Tempo de evocar Camões para sugestão de nova
tese de Vanusa Vera-Cruz Lima. E com isso, aumentar a sua glória, pois ficará definitivamente na
berra, deixando Carlos Reis e Isabel Pires de Lima, mudos. Ou antes, tartamudos… de espanto talvez desprezador, ou talvez de
anuência segundo a perspectiva actual do politicamente correcto. Mas não havia
necessidade. Ao menos António
Carlos Cortez não se importou de carregar nas
tintas, aplicando férula esclarecedora, segundo a perspectiva literária. Quanto
à tese do vice-presidente da AFP,
Luís Filipe Redes, é lá com ele, está na ordem do dia puxar
a brasa à sua sardinha ainda que seja da petinga, nesta questão da análise
literária, visando a condenação sociopolítica, de acordo com a perspectiva
actual. É como se, em vez de rirmos aprazivelmente com a ironia dos persas Usbeck
e Ricca nas Lettres Persanes, por
exemplo, de Montesquieu, a respeito das modas e costumes franceses, resolvêssemos
condenar iradamente o desplante dos persas troçando dos franceses, que
provavelmente não apreciariam o retrato… Mas releiamos o
episódio bem racista de Fernão Veloso, para uma vez mais sorrirmos da
vivacidade e graça da narração camoniana, perdoando os adjectivos depreciativos
e outros pormenores de comportamento, segundo uma perspectiva de superioridade
cultural, que ninguém recusaria ao nosso épico:
27 -Eis, de meus companheiros rodeado,
Vejo um estranho vir, de pele preta,
Que tomaram per força, enquanto apanha
De mel os doces favos na montanha.
28-«Torvado vem na
vista, como aquele
Que não se vira nunca em tal extremo;
Nem ele entende a nós, nem nós a ele,
Selvagem mais que o bruto Polifemo.
Começo-lhe a mostrar da rica pele
De Colcos o gentil metal supremo,
A prata fina, a quente especiaria:
A nada disto o bruto se movia.
29- «Mando mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas de cristalino transparente,
Alguns soantes cascavéis pequenos,
Um barrete vermelho, cor contente;
Vi logo, por sinais e por acenos,
Que com isto se alegra grandemente.
Mando-o soltar com tudo e assi caminha
Pera a povoação, que perto tinha.
30: «Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,
Todos nus e da cor da escura treva,
Descendo pelos ásperos outeiros,
As peças vêm buscar que estoutro leva.
Domésticos já tanto e companheiros
Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernão Veloso a ir ver da terra o trato
E partir-se co eles pelo mato.
31: «É
Veloso no braço confiado
E, de arrogante, crê que vai seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.
32: «O batel de
Coelho foi depressa
Polo tomar; mas, antes que chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro, descoberto.
33: «Da espessa
nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros, sem medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida.
Mas nós, como pessoas magoadas,
A reposta lhe demos tão tecida
Que em mais que nos barretes se suspeita
Que a cor vermelha levam desta feita.
34: «E, sendo já Veloso em salvamento,
Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malícia feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem nenhum milhor conhecimento
Pudemos ter da Índia desejada
Que estarmos inda muito longe dela.
E assi tornei a dar ao vento a vela.
35:
«Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
– «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro
É milhor de decer que de subir!»
– «Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
Cultura-Ípsilon:
OPINIÃO
Os Maias, o racismo ou a visão estreita
das coisas
Eça é racista? Acusá-lo de tal é cair
numa superstição literária — dessas que hoje fazem encher o olho e dão
parangonas. Camões, por este andar, ainda há-de ser proibido nos programas por
se considerar que cada poema lírico seu é um piropo machista e ofende a
dignidade da mulher.
ANTÓNIO CARLOS
CORTEZ
PÚBLICO, 9 de
Março de 2021
Lido o artigo vindo a lume no Público (de 7 de
Março), dedicado à questão do racismo que, segundo a investigadora
cabo-verdiana, Vanusa Vera-Cruz
Lima, pode ler-se em diversas passagens de Os Maias, de Eça de Queirós, impõe-se-nos
denunciar o erro em que incorrem as interpretações deste tipo, as quais têm
como única origem os novos preconceitos que a ideologia oca deste nosso tempo
produz.
