário Soares
e Vítor Alves, para participarmos num debate
em Moscovo a propósito do 25
de Abril, já Soares não era presidente. E lá fomos, para chegar ao aeroporto
principal de Moscovo e ficarmos retidos na fronteira. Eu fui o primeiro a ser
preso e levado para uma sala onde estavam uns somalis com ar infeliz. Passado
um bocado, chega Mário Soares, a quem perguntei: “Então vem-me buscar?” ao que
ele respondeu: “Não, também fui preso.” Vítor Alves tinha passado sem problemas
e o embaixador Nunes Barata que estava do lado de lá da fronteira não percebia
muito bem o que se estava a passar. Soares lá se sentou na sala, juntamente com
os somalis, com uma guarda da fronteira que era, até há pouco tempo, uma das
funções de unidades especiais do KGB. Soares dizia: “Só me aborrece porque
fiquei sem o passaporte e o bilhete.” De resto, achava graça à situação. Eu
tentei explicar num pseudo-russo gutural à guarda que se tratava de um antigo
presidente de Portugal, ao que ela deve ter pensado que eu era Napoleão.
Passado para aí meia hora, libertaram-nos e deram-nos os documentos sem
qualquer explicação. Parece ter sido um erro no visto passado em Lisboa. E
lá fomos ter com um muito preocupado embaixador e com o militar de Abril, que, enquanto
Soares falava e falava, ele permanecia quase mudo.
Começou pois auspiciosamente a viagem. Mário Soares
estava feliz da vida, sem as obrigações de presidente, queria ver à vontade
Moscovo que nunca visitara como ele gostava, sem protocolo. Tinha lá ido a
primeira vez antes do 25 de Abril, num convite intermediado por Cunhal, ficou
no Hotel Ukraina, o “bolo de noiva”, e detestou o que viu. Agora queria ver,
acima de tudo, a Moscovo da “revolução”, os sítios icónicos como a Praça
Vermelha, o túmulo de Lenine, o Museu da Revolução, a sede do KGB na sinistra
Lubianka, as ruas e as russas. Com alguma fúria não conseguiu ir ao
mausoléu de Lenine, porque estava lá uma delegação vietnamita. E entre as
fotografias dessa viagem, há uma ou duas diante da sede do KGB, que tinha
mudado de nome nesses dias, mais ou menos de irónico punho erguido, com Vítor
Alves alheado como de costume sem perceber a coreografia.
Chegados ao colóquio na biblioteca estatal, a sala
onde estávamos estava coberta de livros alemães, com anuários de regimentos
prussianos, histórias militares, com alto grau de especialização, em edições
muito raras. Vim depois a saber que faziam parte do saque russo na Segunda
Guerra na Alemanha nazi e estavam na lista dos valores em negociação para serem
devolvidos à procedência. A sala era por isso propícia e o debate ainda
mais. Soares dizia sim e eu dizia não. Soares descrevia as reuniões do
Governo americano com George W. Bush bêbado no chão. Dizia que a guerra do
Golfo resultava da crença de Bush numa história mítica sobre a queda de
Jerusalém, que atribuía a um teólogo marroquino. Por aí adiante, a tal ponto
que uma das intérpretes me veio perguntar se ele tinha mesmo chamado “bêbado”
ao Presidente americano. Tinha.
Os jornalistas russos começaram a explorar o “eu
dizia sim e ele não”, ou vice-versa, e fomos convidados para várias
entrevistas e debates na rádio e um na televisão. Fomos, no entanto, prevenidos
de que não se podia falar na Tchechénia, que proclamara a sua independência, e
onde os russos se enterraram militarmente, ao que respondemos sim, sim, sim e
falámos, como é óbvio. Mas as contradições continuaram: “Deve a Rússia
entrar para a Organização Mundial de Comércio?” Soares: “Nem pensar.” Eu: “Não
vejo porque não deva.” E por aí adiante…
Como devem imaginar foi uma grande viagem, com longas
noites na embaixada de Portugal, onde estávamos alojados, num grande edifício
quase vazio, com a hospitalidade do embaixador e o grande conversador em plenas
funções, numa época em que a arte de conversar já estava em extinção. Soares,
que nunca foi dado a “estados de alma”, estava notoriamente feliz.
Tudo à nossa volta estava a acabar, a URSS já tinha
morrido, a Federação Russa estava a tentar segurar o império a ferro e fogo,
Putin em ascensão e um certo sentido de perplexidade que acompanha a história
quando ela se acelera. Ieltsin adulto era muito mais bêbado do que Bush jovem.
Estes tempos não se repetem, como, aliás, nenhum dos tempos.
Historiador
TÓPICOS
RÚSSIA
OPINIÃO MÁRIO SOARES 25 DE ABRIL GEORGE W.
BUSH
COMENTÁRIOS:
rafael.guerra
EXPERIENTE: "Tratou-se de uma viagem a convite russo que nos foi
feito, a mim, Mário Soares e Vítor Alves..."?! O caro autor não corrigiu a
desordem russa, não respeitando a importância dos personagens nem as regras de
boa educação. No melhor pano cai a nódoa... José Berrucho
INICIANTE: Delicioso texto! julio amado INICIANTE: Vai sendo raro ler bons textos nos jornais. Pacheco
Pereira está noutro nível intelectual. Quem não gostar ponha à borda do prato. cedcerqueira INICIANTE: Excelente texto, mas faltou um punchline mais forte
para ser uma boa história.
GMA EXPERIENTE: A História contado por um Historiador como quem conta
estórias, muito bem contadas. "Venham mais cinco..." rtrindade INICIANTE: As histórias dentro da história também são história. E
entretêm. Obrigado JPP. afpcarlospires.1044923 INICIANTE:
A história hoje seria ligeiramente diferente, e a
cidade de Moscovo uma metrópole com, arranha céus, e economia rápida......as
sanções fizeram bem aos Russos, começaram a valorizar mais os seus produtos, a
sua economia interna e o seu ..grande orgulho. É uma pena, esta Europa, não
esteja mais de mãos dadas com a Europa....Estão todos mais interessados em
apontar os defeitos que as qualidades...e assim nunca se chega á calma do
entendimento. Miguel Leitão 77 INICIANTE: Não consigo perceber este triângulo amoroso de JPP com
PS e PSD. O PS é a amante, linda de morrer, inteligente e por quem está perdido
de amores há anos. O PSD é a mulher gasta, que já não respeita, mas com quem
continua casado. É uma típica crise de meia idade, que dura há demasiado tempo.
DNG. MODERADOR: Grande história doutor Pacheco. Grande história. Muito
obrigado. Boris Vian MODERADOR: Pequena História. Estava à espera de mais, um outro
episódio rocambolesco ... outras curiosidades. Então a convite russo, vai-se a
Moscovo, à vontade, e, só por que havia uma delegação vietnamita já não foi
possível visitar o mausoléu de Lenine. Huumm, viagem mal preparada. Bem, da
Rússia estórias pela rama.
M Cabral INICIANTE: Caro Pacheco Pereira, obrigado pelo prazer da leitura
de mais estas interessantes e instrutivas histórias. Bom domingo. Frank INICIANTE: Muito bom. Victor Nogueira EXPERIENTE: Pacheco Pereira não poucas vezes tem crónicas
interessantes. mas por vezes parece que lhe falta assunto e vá de preencher o o
espaço que lhe dão com éne caracteres incluindo espaços, como quem enchouriça
letras. Como é o caso da presente croniqueta.
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