quarta-feira, 3 de março de 2021

Mitologia clássica em nova versão

 

O LABIRINTO DO MINOTAURO

Trata-se de um livro escrito por Joan Sole - cujo título original é “EL LABIRINTO DEL MINOTAURO” – o qual foi traduzido por Ivan Figueras e impresso na U.E. Entre as muitas histórias míticas que o DN resolveu pôr à venda - e que a minha nora Ângela vai comprando para o Bruno - tanto me encantou este, pela excelência da exposição, que resolvi facilitar a sua leitura para os meninos e meninas que se encontrem um pouco perdidos, como em labirinto, estendendo-lhes, assim, um fio, (como fez a Ariadne ao Teseu), trazendo-os para a luz de uma mais fácil percepção.

Capítulo I – Nascimentos e Destinos

Egeu reinou em Atenas, mas a sua sucessão no trono estava inquinada, por ele não ter filhos e só ter sobrinhos – 50, por junto, - os Palântidas, filhos do seu irmão Palante, que não só o desprezavam como estavam de olho atento no trono, que pretendiam disputar-lhe. Por isso um dia, andava ele pelos 50 anos, foi visitar um outro seu irmão – Piteu, rei de Trezena, este bondoso e compreensivo, que o escutou com atenção. Soube, assim, que, além de se sentir infeliz, por não ter herdeiros de nenhuma das suas duas mulheres, Egeu passara, na viagem a Trezena, pelo oráculo de Apolo, em Delfos, cuja Pítia (também chamada Pitonisa), à pergunta sobre a fertilidade dele, lhe deu uma ordem muito ambígua que ele não entendeu: “Desata o odre de vinho, antes de chegares a Atenas”. E Piteu, que também tempos antes recebera um estranho oráculo a respeito da sua filha Etra, sobre um futuro casamento “desonroso” desta, mas “glorioso” no herói que dele se forjaria, logo percebeu que o “odre” do oráculo do seu irmão Egeu tinha a ver com a união deste com a sua submissa filha, Etra, e assim a deu a Egeu, com toda a sua autoridade paterna própria daqueles tempos de preconceito, para mais, incentivada pela autoridade divina, naturalmente superior à dele - para uma noite de amor sem boda, da pobrezinha. No dia seguinte, Egeu levou Etra, sua sobrinha e, afinal, amante só por essa noite - à praia, onde, repentinamente lúcido a respeito do tal oráculo sobre o desatar do seu odre, enterrou as sandálias e o seu gládio debaixo dum rochedo, e, magnanimamente, instruiu a moça para que, caso tivesse um filho seu, o criasse, e só quando ele atingisse a idade suficiente para desenterrar esses seus pertences, lho enviasse para Atenas. Eis, pois, a origem um pouco turva do futuro herói Teseu, salvador não só da continuidade do seu pai Egeu no trono de Atenas, como será o salvador de Creta, ao matar o Minotauro do labirinto, cuja história é o fulcro da acção heróica de Teseu - e deste livro.

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É agora a altura de se referir a origem desse tal Minotauro, que remonta à própria história de Europa, uma princesa fenícia, de Tiro, que, mal saída da adolescência, se deixa levar pelo mar fora, na garupa de um touro branco que não era outro senão Júpiter, capaz de todos os embustes para satisfazer as suas lubricidades e assim enriquecer a raça humana com variados espécimes de heróis, como já fizera, por exemplo, com Alcmena, disfarçado em marido desta, Anfitrião, tendo gerado o herói Hércules, que cometeria proezas extraordinárias de força física, - imitada, nos nossos tempos por um outro Hércules mas este com apelido: nada menos que Poirot, mais reconhecido pela sua destreza mental e orgulho próprio, também desmesurados e não menos valiosos em realização do que os doze trabalhos bem-musculados do seu antecessor. Mas esse Hércules, mais recente, é da criação da inconfundível e bem humana Agatha Christie, que não é para aqui chamada, por isso peço perdão da referência, embora Agatha Christie seja, para mim, como uma espécie de mito, pela sua imaginação inventiva e sentido aprazivelmente humano da sua criatividade sem snobismo nem desmesura, mas suficiente intriga policial, com conclusões felizes para os com real mérito. Retomando o fio desta meada, direi ainda que, da relação de Europa e Júpiter, resultará o filho Minos, (o futuro rei de Creta responsável por esta estranha trama mitológica em torno de mais uma aberração: um Minotauro monstruoso, por Minos enfiado num labirinto que o tal Teseu irá matar, salvando assim tanta da juventude grega, que era pasto da sua avidez, como veremos, por vingança de Minos contra Egeu.

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Voltamos, pois, a Egeu, que desde que regressara de Trezena, onde, numa noite, amara a sua sobrinha Etra, governava Atenas com cada vez mais azedume, por conta dos sobrinhos ávidos, e envolvido pelas promessas da feiticeira Medeia, que o convencera de que ele ainda havia de ter um filho, de uma das suas duas mulheres, das quais ela era uma, apesar de ele já se sentir muito a cair da tripeça nessa questão de pujança amorosa, sendo quase septuagenário. Ora, num banquete, no seu palácio em Atenas, apareceu-lhe, um dia, um jovem, ao que parece, portador de boas notícias para Egeu. Mas Medeia, suspeitosa, como bruxa que era, aconselhou-o a envenená-lo com um copo de vinho onde deitara veneno. A mão submissa do rei, que estendia o copo, logo recuou, todavia, quando o rapaz se apresentou como seu filho, vindo de Trezena, mostrando-lhe as sandálias e a espada, por ele, Egeu, enterradas na praia, havia dezasseis anos e que ele logo reconheceu. E foi um ver se te avias de notícias sobre Trezena e a mãe Etra e o avô Piteu, e os feitos de Teseu, a quem, ainda infante, o próprio Hércules, de que falei acima, e que tinha então a seu cargo doze proezas de envergadura, reconhecera capacidades fabulosas de força e coragem, por a criança, então de sete anos, ser a única entre várias outras amedrontadas, a enfrentar a temível pele de leão, por Hércules atirada descuidadamente para o chão do palácio de Piteu, a quem fora visitar.

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Tornemos, entretanto, a Europa, que Júpiter abandonara na praia, em Creta, depois de a ter amado com muita pujança, segundo o seu costume, e que fora salva por um soldado cretense. Este levou-a, desmaiada, ao rei Astérion, que vivia no seu palácio em Cnosso, capital da ilha. Europa recuperou da sua fraqueza e por ela se apaixonou Astérion, sempre no maior respeito, no entanto, sem nada exigir dela, a não ser o são convívio amistoso que nunca ela lhe recusou, imbuída de uma estranha majestade, pois Europa compreendera que o tal touro que a levara pelo mar fora e a estendera na praia, para a posse amorosa, não fora outro senão o próprio Júpiter. Mas desses mistérios não se inteirou Astérion, discreto e acomodado, que com deuses não se brinca e uns zunzuns sempre lhe tinham chegado aos ouvidos, para mais tendo sido encontrada estendida na praia, desmaiada…

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É a altura de Teseu se vingar de todos aqueles seus primos Palântidas, que punham em causa a sua proveniência real, na própria ágora ateniense, eles, sim, segundo afirmavam, verdadeiros netos de Pandião, pai de Palante, Piteu e Egeu, não tendo este descendentes, como dissemos.