Preconceitos que, ao fim e ao cabo, mais não são do que moda,
modismo, superficialidade mascarada de pretensa lição democrática. Efeitos do “politicamente correcto”, dir-se-á, mas
que lesam profundamente a compreensão (ou a possibilidade de se compreender) a
cultura de outros períodos.
Com
efeito, é dum total reducionismo interpretativo ler-se este ou qualquer outro
romance de Eça (ou de qualquer outro autor, seja de que latitude literária for)
à luz das novíssimas tendências literárias,
contaminadas por aquilo que são as guerras do pós-estruturalismo e por aquilo
que, segundo Aguiar e Silva, é a indeterminação própria das “derivas e
errâncias de teorias literárias pós-modernas que confundiram o anunciado ‘fim
das grandes narrativas monistas’ com a anarquia cognitiva” (cf Colheita de Inverno – ensaios de teoria e
crítica literárias, Almedina, p.
22).
A
literatura sofre, hoje, na sequência do que em 1987 sucedeu com Paul de
Man (a figura de proa da escola de Yale
teria colaborado num jornal anti-semita belga, entre 1940 e 1942), com o
aproveitamento dos adversários da teoria em literatura. Observando o
declínio advindo do desconstrucionismo, logo trouxeram para os estudos
literários os “ismos” que, actualmente, secundarizam o que deveria estudar-se
sem pré-juízos: precisamente o texto literário. Do pós-colonialismo aos estudos de género, do
feminismo aos estudos culturais, até outras áreas em que a literatura
interessa só para se fazer doutrina, já cá faltava quem viesse a acusar
um escritor português de racismo, ou de outro “ismo” qualquer. Calhou a
sorte ao autor de Os Maias e eis que Eça é acusado de ter escrito uma obra — a
sua obra-prima, note-se — onde há trechos racistas.
Tal como é absurdo defender-se a
destruição de monumentos arquitectónicos por estes terem sido construídos na
época da expansão portuguesa,
e é igualmente absurdo considerar
Vieira um adepto da escravatura,
também absurdo é defender-se que Os Maias, como refere a doutoranda Vanusa
Vera-Cruz, devem ser acompanhados de esclarecimentos pedagógicos relativamente
a essas passagens. Diz a investigadora
em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros que “as passagens raciais não
retiram nem adicionam o valor [sic] que esta obra representa na literatura
portuguesa”. Assim, declara, tais esclarecimentos pedagógicos, poderiam
criar “oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”. Mas, se
essas passagens não retiram valor à obra, como a própria admite, pergunto: que
valor acrescido teríamos, então, em debater o eventual racismo de uma passagem
daquele romance que, apesar de racista, não retira nem adiciona valor à obra? Se, segundo se lê, “é importante separarmos o
romance [...] das passagens racistas” que nele se encontram, qual a lógica do
seu argumento? Para que serviriam, no limite, tais esclarecimentos, senão
para afastar os leitores de Os Maias da tese central do romance ("Carlos
falhou na vida não por causa, mas apesar da educação”, dixit Jacinto do Prado
Coelho). Não seria absolutamente irresponsável dar-se a ler Eça, inquinando
a sua recepção justamente por se vincar uma dimensão — a racista — lateral à
tese da obra, ou mesmo sobreinterpretativa? Mais: que
oportunidade de ensino culturalmente responsável existe quando, em vez da
exegese estilístico-ideológica, caímos no comentário a questões que, na
verdade, têm mais que ver com minudências biográficas do que com o romanesco? Importa, de facto, para ler Os Maias saber
se seria Eça racista? Se seria machista ou homofóbico?
Se
Vanusa Vera-Cruz leu as teses de Jacinto do Prado Coelho, os ensaios de Carlos
Reis, o exemplar, e tão pouco citado, ensaio de José de Almeida Moura, Os
Maias: ensaio alegórico sobre a decadência da nação (1984); se conhece os
perigos das “superstições literárias” (Paul Valery) e se, verdadeiramente, lhe
interessa dar a ler, de forma responsável, esta obra de Eça, então deveria
reconhecer o óbvio, a saber: que
o estilo queirosiano (leia a tese de licenciatura de Vergílio Ferreira sobre
humor em Eça de Queirós, tese de 1943 — é a basezinha!) se estriba no domínio
da ironia. Portanto, nas passagens racistas que
refere (seja o modelo de beleza que Maria Eduarda representa: louro, pele
ebúrnea, seja a passagem em que Ega diz que os negros querem agir como os
brancos civilizados (Cap. XII)) a leitora Vanusa deveria ter em conta
que o processo da ironia traduz uma visão do romancista que é, no mínimo,
refractária ao racismo de que se pretende acusar o autor de Os Maias.
