Apesar da centena e meio de comentários que o artigo de Helena Matos mereceu. Recolhamo-nos espiritualmente, a meditar, uma vez mais, nas verdades com honrada coragem por ela produzidas. Não esquecendo o seu PS – de estarrecer. Direi apenas como alguns (outros produziram os habituais dislates verbais): Obrigada, Helena Matos.
Querem contextualizar o Padrão
dos Descobrimentos? /premium
Vão buscar os caixotes dos retornados. Para lembrar essa mistificação a que
se chamou descolonização. E para nos confrontarmos com o óbvio: nesta nova
descolonização mandam-se os caixotes para onde?
HELENA MATOS, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 21 mar 2021,
Agora
que a descolonização enquanto mistificação libertadora está de novo aí convém
lembrar esses caixotes. Esses caixotes que em 1975 começaram a empilhar-se na
beira do Tejo, sob os perfis de João Gonçalves Zarco, Diogo Cão ou Cristovão da
Gama, são o símbolo de um mundo que acabou sacrificado no altar dessas
libertações que nunca o foram nem podiam ser.
Por terra, mar, ou ar milhares de pessoas deixaram África não porque fossem
contra as independências mas sim porque não queriam viver em países entregues a
gente sem preparação para outra coisa que não fosse a pilhagem e o uso da
violência. Perante o inferno em que as suas vidas estavam a transformar-se,
encaixotaram o que puderam e partiram.
Muitos
fizeram viagens tão dramáticas quanto as protagonizadas pelos homens que o
Padrão dos Descobrimentos celebra. A principal diferença é que ninguém
os homenageou e os livros de História mal falam da sua história.
No século XX o que se identifica como descolonização serviu ao bloco
comunista para alargar geograficamente a sua influência. O resultado foram
décadas e décadas perdidas por África, acabando-se no paradoxo de a falta de
condições de vida levar agora o povo dessa África liberta a arriscar a vida
para conseguir vir trabalhar nas suas antigas potências coloniais.
O balanço da descolonização
não só nunca foi feito como se reforçou a linguagem que a faz equivaler a uma
democratização: chamamos movimentos de libertação a partidos que instauraram regimes
totalitários, produziram oligarquias insaciáveis, torturaram e assassinaram em
massa. Simultaneamente adoptámos a designação guerra colonial (e
aqui convém recordar que devemos dizer colonial como se estivéssemos com azia)
para referir os diferentes conflitos travados por tropas
portuguesas no período 1961 a 1974. E apenas nesse período. Assim os
milhares de portugueses que combateram em África entre 1914 e 1918 participaram
na campanha de África, que vá lá saber-se porquê não era colonial. Já os que
para aí foram mobilizados entre 1961 e 1974 participaram na guerra colonial.
O que está subjacente a esta
terminologia nada tem de ingénuo:
por um lado apresenta-se esse conflito devidamente intitulado guerra colonial
como o resultado do regime fascista que por ser fascista não teria logo
entregue o poder aos movimentos de libertação que se dá como adquirido teriam
capacidade para administrar esses territórios. Ora em 1961 a culpa do regime
não foi ter respondido militarmente ao ataque às fazendas em Angola mas sim não
ter antecipado a defesa das populações.
A
natureza ditatorial do regime influiu sim quando privou os portugueses de
África (e não só) de líderes políticos e de partidos, tornando-os ainda mais
dependentes dos militares. Quando nos anos 70 as elites portuguesas desistiram
de resolver o bloqueio ditatorial do regime (e só resolvendo esse bloqueio
poderiam existir partidos e dirigentes) deixaram nas mãos das Forças Armadas
essa missão. E elas cumpriram-na: fizeram um golpe. Que prometia democracia.
Mas rapidamente se percebeu que a democracia não era para todos.
Como
se tornou claro nas semanas imediatas após o 25 de Abril de 1974 os militares
queriam sair de África e sair o mais rapidamente possível. Para a linha
conservadora das Forças Armadas sair rapidamente de África era a única forma de
salvar a instituição militar de enxovalhos como o do
batalhão em cuecas que temiam viessem a comprometer
irremediavelmente a sua dignidade. Para os militares esquerdistas essa saída
tão rápida quanto possível era a garantia de que em nenhum daqueles territórios
se conseguiriam formar movimentos democráticos suficientemente fortes para se oporem
à transferência de poderes para os movimentos marxistas que a ala
revolucionária do MFA definira como os únicos representativos. Em
África, os líderes nacionalistas, brancos e negros, foram perseguidos,
obrigados a sair dos territórios, presos ou pura e simplesmente eliminados. Foi
aprovada legislação repressiva especial para vigorar até às independências em
que sob a acusação de crime de anti-descolonização se podia
prender qualquer um ou entregá-lo aos movimentos de libertação para ser
interrogado.
Em África, no século passado, a descolonização foi um trespasse de
poder. Quando se poderia pensar que o desastre em que cada uma dessas
descolonizações acabou teria levado a alguma contenção por parte dos seus
arautos, eis que no século XXI aí temos a descolonização de novo. Mas agora num
regresso à casa da partida: as democracias ocidentais.
Entrincheirados
nas universidades, os novos descolonizadores manifestam um desinteresse por
África superior ao de qualquer contemporâneo de dom Afonso Henriques. Em
Moçambique decapitam-se crianças mas eles reagem como se fosse em Marte.
Porquê? Porque agora não têm ninguém para culpar, não é? Ou mais precisamente
os culpados são aqueles por quem os nossos actuais descolonizadores nutrem uma
certa simpatia. São aqueles a quem a linguagem descolonizada, neutra e
inclusiva que os nossos descolonizadores nos querem impor levou a que
deixássemos de referir como terroristas islâmicos, depois também não podiam ser
fundamentalistas islâmicos. Passaram em seguida a insurgentes, bandidos,
grupos… Agora já estamos na fase da violência: é a violência quem mata,
tortura, decapita. Isto em África e o que acontece nessa África que outrora
tanto queriam libertar nada interessa agora aos nossos descolonizadores.
A descolonização agora vai ter
lugar aqui. Não está em causa o território mas sim a História. A música que
ouvimos. os livros que escolhemos. Os quadros que admiramos. As palavras que
dizemos. Enfim o que somos.
Todos os dias os novos
descolonizadores detectam mais um item corrigir. E pressurosos, os que querem
ficar sempre bem na fotografia, logo vêm explicar que temos de dar
contexto, entendendo-se aqui por contexto vivermos rodeados de edifícios,
livros, quadros, roupas, filmes… acompanhados de explicações sobre a sua
perversidade quais avisos nos maços de cigarros alertando para os malefícios do
tabaco.
Como sempre artistas, intelectuais, políticos, jornalistas,
influencers… não só mostrarão a sagacidade dos descolonizadores como, não menos
importante, ajudarão a diabolizar aqueles que os questionam (dentro de alguns
anos dirão que foram enganados, que foi um erro e, sobretudo, que não vale a
pena estar sempre a revolver o passado).
Antes
que o frenesi descolonizador a todos nos apanhe e envolva convém lembrar que,
ao contrário do que aconteceu nas descolonizações que tiveram lugar em África, agora não
há para onde mandar os caixotes.
PS. A ser verdadeira esta notícia do SOL revela uma classe
política no grau zero da decência: «O PSD e o PS estão a condicionar
a escolha dos próximos juízes-conselheiros do Tribunal Constitucional a uma
posição favorável à despenalização da morte medicamente assistida. O Nascer do
SOL apurou que tanto socialistas como sociais-democratas, nas sondagens para a
indicação de novos juízes, estão a questionar os putativos candidatos sobre a
eutanásia. E a afastar os que são contra.»
HISTÓRIA CULTURA COLONIALISMO MUNDO
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