Entretanto, repetiremos que Teseu, aos dezasseis anos, depois de ter desenterrado as sandálias e o sabre do pai Egeu, foi para Atenas, em busca desse pai – por terra, e não por mar, como lhe aconselhavam a mãe Etra e o avô Piteu, receosos pela sua vida, pois os caminhos terrestres estavam infestados. Mas como achava que devia cometer proezas, escolheu o caminho terrestre, e, de facto, assim pôde matar uma série de criminosos que infestavam aqueles sítios, como autênticos flagelos humanos e não viróticos, com nomes tão requintados quanto os seus crimes – (e não como nós, hoje, que vivemos no conforto do desenvolvimento tecnológico, para quem o nome insípido de Covid 19 é flagelo suficiente, invisível e travado por uma vacinazita descoberta à pressa, em laboratório asséptico e desenxabido…). Esses terroristas chamavam-se Peripetes, Sinis, Escíron, Cercion, Procrustres, nomes, esses sim, profundamente aterradores, com os seus sons duros ou arrastados em sintonia com a extrema crueldade de quem os detinha, coisa inimaginável hoje, que, para despachar nos casos de condenação à morte, pelo menos, usamos processos rápidos tais como a bala, ou a descarga eléctrica, embora outros exemplos se possam citar, de diferentes espaços temporais. Mas Teseu enfrentou os tais assaltantes e deu cabo deles, livrando os gregos desse flagelo humano, por isso os atenienses o consideraram seu eleito. Foi então que Egeu fez um discurso aos atenienses, incriminando-se por ter sido um rei fraco aqueles anos todos e oferecendo o trono a seu filho Teseu, que o recusou, contudo, por não se sentir ainda com competência para governar. E a sua modéstia a todos agradou.

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Entrementes, Europa, grávida de Júpiter, e vivendo com Astérion, tivera o seu parto, de que resultaram três filhos gémeos, a quem Astérion, por deferência de Europa, ao dar-lhos a escolher, pôs os nomes de Minos, Sarpédon e Radamante.

Assim acaba, numa estrutura alternada de acontecimentos de diferentes origens, este primeiro capítulo, sobre os nascimentos e os destinos dos intervenientes nesta trama extraordinária - se não mesmo um tanto abjecta, com hibridismos bem maquiavélicos – do tipo sexual, como já vimos com a história de Europa, e até reprodutivo, como veremos, com a história de Minos, filho daquela.

Capítulo II: Touro

É sobre o nascimento de Minotauro, uma história bem sórdida, a deste segundo capítulo, que tem como antecedentes a criação dos filhos de Europa, educados com todos os requintes, é certo, que o casal Europa-Astérion não deixou de lhes prestar, embora cedo se destacasse o gosto de Minos para sucessor de Astérion, putativo pai dos três gémeos, sem jamais interrogar Europa, como já foi dito, a respeito da verdadeira filiação paterna dos três rapazes, talvez por aquele intuir algo que ele não tinha o direito de desvendar, coisa que só acontece mesmo nos mitos - pois os deuses não são para brincadeiras, tanto em questão de força, como de orgulho, e mais vale ser-se omisso, em termos de curiosidade marital - e Astérion bem fez em manter-se discreto a esse respeito, em toda a sua vida. Esta, um dia, chegou ao fim, e Europa, depois de todos os requintes fúnebres que lhe prestou, como sua companheira saudosa e grata, falou aos filhos na sucessão ao trono de Creta. Logo Minos se adiantou como pretendente ao trono e, para mostrar o seu poder, invocou Posídon, o deus dos mares, que lhe enviou um magnífico touro branco, que Minos logo prometeu sacrificar-lhe. É então que Europa cai morta, ao perceber que uma vez mais um touro divino mancharia a sua vida e a da sua descendência. Enquanto os outros dois irmãos de Minos - Sarpédon e Radamante - choram a mãe morta, aquele, enfeitiçado por tão belo touro, só pensa em enganar Posídon, sacrificando-lhe um outro touro também belo, mas das suas próprias manadas. Posídon não se deixou enganar, é claro. E o touro de Creta daí em diante cometeria grandes desacatos.

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Estamos agora no palácio de Atenas, onde Egeu tenta explicar a seu filho Teseu o motivo de se encontrarem chorosos, na sala, catorze jovens atenienses – 7 rapazes e 7 raparigas – que irão ser sacrificados por imposição de Minos – como veremos - e tudo por culpa dele, Egeu. De facto, fora este que, por inveja de um filho do rei Minos de Creta – Andrógeo vencedor de todas as provas Panateneias (o que bem demonstrava o desenvolvimento daquela ilha de Creta, que para mais mantinha o domínio dos mares em redor, a que se chamou talassocracia) – instara, ele, Egeu, com Andrógeo, para que combatesse o touro que então arrasava as campinas da Hélade - sabendo que este o mataria, como sempre acontecera com esse touro, já nosso conhecido e que de momento se encontrava devastando os espaços atenienses, como veremos.

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Voltando atrás, nesta história ziguezagueante, como de resto, são todas as histórias, em que se travam relações, cada um dos intervenientes com a sua árvore genealógica ramificada e quantas vezes entrelaçada com outras, vamos referir toda essa história do rei Minos de Creta, de quem Posídon se vingou, desde que aquele lhe sacrificou um belo touro das suas manadas, em vez do touro que o próprio deus dos mares lhe enviara, como já se disse, para mostrar que era ele o verdadeiro sucessor de Astérion, por ocasião da morte da mãe Europa. Vamos, pois atentar na história destruidora deste touro - e também sórdida como já foi adiantado.

Conta-se, entretanto, a história da rapariga com quem o rei Minos se casou – Pasifae, filha de Hélio, o deus Sol (donde provém o heliocentrismo em que andamos embarcados, desde as alturas clássicas, pois na Idade-Média e muito antes, não passávamos de uns geocêntricos pretensiosos bem ignorantes, como se demonstrou, sendo Dante um dos demonstradores, que não escapou às malhas da Inquisição, por isso. Pasifae era também filha da ninfa Perseis, era princesa na Cólquida, (actual Geórgia), e era irmã da feiticeira Circe, a tal que transformou os companheiros de Ulisses em porcos, lá no regresso deste a Ítaca, como todos sabemos, mas, tirando esses pormenores exóticos, eu não posso deixar de lembrar também o belo soneto de Camões, que descreve assim a sua “Circe”, soneto que vale a pena ler, como se fosse uma pintura clássica a requintar estas histórias do engenho clássico grego, pois podia bem configurar o retrato desta bonita Pasifae, princesa da Cólquida:

«Um mover d’olhos brando e piadoso, / Sem ver de quê; um sorriso brando e honesto,   / quási forçado; um doce e humilde gesto, / de qualquer alegria duvidoso; / Um despejo quieto e vergonhoso; / um repouso gravíssimo e modesto; / ũa pura bondade, manifesto / indício da alma, limpo gracioso; / Um escolhido ousar; ũa brandura; / um medo sem ter culpa; um ar sereno; / um longo e obediente sofrimento: / Esta foi a celeste formosura / da minha Circe, e o mágico veneno / que pôde transformar meu pensamento.»

Não devemos esquecer, também, que as irmãs Pasifae e Circe eram tias de Medeia, que já encontrámos no palácio de Egeu, a azucrinar-lhe os ouvidos, a respeito das possibilidade de ela lhe dar um filho dele, (mas de quem se contam outras ligações amorosas, por exemplo com Jasão, o tal argonauta a quem ela facilitou a obtenção do velo de ouro, e mais outras histórias de tragédia a ela ligadas). As histórias são como as cerejas…

Mas é de Pasifae que se trata, e que Posídon escolheu para se vingar de Minos, fazendo-a sentir ardores amorosos pelo touro branco por ele enviado a Minos, (quando este, repito, quis impor a sua autoridade para suceder a seu “pai” putativo, Astérion, o que causara a morte da mãe Europa, ao dar com o touro branco saindo das águas, como, anos antes, um touro idêntico a levara a ela, de que resultaram os três gémeos referidos, entre os quais, Minos.

O que sucede é que Pasifae se apaixona sensualmente pelo touro branco, se envergonha disso mas instiga o engenheiro Dédalo, sob ameaça, a construir uma “vaca artificial”, aparelho por meio do qual ela pôde ter relações sexuais com o touro branco, uma vergonha. E foi assim que nasceu o “Minotauro”, que o pobre rei Minos teve que adoptar como seu filho, tendo este uma verdadeira cabeça de touro com cornos, sendo o resto do corpo de bípede humano, anomalias nunca vistas.

Capítulo III: Monstros

É claro que Minos se horrorizou inicialmente, e até, raivoso, trocou a mulher, Pasifae, por várias outras mulheres, numa prática de adultério de muita loucura, mas Pasifae vingou-se, pois que também conhecia as artes de bruxaria, tal como a sua irmã Circe, e a sobrinha Medeia, e assim fez que os espermas de Minos fossem de composição macrobiótica, de escorpiões e serpentes, que liquidavam essas pobres mulheres por ele violadas, em fúria dilaceradora. Todo este horror teve o seu fim - graças, de resto, a uma intervenção de Circe, a irmã de Pasifae, que deu a uma dessas mulheres umas ervas milagreiras para esta as utilizar num chá para Minos – e isso nos lembra os preceitos utilizados hoje pelas pessoas sensíveis à exploração animal, que enveredam pela utilização exclusiva das ervas no seu alimento e para as quais mesmo o leite e os ovos de origem animal estão interditos, graças a essa mesma piedade.

Graças, pois a esse chá de Circe, Minos voltou a reconciliar-se com Pasifae, sentindo-se ele próprio responsável pelo desastre - ao ter, repito, falhado na promessa feita a Posídon de lhe sacrificar o tal touro branco, que o rei marinho lhe enviara, para mostrar que ele era o verdadeiro sucessor de Astérion no trono de Creta. Um touro branco que Minos, obcecado por este, pouparia, sacrificando outro a Posídon, que se vingaria com extrema crueldade, como já vimos. Isto mesmo lhe foi lembrado por Pasifae, quando esta lhe contou das suas aventuras com o touro branco, que o engenheiro Dédalo bem fizera por impedir, sem resultado, contudo, embora ela própria muito se recriminasse, por tal despautério, jamais visto. Sentindo-se, pois, o verdadeiro causador daquela infâmia de ter um filho não seu mas daquele touro que tantos danos causava, primeiro, em destruição, e agora também na sua própria honra, Minos voltou, pois, às boas com Pasifae, com quem teve oito filhos mesmo seus, e, entre os mais conhecidos, Deucalião, Fedra, Andrógeo (este último que já chegámos a conhecer), e Ariadne que viremos a conhecer ainda. Mas o que ele tratou logo de fazer, foi mesmo um extraordinário labirinto, de que encarregou o mesmo Dédalo do engenho da vaca, tendo-lhe perdoado esse tal engenho, consciente do seu fatal destino. Do labirinto, trata o capítulo seguinte.

IV - Resoluções

Tudo isso que ficou dito de resoluções e reconciliações entre o casal real de Creta pertence, de resto, a este capítulo, que expõe ainda sobre o excelente governo de Minos em Creta que, com ele, alcançou a tal hegemonia marítima sobre todas aquelas ilhas à sua volta e mesmo sobre as demais cidades-estado do continente grego. Mas o certo é que tudo isso do desenvolvimento cretense ia acontecendo com o “lastimoso gemido” que se escutava, vindo das paredes brônzeas do labirinto onde fora encerrado o pobre Minotauro, labirinto construído graças ao extraordinário engenho de Dédalo, mas igualmente proveniente da riqueza em bronze obtida na ilha, que atestava o poder económico e o desenvolvimento de Creta, já que esse labirinto, que ocupava a área correspondente a dois estádios actuais, fora todo ele construído em bronze e não em pedra, que o Minotauro não deixaria de destruir, mas que em bronze se traduzia em constantes e inexplicáveis sons de gemidos e marradas que se repercutiam e ecoavam por toda a ilha, daquele ser hibrido que jamais fora mostrado ao povo cretense, por escrúpulo envergonhado do rei, que, se lhe dera o seu nome – Minotauro – trataria mais tarde de lhe pôr o nome de seu pai, Astérion, que não pegou, contudo.

E não resisto a transcrever um magnífico passo sobre o labirinto de Creta, que não só nos mostra a sua extraordinária concepção arquitectónica, como o identifica no seu simbolismo esmagador, sítio donde só se sairia mercê do fio do novelo que Ariadne deu a Teseu, quando este ali foi acompanhar os 14 jovens gregos condenados, para este recuperar o caminho de regresso, quando ali foi matar o Minotauro, numa história que está ainda por contar, como remate deste longo enredo mítico. (Num parêntese, lembro também a história de Ícaro, filho de Dédalo, que ajudara seu pai na construção do labirinto, mas que dele se livrara voando, por meio de umas asas coladas com cera das abelhas, pelo seu pai, que o aconselhou a não se aproximar do sol, sugestão a que Ícaro desobedeceu, despenhando-se no mar Icário, zona do mar Egeu, mas isso é outra história.

Eis o texto sobre o Labirinto:

«…Dédalo era geómetra e engenheiro, não psicólogo, mas havia dois aspectos do labirinto que torturavam cruelmente quem quer que o ocupasse, se fosse essa a intenção. Por um lado, o facto de não ter tecto e poder ver-se o céu – apenas o céu, porque as paredes altas obstruíam qualquer ângulo lateral e, como eram perfeitamente lisas, não era possível trepá-las -, embora oferecesse algum conforto no início, intensificava o desejo de liberdade e impossibilitava a resignação ao enclausuramento: o azul acendia no coração a ânsia por ar e espaço, a qual, não podendo ser satisfeita, causava dor e angústia. Por outro lado, a superfície polida do bronze transformava-se em vários troços, dependendo da quantidade de luz que nela incidia, num espelho que reflectia o que estivesse à sua frente. O ocupante do labirinto que deambulasse ou corresse pelas galerias depararia com a sua própria imagem. Ver-se a si mesmo, recordar a sua própria existência, transformar-se a si mesmo no conteúdo do seu próprio pensamento aumentava o sofrimento do prisioneiro»…

 

Eis, pois, o pobre Minotauro levado para esse labirinto, às escondidas de todos, um ser carnívoro, que começou por se alimentar de carneiros e ovelhas para ali levadas e que baliam até se calarem, e acabou em carne humana, com que Minos castigava os criminosos da ilha, com esta morte causada por um homem-touro canibal - e, finalmente, jovens gregos, por represália contra Egeu, como já começáramos a referir, na evocação de Egeu, a seu filho Teseu, no seu palácio em Atenas, a quem contou as suas responsabilidades nesse castigo imposto por Minos, quando este foi informado da morte de seu filho Andrógeo, vencedor nos jogos panateneios, e que, por inveja, Egeu conduzira à morte, ao fazê-lo lutar contra o devastador touro de Creta, naquela altura a arrasar os campos de Atenas: Minos exigiria, com todo o seu poder, que todos os anos catorze jovens atenienses servissem de repasto ao Minotauro, ao ter conhecimento de que fora Egeu que o conduzira à morte…

*

Estamos de retorno à sala do trono em Atenas, onde Egeu continua a contar a seu filho Teseu, em voz contida mas comovida, os motivos da sua profunda prostração, por se sentir indigno como rei de Atenas: primeiro, por causa do cerco de Atenas, imposto por Minos, em represália pela morte do seu filho Andrógeo, cerco terrífico causador de fome, imundície e peste, dentro das muralhas de Atenas, o que levou Egeu a ir a Cnossos, a capital de Creta, confessar a Minos a sua responsabilidade nessa morte, como já referimos. Dessa confissão resultou a intensa cólera de Minos, que não quis matar Egeu, para mais o torturar com os castigos que lhe impôs e que concitariam o ódio dos atenienses sobre ele: o envio dos tais catorze jovens para serem sacrificados monstruosamente. Um outro motivo da sua prostração consistia na devastação, pelo touro de Creta, trazido por Hércules para os campos da Ática, destruindo colheitas e matando os camponeses que o tentavam deter. Outros dos motivos da sua vida amargurada, tinham sido, como já sabemos, as maquinações dos sobrinhos Palântidas, que Teseu debelara, é certo, e mais as de Medeia que lhe prometia um filho e estivera prestes a torná-lo assassino de seu próprio filho Teseu, mas tudo isso eram águas passadas. O que vai suceder agora é a destruição, por Teseu, do touro de Creta e seguidamente do Minotauro, como veremos.

Egeu continua a contar, da estratégia primeira de Minos de atacar primeiro Mégara, antes de ir sobre Atenas, mas verificou que os megarenses resistiam bem. Na realidade, tal resistência devia-se a uma madeixa de cor púrpura que Niso, o rei de Mégara, tinha na cabeça, que tornava os megarenses inexpugnáveis, mas uma vez mais, o amor foi causador de morte e destruição. De facto, uma filha de Niso, de seu nome Cila, apaixonou-se por Minos e resolveu ajudá-lo: cortou a madeixa rubra da invencibilidade ao pai, enquanto este dormia, e a consequência disso foi a derrota imediata dos megarenses, o repúdio de Cila pelo pai, feito prisioneiro, e a própria morte daquela às mãos de Minos, que a repudiou por ser traidora, ainda que em favor dele. E depois da derrota de Mégara, seguiu-se o saque e a peste em Atenas, já referidos, de tal maneira que, consultado o oráculo, este informou que só restava a Egeu ir confessar a Minos a sua responsabilidade na morte do filho deste, Andrógeo, para não se destruir toda aquela zona da Grécia. E Egeu assim o fez, humilhando-se, recebendo o escarro de ódio de Minos e, além do flagelo do touro de Creta que já então destruía os campos da Ática, - comprometendo-se a enviar para Creta, anualmente, 14 jovens atenienses para serem mortos, sem explicar de que maneira. E o desolado Egeu acrescenta que merece, não só o desprezo dos atenienses, como do próprio filho, por ter sido um fraco rei.

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É claro que Teseu não desprezou o pai, em vez disso partiu para a planície de Maratona, onde se encontrava o touro de Creta, dormiu na cabana de Hécale, uma velha que o recebeu com afecto e requinte, apesar da sua pobreza, e lutou no dia seguinte valentemente com o touro de Creta, uma descrição que vale a pena reler, pelo respeito com que Teseu tratou o seu adversário, que naturalmente venceu, e o discurso ao próprio Posídon, merecedor, da atenção deste, deixando tranquilas as suas águas marítimas.

Quanto a Hécale, a quem procurou para lhe agradecer a hospitalidade, encontrou-a morta. Cremou-lhe o corpo e fundou um santuário dedicado a Zeus, no lugar da sua cabana.

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Seguem-se as revelações sobre a decisão de Teseu de partir para Creta, convencendo o pai, receoso pela sua vida, a pô-lo como substituto de um dos jovens gregos condenados, para poder ir acabar com esse flagelo imposto por Minus. Antes disso, Egeu tentara esclarecer o filho sobre o mistério em torno de Minotauro, segundo revelações que o próprio Minos lhe fizera, sem o ter esclarecido, todavia, sobre a origem de tal aberração, bem humilhante para ele, como sabemos. E assim se dá a partida do grupo, no porto de Pireu, com o povo a acorrer, mais optimista, crente na capacidade vitoriosa de Teseu depois da vitória deste sobre o touro de Creta.

O passo seguinte é o do diálogo entre Teseu e Minos, no palácio real em Cnossos, diálogo que se inicia com a tentativa do primeiro de, em nome de seu pai Egeu, estabelecer a paz com o segundo, que a recusa, no ódio contra quem levou o seu filho Andrógeo à morte, ou seja, Egeu.

Esse diálogo é escutado pela filha de Minos, Ariadne, que se apaixona por Teseu e resolve ajudá-lo, atando o fio resistente de três meadas em novelo bem apertado, para ocupar pouco volume - e em seguida, dirige-se à prisão onde estavam os catorze jovens gregos, tendo-a um guarda, que a reconheceu, deixado passar. Dirigiu-se a Teseu a quem expôs o seu plano de deixar o novelo à entrada do labirinto, cuja ponta do fio ele, Teseu, ataria à cintura, o qual se desenrolaria, e, depois de matar o Minotauro, seguiriam, ele e os companheiros, o fio de regresso. Às objecções de Teseu, grato, lembrando o risco que ela estava a correr, Ariadne respondeu que partiria com eles, de regresso a Atenas. Mas nunca se deu a conhecer a Teseu, como filha de Minos.

V - Libertação Trágica

A partida para o labirinto fez-se de manhã, e o soldado de Minos que acompanhou Teseu e o grupo dos jovens, respondeu às perguntas de Teseu, esclarecendo-o sobre a estranha origem do Minotauro, pois julgava que o grupo não escaparia à morte, e antes de se retirar, disse-lhe mesmo: -“Lembra-te de mim, no Hades. Teseu encontrou a estaca com o novelo no interior do labirinto, firmemente presa ao chão, junto do portão, e, embora intrigado sobre como pudera a jovem ir pô-lo em tal sítio, atou-o à cintura e lá partiram pelo interior do labirinto, muitas vezes gritando ao encontrarem ossos espalhados dos animais que o Minotauro desfizera. Quando finalmente se encontraram, Teseu gritou-lhe:

“- Vem cá, sua criação aberrante da natureza enlouquecida! Matei o teu pai, o touro de Creta, e agora libertarei o mundo de ti. Dar-te-ei o descanso por que anseias. O teu nascimento foi um erro, e a tua dor não deve ser menor do que aquela que causaste. Pobre monstro, inocente na tua crueldade. Também foste uma vítima. Tenho pena de ti.”

Seguiu-se a luta e a morte do Minotauro, e finalmente o regresso, Teseu enrolando o fio em novelo, os outros jovens acompanhando-o em fila. À saída, esperava-os Ariadne, que partiu com eles, a caminho do porto, prática e eficiente, tendo-lhes levado túnicas e sandálias, confiada no descuido do pai, que nunca pensaria que eles escapassem, e dormia tranquilo, sem sequer ter posto soldados de sentinela.

Teseu, contudo, tirando os agradecimentos formais a Ariadne, depressa a esqueceu, como se ela não existisse, remando no regresso, como os outros marinheiros, e parando em Naxos, uma das 200 ilhas do arquipélago das Cíclades, para descansarem. E como a rapariga, esgotada, se deixou adormecer, Teseu resolveu mesmo abandoná-la na ilha, uma acção inesperadamente repugnante, que os companheiros não criticaram, embevecidos com o seu herói.

Ao acordar, Ariadne lamenta-se pelo abandono. Mas de facto a culpa da indiferença e ingratidão de Teseu deveu-se antes à paixão que o deus Dioniso, o Baco latino, deus do vinho e do êxtase, sentira por ela. E assim a levou consigo, pelos espaços fora, num barco puxado por golfinhos.

No cabo Súnio, Egeu espreitava o horizonte, à espera do barco com as velas brancas, sinal da vitória de Teseu, mas este esquecera-se de mudar as velas negras do barco, como fora combinado, e assim Egeu se enganou e caiu ao mar que ganharia o seu nome, tal como Europa deu nome ao continente. “posta nos cotovelos”, como diria Pessoa.

Teseu acordou do seu torpor e, vendo que se esquecera de Ariadne, quis regressar à ilha onde a deixara, inconscientemente. Mas não o pôde fazer. Outras tarefas se lhe imporiam, como sucessor de seu pai.

Conclusão

Uma magnífica história, que termina com um Apêndice valioso, que retoma a Árvore Genealógica, o Significado do Mito, e entre resumos e origens, informa sobre a influência na literatura, na pintura e na escultura mundiais. Dele extraio os seguintes passos:

Significado do Mito:

O mito do Minotauro é um dos mais conhecidos de todo o acervo mitológico grego: por um lado, pela natureza aberrante do monstro híbrido, com corpo de homem e cabeça de touro, que toca em áreas muito profundas do nosso subconsciente; por outro, pela rica carga simbólica e poética da entrada de Teseu no inextricável labirinto construído por Dédalo, do qual só é possível sair com a ajuda do fio da bela Ariadne, princesa de Creta. “O fio de Ariadne” é, com efeito, uma das mais conhecidas expressões provenientes da mitologia helénica: designa o meio graças ao qual se sai de uma situação intrincada e angustiante”…

….”Na perspectiva psicanalítica é por vezes interpretado como uma representação das pulsões do subconsciente. Como soube ver Jorge Luís Borges, no conto “A casa de Astérion”, a existência é um peso doloroso para o Minotauro, e a sua morte às mãos (ou punhos) de Teseu é uma libertação.”

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