Como escreveu Vergílio Ferreira: “Carlos da Maia é um humorista, jogando muitas
vezes com tipos subalternos como Dâmaso. Mas, perguntar-se-á, não é ridículo o
idealismo de Carlos da Maia que nega, com o seu último acto, a teoria que ao
mesmo tempo formula?” (p.21). Carlos e Ega são dândis e
diletantes, só pelo prisma da ironia se compreendem: Carlos, um médico que,
minado pelo “romantismo torpe”, transforma a vida em sucessão de paixões
nefastas; Ega, um histriónico realista que explora a mãe e parasita Carlos e
jamais realiza as suas Memórias dum Átomo. O
estratagema de Eça em colocar as suas personagens à mercê do ridículo daquilo
mesmo que expõem aplica-se especialmente ao Ega, personagem contraditória, que
exprime uma visão do mundo ‘realista’, quando é, profundamente, um
desequilibrado romântico. Lembre-se Ega vendo-se ao espelho, mascarado
de Mesfistófeles, depois de expulso da casa dos Cohen. Esquecendo, por
momentos, o seu artificial sentimento de indignação, mira-se, vaidosamente,
exultando com a originalidade do seu disfarce. O trecho de Ega sobre os
desconfortos da vida não é senão o narrador a mostrar-nos o absurdo da visão de
mundo dessa personagem. Não, os desconfortos da vida não se devem à libertação
dos negros. Isso é o que Ega tem de dizer porque é ele a caricatura do
português que pensa assim e que Eça vitupera, sarcasticamente, como
sarcasticamente destrói, pelo absurdo, Dâmaso, ou a mulher-demónio Maria
Monforte.
Numa
das passagens que Vanusa indica, a do capítulo IV, “sobre os negros de São Tomé
se julgarem civilizados”, não se perca de vista que a crítica não tem que ver
com os negros de São Tomé. A crítica recai nos portugueses que, na Europa,
se julgam civilizados por imitarem os modelos inglês ou francês — é a
inautenticidade, o provincianismo que Eça caustica. Não esqueça já agora
outro dado fundamental: Os Maias são uma biópsia (leia Cleonice
Berardinelli) ao país.
Romance sobre um problema moral: o incesto que Carlos, responsável pela
morte de Afonso, comete conscientemente. Acusaríamos Eça de considerar
todos os portugueses capazes de cometer incesto? Carlos (nome que
simbolicamente significa ‘sedutor’) nem sequer ama Maria Eduarda; obedeceu
apenas ao instinto ("Educar o animal”, eis o que Afonso defendeu para o
seu neto). Vítima dos factores de Taine (o meio, a raça, o momento),
Carlos não pode escapar ao veredicto de Ega: ele é um demónio — não pode amar.
Todo o romance deriva da análise de Eça sobre “o meio lisboeta, portuguesmente
ocioso” e o “temperamento mole e apaixonado”, condicionantes dos
comportamentos, valores e ideias que a galeria de personagens apresenta.
Vítimas
da raça, da hereditariedade, quer Carlos, quer Ega, quer qualquer outra persona
deste romance, são caricaturas, cara Vanusa. São prosopopeias — figuras da
escrita. Oitocentista, filho dum século positivista, leitor de Balzac e de
Zola, Eça é racista? Acusá-lo de tal é cair numa superstição literária — dessas
que hoje fazem encher o olho e dão parangonas. Camões, por este andar, ainda há-de ser
proibido nos programas por se considerar que cada poema lírico seu é um piropo
machista e ofende a dignidade da mulher. Vai Victis!!
