quarta-feira, 10 de março de 2021

Três textos por atacado


De João Miguel Tavares. Como não tive acesso aos comentários – às centenas – coloquei os seus três últimos textos, que mais uma vez são prova de um espírito vivo e ladino, que não se acobarda ante o preconceito do politicamente correcto, especialmente seguido hoje, pela tal sociedade “sonâmbula”, como ele lhe chama, ou acomodada, ou acobardada ou acocorada… - sobre os temas na baila ou na berra: o já citado, do sonambulismo social, o do confinamento desumanamente imposto, o do racismo vistosamente exposto…

I – OPINIÃO: Portugal não está amordaçado. Está sonâmbulo, o que é pior

Em vez de amordaçar, António Costa anestesia, e com o país sonâmbulo vai fazendo tudo o que lhe apetece com um sorriso nos lábios. Foi isso que José Sócrates não percebeu. Prepotência com falinhas mansas é muito mais eficaz do que brutalidade.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 9 de Março de 2021

A expressão “democracia amordaçada” convém ser usada com cautela, que é para não nos faltar vocabulário quando alguém estiver efectivamente a tentar amordaçar a democracia, como aconteceu com José Sócrates entre 2005 e 2010. É importante saber distinguir o método socrático do método costista, e nesse sentido Cavaco Silva esteve mal na sua intervenção durante um encontro de formação de mulheres sociais-democratas, como já assinalou Manuel Carvalho em editorial.

Os exemplos que Cavaco deuas não-reconduções do presidente do Tribunal de Contas e de Joana Marques Vidal; a manipulação do procurador-geral europeu; a ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal; os ataques ao Conselho de Finanças Públicas e à UTAOsão exemplos bons, verdadeiros e preocupantes. Mas não são uma mordaça. Amordaçar significa não deixar falar. Ora, em Portugal toda a gente pode dizer o que bem entende, e, que se saiba, a comunicação social não está a ser perseguida. O método costista é outro: em vez de amordaçar, anestesia, e com o país sonâmbulo vai fazendo tudo o que lhe apetece com um sorriso nos lábios. É um método excelente (para o próprio), porque Portugal nem sequer estrebucha, como se vê pelas sondagens.

Foi isso que José Sócrates não percebeu. Prepotência com falinhas mansas é muito mais eficaz do que brutalidade. No governo de António Costa ninguém é afastado dos seus cargos – são as pessoas que se demitem, os mandatos que chegam ao fim, ou, então, que nem sequer se iniciam. Depois, é só substituir a pessoa inconveniente por um boy ou, pelo menos, por alguém que saiba baixar as orelhas. Os exemplos são inúmeros, e nalguns casos nem damos por eles. Aqui vai um: já ouviram falar do que se está a passar com o director da Escola Superior de Dança? O PÚBLICO dedicou ao caso dois artigos, um em Novembro, outro em Janeiro.

A história é esta: há oito meses, Samuel Rego ganhou as eleições para director da Escola Superior de Dança, com voto unânime de docentes, funcionários e estudantes. Infelizmente, Samuel Rego tem dois graves problemas no currículo. Problema 1: não é funcionário público. Problema 2: foi director-geral das Artes no tempo de Passos Coelho e é militante do PSD. Resultado: embora tenha vencido as eleições em Julho de 2020, está há oito meses à espera de tomar posse, sem ganhar um tostão.

A razão técnica para esta obscenidade deve-se ao problema 1. Há uma lei de 2007 que permite que instituições do ensino superior tenham directores externos à carreira académica, mas a lei nunca foi regulamentada. O Politécnico de Lisboa e o Ministério da Ciência dizem não saber que tipo de vínculo deve ter Samuel Rego, nem que salário deve auferir. Logo, nem vínculo, nem salário. Na notícia do PÚBLICO de Novembro os serviços jurídicos do ministério encontravam-se a “identificar a solução jurídica adequada a resolver a omissão legal”. Dois meses e meio depois, após uma greve de alunos a pedir a indigitação do director, os mesmos serviços encontravam-se a “clarificar o regime legal que regula esta matéria”.

Como é óbvio, o maior problema de Samuel Rego não é o 1, mas o 2. E a melhor forma de resolver o problema 2 é arrastar o problema 1 até o saldo bancário obrigar o senhor do PSD a ir ganhar a sua vida para outro lado. Tecnicamente, ninguém o demitirá – ele é que irá desistir de tomar posse. Quando podemos estimular uma pessoa a ir-se embora pelo seu próprio pé, todas as mordaças se tornam desnecessárias.

 Jornalista

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II – OPINIÃO: É para ficarmos fechados em casa até haver zero casos?

É só a mim que me parece que há actualmente um desequilíbrio brutal entre os números da pandemia e o esforço que está a ser exigido ao país?

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 6 de Março de 2021

O meu problema é com a lógica. Chamem-me esquisito, mas eu gosto que as coisas tenham lógica e sejam compreensíveis para pessoas de inteligência moderada, como é o meu caso. Ora, continuo a ter muitas dificuldades em perceber quais são os fundamentos que presidem aos fechos e às aberturas do país, aos confinamentos e aos desconfinamentos, fora daquilo que é uma espécie de emotividade geral – chamemos-lhe o “sentimentalismo pandémico”, que é quando as pessoas acham que já existem casos a mais, ou quando ainda está fresca na memória a fila de ambulâncias à porta dos hospitais.

Gostava muito que o indicador que decide o grau de abertura ou fecho do país fosse o Rt – o rácio de transmissibilidade do vírus –, e não o Rus – o rácio do último susto –, pela simples razão de que o Rus é mal calibrado por definição: ele conduz invariavelmente a atrasar o fecho do país quando esse fecho é necessário há muito (aconteceu em Janeiro); e tende a manter o país fechado quando tal fecho é desnecessário há muito (aconteceu em Abril e Maio do ano passado, e está a acontecer de novo em Março deste ano).

Nós estamos muito longe de saber tudo aquilo que precisamos sobre a covid-19, mas em Março de 2021 já sabemos muitíssimo mais do que em Março de 2020. Em Portugal, não se nota lá muito a diferença. O grande desafio está em conseguir atingir o máximo equilíbrio entre o número de infecções e a abertura da sociedade, ou seja, em conseguir ter, a cada momento, o país tão aberto quanto possível mantendo o número de infecções num patamar que possa ser gerido pelo SNS. Obviamente, isto é muito difícil de conseguir, mas é para isso que toda a gente deveria estar a trabalhar.

Com excepção do número de doentes em cuidados intensivos, tudo aquilo que foi pedido por Marcelo foi mais do que superado, em menos de um mês

A média de infecções na última semana está nos 800 casos diários, número que não se via desde o início de Outubro. O número de mortos diários caiu de quase 300 para 30 em pouco mais de um mês. Os internados caíram de quase 7000 para 1700, dos quais 400 estão em cuidados intensivos. O Rt já esteve abaixo de 0,7. Na comunicação que o Presidente da República fez ao país a 11 de Fevereiro, foram estabelecidas as seguintes metas: “Temos, até à Páscoa, de descer os infectados para menos de 2000, para que os internamentos e os cuidados intensivos desçam dos mais de 5000 e mais de 800, agora, para perto de um quarto desses valores. E descer, também, a propagação do vírus para números europeus.Com excepção do número de doentes em cuidados intensivos, tudo aquilo que foi pedido por Marcelo foi mais do que superado, em menos de um mês.

Qual é, então, a razão lógica para, ao menos as escolas, não estarem já abertas? Foi porque toda a gente meteu na cabeça que isto era para durar até à Páscoa? É só a mim que me parece que há actualmente um desequilíbrio brutal entre os números da pandemia e o esforço que está a ser exigido ao país? Dir-me-ão: mal se reabra os números vão começar a subir. Claro que vão. É assim que funciona. Aliás, o Rt já terá começado a subir, mesmo em confinamento, tal como já teria começado a descer, mesmo antes do fecho das escolas – porque ele depende da percepção do perigo por parte de dez milhões de portugueses.

Assim que as pessoas se começam a sentir mais seguras, saem de casa. Quando se começam a sentir mais inseguras, voltam para casa. Convinha era que as análises de quem nos governa fossem um pouco mais sofisticadas do que isso, e que o sentimentalismo pandémico não fosse a grande linha estratégica nacional no combate à covid-19.

Jornalista

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III – OPINIÃO: A demolição ideológica do pensamento científico

Joana Cabral tem todo o direito de defender que “o racismo não existe de negros para brancos”. Mas chamar ignorante a quem não partilha da sua visão não é só ridículo – é uma ofensa a quem faz ciência a sério.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 2 de Março de 2021

Joana Cabral é professora de Psicologia na Universidade Lusófona do Porto e dirigente da SOS Racismo. Há dias, escrevi em tom crítico sobre uma intervenção sua na TVI24, onde defendeu que “o racismo não existe de negros para brancos”, mas apenas de brancos para negros, com o argumento de que o racismo é um “sistema político e económico” e não uma “atitude interpessoal”. Entretanto, Joana Cabral respondeu às minhas críticas num artigo intitulado “De branca para brancos: rigor e justiça. Regresso ao tema por causa de um detalhe que considero demasiado importante para ser ignorado, e que já tinha denunciado no meu artigo original: a promoção, por parte de uma professora universitária, de uma confusão inaceitável entre ideologia e ciência. Invocar pergaminhos académicos para credibilizar a sua posição nesta matéria é uma fraude intelectual.

No referido debate na TVI, Joana Cabral afirmou que iria discutir a questão do racismo “do ponto de vista científico”. Segundo ela, “todos somos um bocadinho ignorantes em relação a este tema”, e por isso devemos “aproveitar estas oportunidades para aprendermos qualquer coisa”. Poder-se-ia dizer que este tom maternalista teria surgido a despropósito no calor do debate. Mas não: ele volta a ser utilizado no artigo do PÚBLICO. Joana Cabral invoca o “entendimento científico” sobre a matéria e declara que seria “de esperar que intelectuais e responsáveis políticos não se opusessem à informação que permite superar esta ignorância”.

Joana Cabral não se limita a defender uma tese – ela classifica como mal informados aqueles que não a partilham. E que tese é essa? É a tese de que uma coisa são “os fenómenos de preconceito e discriminação étnico-racial”, que Joana Cabral reconhece serem “universais e praticados também de não-brancos para brancos” (ufa); outra coisa é o “racismo”, que é um “projecto político e económico”. E este “racismo”, para existir, necessita de uma série de condições que são elencadas no seu artigo, entre as quais se inclui a “escala transatlântica”, as campanhas de “propaganda científica” ou o cultivo de “imaginários de inferiorização” que tenham durado até ao século XX. Isso – e só isso – é o racismo, e quem achar que o racismo pode ser outra coisa é um negacionista da ciência.

Vamos cá ver: assim é fácil. Se eu definir “mamífero” como um animal que tem a cauda em espiral, o nariz parecido com uma tomada eléctrica e um certo gosto por chafurdar na lama, é óbvio que a partir daí só os porcos são mamíferos. Do mesmo modo, se para haver racismo é necessário escala atlântica, frenologia e apartheid, então não há dúvida: nem chineses, nem indianos, nem africanos têm oportunidade de ser racistas, mesmo que queiram muito.

Só que há um outro branco, bem mais considerado do que eu, que embirra com esta tese de Joana Cabral: chama-se Karl Popper, e propôs um princípio, hoje universalmente aceite por quem leva a sério o método científico, chamado da refutabilidade (ou da falseabilidade), que de forma muito simples diz isto: uma teoria que não oferece a possibilidade de ser refutada não pode ser considerada científica. É mito. É ideologia. É pseudociência.

A história do racismo exclusivamente branco não é outra coisa senão isso. Joana Cabral tem todo o direito a defendê-la, como eu tenho o direito de defender a existência do Eldorado. Mas chamar ignorante a quem não partilha da sua visão não é só ridículo – é uma ofensa a quem faz ciência a sério.           Jornalista

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