terça-feira, 2 de março de 2021

Uma sorte


Isto da Internet. O certo é que o texto histórico – de Luís Soares de Oliveira - me chegou por email, e com todo o gosto o guardo no meu blog, encantada com o relato vivo e significativo daquilo que somos, como lutadores sem ordem…

O HOMEM QUE FOI CONDENADO A CHEFIAR O GOVERNO

(trabalho na forja)

V - O TERROR JACOBINO

LUIS SOARES DE OLIVEIRA

A marcha do processo republicano português veio ao encontro da teoria de Hegel. Mediante a sua abordagem dialéctica, o filósofo alemão concluiu que os sucessivos movimentos revolucionários surgem como solução das contradições inerentes ao regime que cada um deles pretendeu relegar. No entanto, quando consomem a oposição, convertem-se em novidade absoluta. Para continuarem a revolução, tornam-se radicais e produzem o aumento abrupto da violência. A revolução, por conseguinte, não pode voltar-se para nada além de seu próprio resultado e a justiça conquistada com tantas penúrias degenera num brutal reinado do terror. A violência torna-se tanto mais necessária quanto maior for a distância entre o conteúdo doutrinário dos revolucionários e o entendimento do povo. Isto explica o crescente e inevitável predomínio de Afonso Costa e João Chagas. Entre os cabecilhas históricos do movimento republicano português eram os únicos preparados para e dispostos a levar o movimento até às suas últimas consequências. Aos restantes faltava qualquer coisa. Machado dos Santos - o herói da Rotunda - era o revolucionário puro, totalmente destituído de doutrina. O que o seduzia era acção, não a palavra. Estava pois condenado à dissidência perpétua. Os restantes eram todos tribunos de mão cheia mas não preenchiam o quadro de exigências do revolucionário. Manuel Arriaga, pioneiro do republicanismo, era consciencioso, sincero, responsável mas demasiado bondoso. O académico Bernardino Machado era a versão viva do Falstaff, o famoso personagem de boa índole criado por Shakespeare. O tribuno António José de Almeida, médico e humanitário, esgotava-se na eloquência; não ia além disso. Por fim, mas não de menos importância, o iluminado Brito Camacho, o mais bem orientado de todos, preferia os bastidores ao proscénio.  O povo não levava a coisa a sério. Enquanto os três constitucionalistas redigiam a nova Constituição, o povo cantava com música da opera bufa "Il trionfo dell'onore": Nós somos três / Três! De grande perícia ? e… não menor malicia.

Enquanto o povo brincava, Afonso Costa redigiu a Lei da Separação da Igreja e do Estado e fê-lo à sua maneira. Para ele era tudo o mesmo. Numa visita aos padres jesuítas presos em Caxias em que se fez acompanhar por republicanos espanhóis enunciou a teoria segundo a qual Igreja e Maçonaria eram sociedades secretas que tinham por motivo destruírem-se uma à outra. Era preciso engrossar as fileiras e assim procediam: a Maçonaria abria as portas aos monárquicos arrependidos, enquanto Formiga Branca recrutava na rua agitadores. Nem a um nem a outro faltaram aderentes. Segundo Ruy Ramos, em 1913, o número de iniciados do Grande Oriente passou de 2733 para 4341. Quanto às "formigas", nunca saberemos quem e quantas eram. Mas Afonso Costa sabia onde ir buscá-los. Procediam como os tradicionais trauliteiros: varriam as feiras populares à paulada após o que desapareciam sem deixar rasto. Era um hábito.

Uma explicação para esta adesão ao radicalismo violento dá-nos o sociólogo francês Gustaf Le Bon. No seus livro La Revolution, defende que "a psicologia do indivíduo subjuga-se à psicologia da multidão. Submetido à alma colectiva, deixa-se dominar por pulsões irracionais, pelo inconsciente, adquirindo, pelo facto do número destes, um sentimento de poder invencível. "Aquele que isolado seria um indivíduo culto; em multidão torna-se um ser instintivo e, por consequência, um bárbaro”. Daí que a mentalidade revolucionária característica dos jacobinos, tenha equivalência com as crenças religiosas: ambas moldam a razão através da crença. "Não há verdadeiro apóstolo sem a necessidade intensa de destroçar seja o que for. O revolucionário torna-se apóstolo, e deste modo, concentra as atenções", concluiu.

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Há que reconhecer que a história aprende com os seus próprios erros. Perante a progressão do ímpeto revolucionário, a liga revolucionária perdeu coesão e a resistência das camadas sociais receosas do caos começou a tomar forma. António José de Almeida, ao aperceber-se da dimensão do abismo para que a República nos encaminhava, passou rapidamente de revolucionário a conservador. Como todo o individuo de formação cientifica, estimava a ordem e declarou que "qualquer acto de rebeldia tolerável na Monarquia seria agora crime inaceitável". Lembrava também que "a República fez-se para unir os Portugueses e não para os dividir". Boas intenções. António José contava com a sua eloquência. Arrastaria multidões se necessário fosse. A cobiça não o movia, atitude que o tornava incompatível com o "fartai vilanagem" que inspirava os que seguiam Costa. Tal atitude valeu-lhe um ataque de arruaceiros de que foi vítima em pleno Rossio. Brito Camacho - dos três chefes de Partido o de menor séquito - estava desde início deslocado em relação ao quadro violento. Proprietário alentejano, médico militar com estudos feitos em França, não frequentava cafés e a sua roda de conversa tinha por cenário uma farmácia. Nas horas vagas, escrevia novelas e altruisticamente entendia que a revolução se fizera para que o povo tivesse acesso à educação e não ao dinamite. Foi o primeiro a afastar-se ainda que o único que deixou obra: O Instituto Superior Técnico e o Instituto Superior de Comércio ( mais tarde Ciência Económicas).

Vasco Pulido Valente, que se debruçou sobre o assunto, concluiu que a violência dos radicais, a que chamou o “terror jacobino”, foi um instrumento consciente para garantir a sobrevivência da República. Porém, a própria contra-revolução, viveu da violência, adensando o clima de ódio e de guerra civil permanente que alimentou o imaginário dos coevos. Os historiadores coordenados por Ruy Ramos informam na sua História de Portugal que "de 1910 a 1926, entre 1500 e 2000 pessoas terão morrido devido a causas políticas, no contexto das inúmeras revoluções, revoltas, incursões, pronunciamentos, ataques bombistas e outros fenómenos, como o assassinato".

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Manuel Arriaga (1845-1917), eleito Presidente da República em 1911, ia acompanhando este processo degenerativo com crescente preocupação. Ele era pessoa responsável e doutrinador pacífico; o seu republicanismo era sincero, datava da juventude e tinha-lhe custado caro. Ajudou - ainda estudante em Coimbra - a fundar o Partido Republicano (Coimbra, 1872), iniciativa que seu pai, açoriano conservador, não aprovou. Aí perdeu a mesada, o que o obrigou a dar lições de inglês para se manter, custear os seus estudos e também os de seu irmão que viria a ser jornalista apreciado. A actividade intelectual de Arriaga mereceu-lhe ser considerado um dos integrantes da célebre geração de 70. Ao longo de sua militância, nunca apregoou ódios nem revoluções e demonstrou constante preocupação com a condição do povo humilde abandonado à sua sorte. O escritor Raul Brandão deu-nos dele - já Presidente - uma imagem poética: «O velho mantém certa aparência de vigor, com cabeleira branca, a pera branca, e a sobrecasaca antiquada. É uma figura arrancada a um quadro romântico».

O Movimento das Espadas (fascículo anterior) proporcionou a Arriaga a primeira oportunidade de intervir na governação. Segundo a Constituição, o presidente não podia demitir o governo mas, extinto este, competia-lhe marcar a data das eleições para formar o novo governo. E assim fez. Em Janeiro de 1915, o governo do dia pediu a demissão que foi aceite. O presidente Arriaga não marcou eleições e chamou o general Pimenta de Castro a quem algo arbitrariamente confiou o governo. O general, por sua vez, dissolveu o Congresso e passou a governar em regime ditatorial. O curioso da história é que Machado dos Santos, o herói do 5 de Outubro, aderiu e apoiou Pimenta de Castro. A resposta de Afonso Costa demorou. Só a 4 de Maio, os deputados parlamentares do PRP, reunidos secretamente no Palácio da Mitra, declararam Manuel de Arriaga e Pimenta de Castro fora da lei e os seus actos nulos. Com os campos definidos passou-se à acção. Assim teve início a Revolta de 14 de Maio de 1915.

Naquele tempo, o Palácio de Belém era a sede da secretaria-geral da Presidência da República. Arriaga tinha arrendado o anexo do Palácio para sua residência oficial. (Desde essa data, os presidentes republicanos que quiseram residir em Belém tiveram de pagar o aluguer). A notícia da revolta de Maio deixou-o, no dizer do seu mordomo, "abatido, triste, quási perdido aquele seu sorriso bondoso. Não se manifestava porque era muito educado, de boas famílias, descendente de reis … ». Arriaga não queria protecção mas os militares fizeram-lhe ver que o palácio era extremamente vulnerável e encarregaram Domingos de Oliveira, então major comandante do quartel vizinho, de responder pela sua segurança

E os militares tinham boa razão. Desta feita o comando da insurreição foi assumido por um indivíduo extremamente perigoso. O capitão de mar e guerra Jaime Leote do Rego (JLR) já tinha conhecido acção militar no norte de Moçambique no período de Mouzinho (1888). A sua actuação naquele teatro operacional. merecera-lhe do Rei a Torre e Espada, a mais alta condecoração portuguesa. Ficou ali provado que JLR era decidido e não lhe repugnava fazer verter sangue. Após queda da Monarquia, foi dos primeiros militares a ser admitido na Maçonaria com o nome simbólico Pêro de Alenquer. Em 1915, estava desligado de comandos navais e exercia funções de deputado à Assembleia Nacional. No 14 de Maio, passou a assumir um comando, à sua maneira. Dou aqui a voz a Jules Pabon: "JLR embarcou no Vasco da Gama, o navio de guerra mais poderosamente artilhado da nossa marinha do tempo, e exigiu ao comandante Assis Camilo que lhe passasse o comando o que foi recusado. Prontamente rapou da pistola e matou-o com um tiro no peito. Seguidamente e com o cadáver do camarada ainda à vista, deu ordens à tripulação: levantar ferro, rumar ao cais das colunas e dispor a artilharia para alvejar os ministérios do Terreiro do Paço. E assim foi. Com dois tiros certeiros, JLR "fechou" o governo. Os revoltosos ficaram donos do mar, mas em terra a metodologia revolucionária seria diferente. O encarregado da operação terrestre, o Coronel Norton de Matos preferiu ficar em casa e transmitir ordens pelo telefone. Em terra funcionou a deserção, obra da "formiga": - o soldados das forças governamentais foram-se passando gradualmente para o inimigo.

Os civis armados tomaram conta das ruas de Lisboa e começaram os abusos. Dezenas de casas de partidários de Pimenta de Castro, centros ligados ao Governo, sedes legais dos monárquicos e jornais que apoiaram a situação foram assaltados. O Palácio Presidencial é alvo de assalto e Manuel de Arriaga só escapou porque tinha saído pouco antes, a caminho de Queluz, escoltado por três esquadrões de Cavalaria sob comando de major Domingos de Oliveira. Este prevenido da insurreições das forças que estavam na Baixa, ao chegar a Monsanto mandou apear a cavalaria e falou aos soldados, fazendo-lhes sentir a honra que era terem sido escolhidos para proteger o Presidente. E assim conseguiu pôr Manuel Arriaga a salvo da artilharia do Vasco da Gama e da fúria assassina dos trauliteiros.Entretanto, os civis disparam sobre o Quartel do Carmo, onde ainda estavam Pimenta de Castro e Machado Santos, e estes são levados presos para os navios no Tejo. O Governo Civil de Lisboa é igualmente tomado de assalto, bem como o quartel de Cavalaria 2, na calçada da Ajuda.             «««»»»

O movimento revolucionário prolongou-se por 3 dias até que as representações diplomáticas acreditadas em Lisboa alarmadas com os acontecimentos ocorridos quando as ruas da capital ficaram sob domínio dos bandos armados, referiram aos seus governos que não podiam garantir a segurança dos seus nacionais e das instalações. Relatam que as casas estavam a ser assaltadas às dezenas e que as poucas pessoas que circulam nas ruas eram mandadas parar e agredidas se não soltassem vivas à Revolução e morras a Pimenta de Castro. A Espanha é a primeira a reagir e envia uma forte esquadra encabeçada pelo seu mais moderno e poderoso navio, o couraçado Espanha, e ainda com dois dos seus maiores cruzadores. Era uma força mais que suficiente para derrotar no Tejo a totalidade da marinha portuguesa, se surgisse algum confronto. Basta referir que o couraçado Espanha, lançado ao mar em Outubro de 1913, deslocava 15452 toneladas e contava com 8 peças de 305 mm. Por comparação, o velho cruzador Vasco da Gama, de 1876, o navio chefe dos revoltosos, deslocava 2982t, e estava armado com peças que eram boas para dominar Lisboa, mas muito débeis frente a um moderno couraçado. A França e a Inglaterra apressam-se a enviar igualmente uma força naval para Lisboa, com o duplo objectivo de acalmar os ânimos dos civis armados e de moderar qualquer ímpeto intervencionista dos navios espanhóis. A força naval franco-britânica (então em guerra) contava somente com dois cruzadores e retirou-se rapidamente. A esquadra espanhola (ao tempo ainda em regime de Monarquia) permaneceu vários dias no Tejo, de modo a recordar aos radicais republicanos algumas realidades do condicionamento externo.

(continua)  1919

COMENTÁRIOS: Isabel Themudo Gallego: Que maravilha de descrição. Na minha infância ainda ouvi a minha avó descrever os sustos que passava sempre que o avô ( advogado de profissão) se ausentava de casa e tardava a chegar... tinha medo dos “barulhos” para os lados da Baixa, assim descrevia…        Joaquim Morais: Muito grato por esta descrição que explica muito bem o que foi a primeira república. Um tempo de desordem e revoltas mais para destruir do que para construir!          Francisco G. de Amorim: MEU AMIGO: TODOS OS TEXTOS QUE TEM VINDO A NO FACEBOOK, POR FAVOR, REUNA-OS NUM LIVRO, MUITA HISTÓRIA, MUITO BOA. NÓS, OS HOJE ALIENADOS, PRECISAMOS DE DOCUMENTOS VERDADEIROS. UM ABRAÇO.

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