Poeta, crítico
literário e professor
TÓPICOS
CULTURA-ÍPSILON OPINIÃO LITERATURA EÇA DE QUEIRÓS OS MAIAS
RACISMO CAMÕES
COMENTÁRIOS:
AARR INICIANTE: Muito
bem! Talvez o programa de doutoramento na universidade dos Estados Unidos
frequentado pela autora que despoletou a discussão, precise de um
"upgrade", de elevar um pouco o seu nível. Por outro lado, não se
percebe bem a reacção da Associação dos Professores de Português ... Leste de
Java INICIANTE: Depois da onda vem a ressaca. Quanto mais absurda for a
onda mais forte será a ressaca. Esperemos que ele vem aí miguel..velloso.895290 INICIANTE: Bravo. Ceratioidei MODERADOR: O politicamente correcto anda pelas ruas da amargura. A
língua portuguesa é de facto dificílima. Exige estudo, tempo, contacto,
começando pela exigência de educação escolar. As palavras têm significado. Os
conceitos também. O politicamente correcto pratica-se desde sempre em contextos
familiar, de vizinhança e profissional. Basicamente consiste num conjunto de
regras que facilitam a comunicação, seja entre contraentes ou não. Não se tira
um lolly a uma criança, não se põem os pés em cima da mesa e não se chama
racista ao Eça ou ao vizinho da esquina só por causa da agenda. Defensora desde
sempre do Humanismo, da liberdade e da democracia, sendo profundamente contra
qualquer forma de racismo e discriminação, não me identifico de todo com
conclusões de investigações (?) como a da Vanusa. mgmacedo48.909164 INICIANTE: Lição magistral para disparateira colossal. É urgente
reler "Os Maias"... sem notas pedagógicas nem enquadramentos pseudo
anti-racistas. O que mais me indigna nem é a posição assumida pela dita
investigadora. É-o, sim, a reacção de colagem acrítica expressa pela
Associação dos Professores de Português. Lamentável!!! Alexandre Pinto-Fernandes EXPERIENTE: Tudo tão simples e bem explicado. Eça, o maravilhoso
Eça de que temos mil e uma razões para nos orgulharmos não pode ser vítima de
oportunismos ignorantes. Só lamento que quem não tem “literatura” venha tentar
destruir a literatura dos outros.
Agostinho Pinto INICIANTE: Será que uma Sra. investigadora, que deve ter
encontrado uma forma de aparecer e dar nas vistas, merece uma tão longa
exposição como a do Sr. António Carlos Cortez? Sa1004065 INICIANTE: Era da caça à
cultura portuguesa! Nem me lembrava de tais passagens! Microscopicamente
caçadas e macroscopicamente deturpadas! Joao MODERADOR: Tal e qual. SeuMatois INICIANTE: Uma lição de
mansplaining. Podia explicar sem assumir a ignorância da leitora Vanusa.
Enfim... bino.tatoo1970.1013155 INICIANTE: A ignorância da
Vanusa é patenteada por si própria no seu formidável femsplaining. cidadania 123 EXPERIENTE: A questão que
para mim é relevante e preocupante, é a razão por que se dá voz a qualquer um
que consegue ver racismo, xenofobia, machismo, homofobia, no passado. Mas qual
a novidade em perceber, que no passado, fomos uma sociedade racista, machista,
xenófoba, homofóbica, como todas foram? Anjo Caído MODERADOR: Uma delícia de se ler. É refrescante ver
um tema que se presta a divagações opinativas ser escalpelizado de modo tão
científico. Obrigada!
NOTA DA INTERNET:
Notícia sobre o texto “racista” de Vanusa Vera-Cruz
Lima
INVESTIGADORA DIZ QUE PASSAGENS
RACISTAS EM "OS MAIAS" JUSTIFICAM NOTA PEDAGÓGICA
Associação de Professores de Português
defende obra de Eça de Queirós, o seu contexto narrativo e que não devemos
"projectar juízos de valor formados nas vivências do nosso tempo sobre as
acções dos homens do passado”
2021-03-07
Uma investigadora caboverdiana,
professora de Português nos Estados Unidos, identificou em “Os Maias”, de Eça
de Queirós, várias passagens racistas que na sua opinião não retiram valor à
obra literária, mas justificam a inclusão de “um comentário pedagógico”, para
que a questão racial não seja ignorada.
Mas a Associação de Professores de Português (APF) considera que a leitura de “Os Maias” implica
a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens,
assim como inserir esse discurso no contexto histórico.
A propósito da análise da investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima sobre as
passagens racistas na obra deste autor de leitura obrigatória no ensino
secundário português, o vice-presidente
da AFP, Luís Filipe Redes, disse que não é precisa “uma análise muito
profunda para compreender os preconceitos raciais presentes em 'Os Maias' e em
outros textos de Eça”.
