…no deslumbramento do que nos é
oferecido sem grande esforço, carregando em botões, comunicando num ápice a
longas distâncias, desde pequeninos, aprendendo a manipular com os dedos, para
obter de imediato resultados nunca antes imaginados, para nosso conforto visual
ou auditivo, e até sentimental. Dificilmente a leitura, exigindo concentração e
mais tempo de apreensão, poderá impor-se, no imediatismo do que nos é oferecido
quase automaticamente, hoje, como distracção ou satisfação de interesses
práticos ou também mentais... Mas a descoberta gradual da leitura, que se tinha
dantes, com a dificuldade da satisfação desses interesses espirituais, que iam
progredindo com a idade (e que é aliás, de todos os tempos), não sei se se
imporá hoje, na fascinação de tantas outras manipulações, por vezes bem
estapafúrdias, e a criar até, desequilíbrios psíquicos. Nunca faltarão as
excepções, é certo, daqueles que fugindo à regra, alcançam o saber e a
criatividade através da muita leitura, contribuindo para a felicidade sua e
alheia. E que nunca faltem as livrarias…
.OPINIÃO Que prazer, ter um livro para ler e gostar de o fazer
O que nos conduz a um livro? A
curiosidade. Já o amor à leitura é obra dos tempos. Vamos às livrarias?
PÚBLICO, 25 de
Março de 2021
Agora
que as livrarias reabriram, e quando muitos já terão percebido o disparate que
foi tê-las condenado à reclusão (relegando o livro para a lista das coisas
não-essenciais), discorrer sobre a leitura, e os seus benefícios, voltou a ser
matéria corrente. Nem de propósito, nos lançamentos mais recentes encontra-se
um livro intitulado Vamos Ler. Um Cânone para o Leitor Relutante, de Eugénio Lisboa, incluído
na colecção Livros Vermelhos da Guerra & Paz. E se, tratando-se de
propostas para conquistar leitores relutantes, haverá quem discuta títulos ou
autores sugeridos ou omitidos, há neste livro algo que transcende a “lista” dos
50 livros e 35 autores escolhidos: o processo que transforma alguém em
leitor. Como se
começa a ter gosto pela leitura? E como se transforma esse gosto em paixão, em
saber, em conhecimento? Eugénio
Lisboa, ensaísta e
crítico literário que nos seus activos e profícuos 90 anos já leu muito e em
vários idiomas, começa o livro precisamente por esses seus primeiros passos. No
liceu, em Moçambique, na antiga Lourenço Marques (hoje Maputo) onde nasceu,
tinha ele 11 ou 12 anos. “Ouvia os meus colegas mais abastados falar, com
muito entusiasmo, de livros de Júlio Verne, Emílio Salgari, do famoso detective
Sherlock Holmes, de Robert Louis Stevenson – A Ilha do Tesouro – e
outras coisas neste género. O que eles me contavam deixava-me literalmente com
água na boca.”
Não
havia, porém, em casa, folga financeira para livros que não os escolares
(obrigatórios) e os que lhe ofereciam “não pertenciam, nem de longe, àquela
categoria apetecida”. Resultado: “Sentia, em mim, uma terrível e insatisfeita
fome de leitura”. Isto numa casa sem telefone nem telefonia e muitos menos
televisão ou computadores, que ainda nem existiam para uso doméstico
(estava-nos nos anos 1940). Até que, um dia, ele descobriu um baú abandonado
na garagem da casa, “entre uma imensa tralha de coisas mais ou menos sem
préstimo”. E dentro dele, além de “montanhas de selos”, encontrou “dezenas e
dezenas de números” de uma revista brasileira intitulada precisamente Vamos
Ler! Eram exemplares volumosos, com reportagens, contos, verbetes
sobre escritores do passado e do presente da época, novelas policiais e até
peças de teatro. E assim se iniciou nas ansiadas leituras. “Lendo,
inclusivamente, coisas, em princípio, muito acima da minha idade”. Chegando
assim a Roger Martin du Gard, a Machado de Assis, abrindo outras portas: “O meu
apetite andava de olho em tudo quanto era livro que me tivesse suscitado
curiosidade”. Como que a navegar por hipertexto, mas sem qualquer ecrã.
E lá foi chegando, aos poucos, a múltiplos autores, aos clássicos, Júlio Dinis,
Herculano, Garrett, Camilo, numa lista cada vez mais rica. “Já então, eu não
lia, eu vivia dentro dos livros”.
Só
a experiência de Eugénio Lisboa na iniciação literária, com muitas mais
peripécias do que aquelas que aqui se sintetizam, valerá a leitura do livro.
Curiosamente, tal descrição traz-nos à memória uma outra, de um outro autor, Artur Anselmo,
que já presidiu à Academia das Ciências de Lisboa, num livro intitulado Ler
é Maçada, Estudar é Nada (Guimarães Editores, 2008). Citando o título
um célebre poema de Fernando Pessoa (Liberdade, também glosado no título desta
crónica), o livro procura convencer-nos do contrário: “Que ler não é maçada
nenhuma, antes um prazer divino, e estudar uma actividade reconfortante para o
espírito e para o corpo.” No interior, há um texto onde Artur Anselmo nos
conta também a sua iniciação à leitura, que haveria de fazer dele um bibliófilo
e um estudioso do livro (História do Livro e Filologia é mais uma das
suas obras, datada de 2015). O cenário era outro: um liceu do Porto, nos
anos 1950. Sem poder comprar novidades literárias, nas livrarias que à tarde
frequentava, “esvaziava o modesto porta-moedas nos alfarrabistas” (“o que
significava deixar de lanchar e voltar a pé à casa de meu tio, à Ramada Alta,
onde me hospedava”). E assim ia comprando livros. Também em papelarias e
mercearias, onde um dia, “na prateleira mais alta da loja”, teve “a surpresa”
de encontrar “alguns livros de autores contemporâneos”: “Entre os quais José
Régio, de quem viria a ser leitor fiel”. O mesmo Régio de cuja obra Eugénio
Lisboa é hoje o maior especialista.
O que nos conduz a um livro? A
curiosidade. Já o amor à leitura, a transformar-se depois em paixão, é obra dos
tempos. Perdem, e muito, os que o não ganham. Vamos às livrarias?
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