De João Miguel Tavares. Como não
tive acesso aos comentários – às centenas – coloquei os seus três últimos
textos, que mais uma vez são prova de um espírito vivo e ladino, que não se
acobarda ante o preconceito do politicamente correcto, especialmente seguido hoje,
pela tal sociedade “sonâmbula”, como ele lhe chama, ou acomodada, ou acobardada
ou acocorada… - sobre os temas na baila ou na berra: o já citado, do
sonambulismo social, o do confinamento desumanamente imposto, o do racismo
vistosamente exposto…
I – OPINIÃO: Portugal não
está amordaçado. Está sonâmbulo, o que é pior
Em vez de amordaçar, António Costa
anestesia, e com o país sonâmbulo vai fazendo tudo o que lhe apetece com um
sorriso nos lábios. Foi isso que José Sócrates não percebeu. Prepotência com
falinhas mansas é muito mais eficaz do que brutalidade.
PÚBLICO, 9 de Março de 2021
A
expressão “democracia amordaçada” convém ser usada com cautela, que é para não
nos faltar vocabulário quando alguém estiver efectivamente a tentar amordaçar
a democracia, como aconteceu com José Sócrates
entre 2005 e 2010. É importante saber distinguir o método socrático do
método costista, e nesse sentido Cavaco Silva esteve mal na sua intervenção
durante um encontro de formação de mulheres sociais-democratas, como
já assinalou Manuel Carvalho em editorial.
Os
exemplos que Cavaco deu – as não-reconduções do presidente do
Tribunal de Contas e de Joana Marques Vidal; a manipulação do procurador-geral
europeu; a ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal; os ataques ao
Conselho de Finanças Públicas e à UTAO – são exemplos bons,
verdadeiros e preocupantes. Mas não
são uma mordaça. Amordaçar significa não deixar falar. Ora, em Portugal toda a
gente pode dizer o que bem entende, e, que se saiba, a comunicação social não
está a ser perseguida. O método costista é outro: em vez de
amordaçar, anestesia, e com o país sonâmbulo vai fazendo tudo o que lhe apetece
com um sorriso nos lábios. É um método excelente (para o próprio), porque
Portugal nem sequer estrebucha, como se vê pelas sondagens.
Foi
isso que José Sócrates não
percebeu. Prepotência com falinhas mansas é muito mais eficaz do que
brutalidade. No
governo de António Costa ninguém é afastado dos seus cargos – são as pessoas
que se demitem, os mandatos que chegam ao fim, ou, então, que nem sequer se
iniciam. Depois, é só substituir a pessoa inconveniente por um boy ou, pelo
menos, por alguém que saiba baixar as orelhas. Os
exemplos são inúmeros, e nalguns casos nem damos por eles. Aqui vai um: já ouviram falar do que se está a
passar com o director da Escola Superior de Dança? O PÚBLICO dedicou ao caso
dois artigos, um em
Novembro, outro em
Janeiro.
A história é esta: há oito meses, Samuel
Rego ganhou as eleições para director da Escola Superior de
Dança, com voto unânime de docentes, funcionários e estudantes. Infelizmente, Samuel Rego tem dois graves problemas
no currículo. Problema 1: não é
funcionário público. Problema
2: foi director-geral das Artes no tempo de Passos Coelho
e é militante do PSD. Resultado: embora
tenha vencido as eleições em Julho de 2020, está há oito meses à espera de
tomar posse, sem ganhar um tostão.
A razão técnica para esta obscenidade deve-se ao problema 1. Há uma
lei de 2007 que permite que instituições do ensino superior tenham directores
externos à carreira académica, mas a lei nunca foi regulamentada. O Politécnico
de Lisboa e o Ministério da Ciência dizem não saber que tipo de vínculo deve
ter Samuel Rego, nem que salário deve auferir. Logo, nem vínculo, nem salário. Na notícia do PÚBLICO de Novembro os serviços
jurídicos do ministério encontravam-se a “identificar a solução jurídica
adequada a resolver a omissão legal”. Dois meses e meio depois, após uma greve de alunos a
pedir a indigitação do director, os mesmos serviços encontravam-se a
“clarificar o regime legal que regula esta matéria”.
Como é óbvio, o maior problema de Samuel
Rego não é o 1, mas o 2. E
a melhor forma de resolver o problema 2 é arrastar o problema 1 até o saldo
bancário obrigar o senhor do PSD a ir ganhar a sua vida para outro lado.
Tecnicamente, ninguém o demitirá – ele é que irá desistir de tomar posse.
Quando podemos estimular uma pessoa a ir-se embora pelo seu próprio pé, todas
as mordaças se tornam desnecessárias.
Jornalista
TÓPICOS: POLÍTICA OPINIÃO ANTÓNIO COSTA CAVACO SILVA JOSÉ SÓCRATES JOANA MARQUES VIDAL MÁRIO CENTENO
II – OPINIÃO: É para
ficarmos fechados em casa até haver zero casos?
É só a mim que me parece que há
actualmente um desequilíbrio brutal entre os números da pandemia e o esforço
que está a ser exigido ao país?
PÚBLICO, 6 de Março de 2021
O meu problema é com a lógica.
Chamem-me esquisito, mas eu gosto que as coisas tenham lógica e sejam
compreensíveis para pessoas de inteligência moderada, como é o meu caso. Ora,
continuo a ter muitas dificuldades em perceber quais são os fundamentos que
presidem aos fechos e às aberturas do país, aos confinamentos e aos
desconfinamentos, fora daquilo que é uma espécie de emotividade geral –
chamemos-lhe o “sentimentalismo pandémico”, que é quando as pessoas acham que
já existem casos a mais, ou quando ainda está fresca na memória a fila de ambulâncias à porta dos hospitais.
Gostava
muito que o indicador que decide o grau de abertura ou fecho do país fosse o Rt
– o rácio de transmissibilidade do vírus –, e não o Rus – o rácio do último
susto –, pela simples razão de que o Rus é
mal calibrado por definição: ele conduz invariavelmente a atrasar o fecho do
país quando esse fecho é necessário há muito (aconteceu em Janeiro); e tende a
manter o país fechado quando tal fecho é desnecessário há muito (aconteceu em
Abril e Maio do ano passado, e está a acontecer de novo em Março deste ano).
Nós
estamos muito longe de saber tudo aquilo que precisamos sobre a covid-19, mas em
Março de 2021 já sabemos muitíssimo mais do que em Março de 2020. Em
Portugal, não se nota lá muito a diferença. O
grande desafio está em conseguir atingir o máximo equilíbrio entre o número de
infecções e a abertura da sociedade, ou seja, em conseguir ter, a cada momento,
o país tão aberto quanto possível mantendo o número de infecções num patamar
que possa ser gerido pelo SNS. Obviamente, isto é muito difícil de conseguir,
mas é para isso que toda a gente deveria estar a trabalhar.
Com
excepção do número de doentes em cuidados intensivos, tudo aquilo que foi
pedido por Marcelo
foi mais do que superado, em menos de um mês
A
média de infecções na última semana está nos 800 casos diários, número que não
se via desde o início de Outubro. O número de
mortos diários caiu de quase 300 para 30 em pouco mais de um mês. Os internados
caíram de quase 7000 para 1700, dos quais 400 estão em cuidados intensivos. O
Rt já esteve abaixo de 0,7.
Na comunicação
que o Presidente da República fez ao país a 11 de Fevereiro,
foram estabelecidas as seguintes metas: “Temos, até à Páscoa, de descer os
infectados para menos de 2000, para que os internamentos e os cuidados
intensivos desçam dos mais de 5000 e mais de 800, agora, para perto de um
quarto desses valores. E descer, também, a propagação do vírus para números
europeus.” Com excepção do número de doentes em cuidados
intensivos, tudo aquilo que foi pedido por Marcelo foi mais do que superado, em
menos de um mês.
Qual é, então, a razão lógica
para, ao menos as escolas, não estarem já abertas? Foi porque toda a gente
meteu na cabeça que isto era para durar até à Páscoa? É só a mim que me parece
que há actualmente um desequilíbrio brutal entre os números da pandemia e o
esforço que está a ser exigido ao país?
Dir-me-ão: mal se reabra os números vão começar a subir. Claro que vão. É
assim que funciona. Aliás, o Rt já terá começado a subir, mesmo em
confinamento, tal como já teria começado a descer, mesmo antes do fecho das
escolas – porque ele depende da percepção do perigo por parte de dez milhões de
portugueses.
Assim que as pessoas se começam a sentir mais seguras, saem de casa. Quando se começam a sentir mais
inseguras, voltam para casa. Convinha era que as análises de quem nos governa
fossem um pouco mais sofisticadas do que isso, e que o sentimentalismo
pandémico não fosse a grande linha estratégica nacional no combate à covid-19.
Jornalista
TÓPICOS
COVID-19 DESCONFINAMENTO GOVERNO PRESIDENTE DA REPÚBLICA PORTUGAL CORONAVÍRUS SAÚDE
III – OPINIÃO: A demolição ideológica do pensamento
científico
Joana Cabral tem todo o direito de
defender que “o racismo não existe de negros para brancos”. Mas chamar
ignorante a quem não partilha da sua visão não é só ridículo – é uma ofensa a
quem faz ciência a sério.
PÚBLICO, 2 de
Março de 2021
Joana Cabral é professora de Psicologia na Universidade Lusófona
do Porto e dirigente da SOS Racismo. Há dias,
escrevi em tom crítico sobre uma intervenção sua na TVI24, onde defendeu que “o racismo não
existe de negros para brancos”, mas apenas de brancos para negros, com o
argumento de que o racismo é um “sistema político e económico” e
não uma “atitude interpessoal”. Entretanto, Joana
Cabral respondeu às minhas críticas num artigo
intitulado “De branca
para brancos: rigor e justiça”.
Regresso ao tema por causa de um detalhe que considero demasiado importante
para ser ignorado, e que já tinha denunciado no meu artigo original: a
promoção, por parte de uma professora universitária, de uma confusão
inaceitável entre ideologia e ciência. Invocar pergaminhos académicos para
credibilizar a sua posição nesta matéria é uma fraude intelectual.
No
referido debate na TVI, Joana Cabral
afirmou que iria discutir a questão do racismo “do ponto de vista científico”.
Segundo ela, “todos somos um bocadinho ignorantes em relação a este
tema”, e por isso devemos “aproveitar estas oportunidades para aprendermos
qualquer coisa”. Poder-se-ia
dizer que este tom maternalista teria surgido a despropósito no calor do
debate. Mas não: ele volta a ser utilizado no artigo do PÚBLICO. Joana
Cabral invoca o “entendimento científico”
sobre a matéria e declara que seria “de esperar que intelectuais e responsáveis
políticos não se opusessem à informação que permite superar esta ignorância”.
Joana Cabral não se limita a defender uma tese – ela classifica
como mal informados aqueles que não a partilham. E que tese é
essa? É a tese de que uma coisa são
“os fenómenos de preconceito e discriminação étnico-racial”, que Joana Cabral
reconhece serem “universais e praticados também de não-brancos para brancos”
(ufa); outra coisa é o “racismo”, que é um “projecto político e económico”. E este “racismo”, para existir,
necessita de uma série de condições que são elencadas no seu artigo, entre as
quais se inclui a “escala transatlântica”, as campanhas de “propaganda
científica” ou o cultivo de “imaginários de inferiorização” que tenham durado
até ao século XX. Isso – e só isso – é o racismo, e quem achar que o racismo
pode ser outra coisa é um negacionista da ciência.
Vamos
cá ver: assim é fácil. Se eu definir
“mamífero” como um animal que tem a cauda em espiral, o nariz parecido com uma
tomada eléctrica e um certo gosto por chafurdar na lama, é óbvio que a partir
daí só os porcos são mamíferos. Do mesmo modo, se para haver
racismo é necessário escala atlântica, frenologia e apartheid, então não
há dúvida: nem chineses, nem indianos, nem africanos têm oportunidade de ser
racistas, mesmo que queiram muito.
Só
que há um outro branco, bem mais considerado do que eu, que embirra com esta
tese de Joana Cabral: chama-se Karl Popper, e propôs
um princípio, hoje universalmente aceite por quem leva a sério o método
científico, chamado da refutabilidade (ou da
falseabilidade), que de forma muito simples diz isto: uma teoria que não oferece a possibilidade
de ser refutada não pode ser considerada científica. É mito. É ideologia. É
pseudociência.
A história do racismo exclusivamente branco não é outra coisa senão
isso. Joana Cabral tem todo o direito
a defendê-la, como eu tenho o direito de defender a existência do Eldorado. Mas
chamar ignorante a quem não partilha da sua visão não é só ridículo – é uma
ofensa a quem faz ciência a sério.
Jornalista
TÓPICOS: OPINIÃO
RACISMO CULTURA PRECONCEITO DISCRIMINAÇÃO PODCAST O
RESPEITINHO NÃO É BONITO
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