Apesar do seu realismo, o autor tem as
limitações de um homem do século XIX. Para não termos visões preconcebidas
relativamente aos outros, temos de interagir com eles, coisa que o Eça não terá
tido oportunidade de fazer, não obstante a sua passagem por Cuba”, adiantou o
professor de Português.
O docente sublinhou que “a perspectiva racista era dominante nos estudos
antropológicos desse tempo”. Eça era contra o tráfico de escravos e isso também se
lê em 'Os Maias'. A alternativa ao tráfico de
escravos era o desenvolvimento
de África que passava pela ocupação efectiva num movimento que se chamava
'colonialismo'. É o que vemos no trajecto
da personagem Gonçalo, da 'Ilustre Casa de Ramires'”, observou.
Por isso, Luís Filipe Redes considera que a leitura desta obra “implica a análise dos preconceitos raciais do
discurso narrativo e das personagens e inserir esse discurso no contexto
histórico”.
O que não podemos fazer é
projectar juízos de valor formados nas vivências do
nosso tempo sobre as acções dos homens do passado”, sublinhou.
"CELEBRAR A BRANQUITUDE"
Professora de Português na Universidade
de Massachusetts Dartmouth, nos Estados Unidos, onde está a tirar o
doutoramento em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros, Vanusa Vera-Cruz Lima
identificou em “Os Maias” várias passagens racistas.
Apesar
de considerar que as mesmas não retiram valor à obra literária, defende que
justificam a inclusão de “um comentário pedagógico”,
para que a questão racial não seja ignorada.
A inferioridade dos africanos e o desdenho pelo
negro ou qualquer aspecto relacionado à raça negra é presente na
linguagem do narrador e reforçada através de acções e pensamentos de personagens e da
idealização da branquitude em crianças, homens e principalmente mulheres”, disse
Vanusa Vera-Cruz Lima, em entrevista à agência Lusa.
Para Vanusa Vera-Cruz Lima, o fim da
leitura de “Os Maias” "não é uma solução”
e nem esse o propósito da análise que fez à obra, mas sim a consciencialização
das pessoas em relação aos “significados que até agora
não têm sido observados, nem discutidos, nos materiais escolares que acompanham
a leitura da obra”.
Ao celebrar extravagantemente a branquitude, o
romance envia uma mensagem de que a negritude não é algo de que se orgulhar e,
portanto, como o preto e o branco estão sempre em oposição, a glorificação de
um, rebaixa o outro”, apontou.
Uma das passagens que a investigadora
usou para exemplificar a sua afirmação consta do capítulo XVI da obra, escrita
em 1880: “Ela [Maria Eduarda], por seu lado, loira,
alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor de uma civilização superior,
faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas.”
Para a doutoranda, “todas as personagens do romance são um produto
do ambiente em que o branco é considerado superior em relação ao negro”,
embora estas possam “ser divididas em camadas com diferentes intensidade,
consciência e intenção”.
João da Ega é o personagem em que o racismo
mais se evidencia. De acordo com Ega, da mesma forma que Portugal aspira ser
'civilizado', os negros tentam agir como brancos fantasiando e vestindo a
jaqueta do seu mestre”, ilustrou.
REPENSAR O ENSINO DA OBRA
Segundo a investigadora e docente, “há dois excertos em que João da Ega evidencia
essas ideologias de forma bem intencional, quando descreve, em eventos sociais,
a sua posição em relação à escravatura, defendendo-a para garantir os confortos
da vida, e numa reflexão com Carlos da Maia, no final do romance, em que ele
revela uma forte aversão ao facto de os negros estarem a fazer um esforço
enorme usando certos acessórios para serem considerados imensamente
'civilizados' e 'imensamente brancos'”.
Vanusa Vera-Cruz Lima defende que o
propósito da sua análise é contribuir para “se
repensar a forma como a obra é ensinada nas escolas, contribuindo para uma
reflexão e expansão racial”.
Este romance é uma ferramenta ideal para criar
oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos
atender às necessidades de todos os alunos. É um material para explorarmos
valores e comportamentos relacionados com a raça que existiam na época, mas que
continuam a se manifestar em vários aspetos da sociedade atual”,
argumentou.
Carlos Reis e Isabel Pires de
Lima, especialistas em estudos queirosianos, optaram por não comentar as
conclusões de Vanusa Vera-Cruz Lima, depois de questionados pela Lusa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário