sexta-feira, 5 de março de 2021

Coisas que por lá se passam


E não por cá. E isso nos dá uma sensação de outras frescuras diferentes das nossas rotinas de encardimento contínuo. Pelo menos, gostei de saber que cá e lá más fadas há. Mas é uma história diferente, como as que líamos em criança, de tão diferentes origens, e nos provocavam um encantamento contínuo… Agora é mais por uma fuga às nossas pasquinadas contínuas de noticiários monocordicamente covidianos, que o artigo de Rui Tavares nos dá uma sensação de leveza. Mas apreciamos – negativamente, é certo - a sua estratégia de se servir da presidência portuguesa no Conselho Europeu, para incentivar A. Costa no sentido de escorraçar um parceiro europeu, antes que venha o seguinte na presidência a dar-lhe mais força ainda. “Parece-me isso cortiço”, como diria o Fidalgo a respeito da barca onde este queria instalá-lo na partida para o Inferno. Sim, não me parece muito digno, direi mesmo politicamente correcto, que uma presidência sirva para expulsar colegas de grupo…

OPINIÃO

Uma humilhação para o PPE, uma oportunidade para a Europa

Chegou um momento em que nem a UE nem os seus maiores partidos dependem de Viktor Orbán para nada — e devem tratá-lo com a mesma frieza pragmática com que ele até agora os manipulou.

RUI TAVARES

PÚBLICO, 5 de Março de 2021

Durante dez anos, Viktor Orbán procedeu a um desmantelamento sistemático do Estado de direito na Hungria, de forma premeditada, deliberada e, acima de tudo, evidente. A maior família política do continente, o Partido Popular Europeu, que deteve durante todo esse tempo a presidência da Comissão Europeia, a maior parte dos assentos no Conselho Europeu e o maior grupo parlamentar da UE, deixou-o fazer. Das mudanças periódicas da Constituição à decapitação do sistema judicial, da expulsão da Universidade da Europa Central ao fecho de praticamente todos os jornais e rádios que não reproduzissem a propaganda do governo, do aparelhamento das agências e instituições independentes à corrupção desbragada pelos amigos e família do primeiro-ministro, tudo o PPE foi deixando passar.

Sim, de vez em quando houve alguém que lamentasse o que se passava, às vezes até sinceramente. Sim, há uns tempos o Fidesz, partido de Viktor Orbán, foi “suspenso” do PPE para uma avaliação que nunca foi terminada —mas continuou no grupo parlamentar correspondente, onde deteve a vice-presidência até ao momento em que um dos seus deputados ter sido apanhado numa orgia homossexual fez mais por tirar o Fidesz da direcção do PPE do que o facto de o mesmo deputado ter escrito a Constituição húngara no seu iPad sem ser dada qualquer participação à oposição (e gabar-se disso). Na prática, o PPE e as suas estruturas de poder — independentemente da bravura de alguns raros membros que desde o início lutaram contra o autoritarismo nacional-populista do Fidesz — fecharam os olhos ou foram mesmo cúmplices, fornecendo a Orbán o escudo protector e a valiosíssima rede de contactos da maior e mais poderosa família política europeia. E embora o grupo de opositores a Orbán tenha crescido no PPE, foi apenas para continuarem a ver, impotentes, os seus chefes de partido e de governo empurrar o assunto com a barriga.

A Europa perdeu mais de dez anos com esta táctica irresponsável e desnecessária — uma vez que o PPE poderia perfeitamente ter prescindido de Orbán em qualquer momento do seu caminho, especialmente quando ele poderia fazer menos danos. Mas com uma escolha consciente e reiterada, apesar de todos os avisos, o PPE nada fez para conter a deriva que levou pela primeira vez um país da UE a deixar de ser considerado uma democracia plena nas avaliações das organizações internacionais especializadas em questões de democracia e direitos humanos. A história poderia ter sido diferente, mas, infelizmente, o que ela registará é que o partido que se gaba de ser o mais importante do projecto europeu acabou a aceitar e até a incentivar por omissão o mais sério e perigoso ataque aos valores do Estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais na UE deste século XXI.

A desvergonha durou mais de dez anos, e se as oportunidades de redenção foram passando umas depois das outras sem serem aproveitadas, previsível seria que a trajectória acabasse, como acabou, com uma humilhação para o PPE e com Viktor Orbán a decidir que os “seus” deputados abandonariam o grupo parlamentar do PPE (ainda não é claro se abandonou o partido) ainda antes que os deputados do PPE se conseguissem decidir a expulsar o Fidesz.

É um fim adequado. Mas da humilhação do PPE pode surgir ainda uma oportunidade para a Europa. Viktor Orbán jogou todas as suas cartas, chegando ao ponto de ameaçar bloquear o orçamento e o fundo de recuperação da UE se não pudesse gastar o dinheiro sem prestar o mínimo respeito às regras do Estado de direito. Agora chegou um momento em que nem a UE nem os seus maiores partidos dependem de Viktor Orbán para nada — e devem tratá-lo com a mesma frieza pragmática com que ele até agora os manipulou. Viktor Orbán foi convencendo o Conselho da UE a bloquear e atrasar a aplicação de todos os mecanismos de Estado de direito de que a UE se foi dotando. Agora basta parar de lhe fazer esse favor.

Chegou a altura de se entender qual é o risco imediato. Ou se age já — e esse já quer dizer durante a presidência portuguesa da UE ou devemos preparar-nos para um cenário em que a presidência eslovena do próximo semestre, cujo chefe de governo é um aliado de Orbán, consiga queimar mais tempo até ao momento de descredibilização total em que, em meados desta década, a presidência da UE venha a ser exercida durante um ano por dois países cujos governos violam sistematicamente os valores da própria UE — Hungria e Polónia.

Ou podemos finalmente falar claro, e os próprios húngaros entenderão que o rei vai nu, antes das eleições húngaras de 2023. É um momento decisivo para o projeto europeu e para a política neste continente.

Historiador; fundador do Livre

TÓPICOS

VIKTOR ORBÁN  HUNGRIA  EUROPA  UNIÃO EUROPEIA  PARTIDO POPULAR EUROPEU  PARLAMENTO EUROPEU  CONSELHO EUROPEU

COMENTÁRIOS

OldVic1 MODERADOR: Onde o autor vê humilhações do PPE, eu vejo uma vitória moral (se Órban sai é porque deixou de se sentir suficientemente bem para ficar); onde o autor vê perigos antidemocráticos da direita, eu vejo consequências democráticas de escolhas eleitorais do povo húngaro (a democracia não garante boas escolhas, garante escolhas livres, aspecto que certos sectores políticos teimam em não perceber). Quanto ao Sr. Órban &.ª, por mim já vai tarde, mas cabe ao povo húngaro resolver o problema, não ao PPE.

Figueira da Foz EXPERIENTE: Caro autor, se todos os deputados do PPE se comportarem com a mesma hipocrisia que se comporta Rangel neste seu país, não acredito que possamos ir longe. Explico, Rangel aqui veste a pele de democrata, em Bruxelas chuta para o lado protegendo um aspirante a ditador que esmaga as liberdades do seu povo.

 

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