Segundo a conveniência do que está a dar... Uma ponderação de
seriedade - de ISABEL CRISTINA MATEUS.
Cultura-Ípsilon OPINIÃO: Ainda a propósito de Os
Maias...
Ler Eça com “lentes actuais” é não
apenas positivo como também o resumo de tudo o que muitos têm tentado fazer nos
últimos anos. Todavia, é igualmente preciso que essas “lentes actuais” tenham
suficiente amplitude e distância para permitir ver, para lá do cego
deslumbramento de quem julga olhar pela primeira vez o mundo acabado de criar,
um outro tempo, outras vozes, outros modos de pensar.
ISABEL CRISTINA
MATEUS PÚBLICO, 17 de Março de
2021
A
polémica em torno de Eça de Queirós e do alegado “racismo” patente em Os Maias merece
mais do que simples notas em jeito de comentário. A polémica surgiu a propósito
da tese que uma doutoranda da Universidade de Darthmouth, Vanusa
Vera-Cruz Lima, está a desenvolver mas mereceu desde já a atenção
mediática. Para entrar em discussão, seria necessário conhecer a tese, tê-la
lido atentamente, de forma isenta, aberta e despreconceituada, ponderar os
argumentos invocados e o rigor científico da argumentação. Assim como
pressupõe, quer por parte de quem defende uma tese sobre Eça de Queirós quer de quem avalia essa tese (júri) e, de um modo
geral, dos leitores, um conhecimento sério do autor em questão que vai muito
para além da leitura de uma única obra. De outro modo, estamos perante opiniões
que cientificamente valem o que valem. A questão suscita-me alguns comentários
breves, de natureza diversa:
1. A
primeira, de natureza académica: tendo em
conta o debate público surgido a respeito desta tese (ainda não defendida no
lugar próprio, a Universidade de Darthmouth, pelo que li), pergunto-me se a
originalidade do trabalho no momento da sua apresentação e discussão públicas
não estarão comprometidas. Porque seria importante saber se esta discussão
mediática não será um meio de favorecimento da candidata (ao fornecer-lhe feedback para
aferir, aduzir ou rasurar argumentos, mas também por lhe permitir um ensaio
privilegiado de discussão antes da prestação de provas públicas), feedback e
ensaio esses que não são facultados a outros doutorandos nas áreas das
Humanidades ou noutras áreas científicas. Como seria igualmente importante
saber se as Universidades que tanto prezam as “patentes” e a “propriedade
intelectual”, que exigem um registo do tema da tese e o respectivo pagamento no
acto de inscrição em doutoramento, assim como a “originalidade” do trabalho
submetido a provas públicas, deixaram ou não cair essa prática. E, por último,
se toda esta discussão pública pode ou não constituir uma forma de pressão e de
influência sobre o júri.
2. A
segunda questão é de natureza científica (implicando várias questões). Pelas afirmações vindas a público por parte da
investigadora, não se trata de afirmar que Eça de Queirós tenha sido ou não
“racista” (reconhecendo que seria necessário ler outros escritos de Eça e
conhecer melhor o autor para chegar a essa conclusão), mas tão-somente de
destacar algumas afirmações racistas contidas num romance como Os Maias. A investigadora cita,
em particular, afirmações de Ega como esta retirada do Cap. IV: “Nós
julgamo-nos civilizados, como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se
supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão.” Sem
querer discutir o conteúdo da afirmação, gostaria de, em termos estritamente
literários, sublinhar a confusão que parece existir entre conceitos tão
distintos, mas operativamente fundamentais, como autor empírico, autor textual
e personagem, pelo que isso implica em termos de ficcionalidade, da
responsabilidade enunciativa e do ponto de vista.
Do
mesmo modo, o conceito de ironia (e de auto-ironia) estruturante
de toda a ficção queirosiana (como Mário Sacramento mostrou há muitos anos
atrás em Eça de Queirós. Uma estética da ironia), ou o recurso à
caricatura, a “vis” cómica de Eça, corroendo o discurso das personagens e
subvertendo interpretações literais, não parecem ser tidos em conta na leitura
de um texto que é genologicamente um romance.
António Carlos Cortez, em “Os Maias, o racismo e a visão estreita das coisas” (PÚBLICO, 09.03.2021), chamava, de resto,
a atenção para a necessidade de não se perder de vista que “o processo da
ironia traduz uma visão do romancista que é, no mínimo, refractária ao racismo
de que se pretende acusar o autor de Os Maias”. É deste processo que
decorre a visão caricatural que encontramos no final de um romance em que tanto
Ega como Carlos da Maia surgem aos olhos do leitor como “falhados” na vida
(“Falhámos a vida, menino!”, dirá Ega), ambos conscientes de que nada vale a
pena mas correndo paradoxalmente para apanhar o “americano”.
Argumentos
como o da “idealização da branquitude” por parte de Eça (ou de Ega), nomeadamente quando
ele se aplica à idealização de personagens femininas, carece de uma
contextualização sobre o ideal europeu de beleza na época – discutível, por
certo, como todas as criações humanas, mas que era então para muitos autores
(entre os quais Eça) um sinónimo de burguesia e de afastamento do mundo rural (Cesário, por exemplo, há-de lamentar dolorosamente a morte da irmã
quando a família Verde chega ao campo, fugida da epidemia de cólera na cidade:
“E antes tu, ser lindíssimo, nas faces/tivesses ‘pano’ como as camponesas:/ e
sem brancuras, sem delicadezas, /vigorosa e plebeia, inda durasses!” A
oposição aqui é entre burguesia e povo, cidade e mundo rural e não tanto uma
questão “racial”.
Quem
ler Eça, defrontar-se-á com a oposição entre Civilização e Natureza que,
tematizada de diversas formas, atravessa a sua obra, incluindo muitos dos seus
textos políticos, ensaísticos ou correspondência, apontando para uma leitura
que vai muito para além de simples dicotomias.
No conto “A Perfeição”, Ulisses
enfastia-se na ilha de Ogígia onde tem tudo o que um homem alegadamente
“civilizado” pode desejar, desde os braços de uma deusa, a abundância da mesa e
a promessa da imortalidade, para abandonar tudo e seguir viagem. No
final de O Crime do Padre Amaro, um
cínico padre afirma “já as não confessar senão casadas” e o leitor espanta-se
da obtusidade de um político como o Conde de Ribamar, incapaz de ver a
decrepitude do Chiado e do país. Em A Ilustre Casa de Ramires, Gonçalo Mendes Ramires vê-se a braços com a escrita
da novela (aliás meio plágio) que lhe há-de assegurar a notoriedade pública e o
lugar de deputado, esse “triunfo pelo qual tanto almejara, por que tanto
sabujara. Deputado! (...). E ante esse resultado, tão miúdo, tão trivial, –
todo o seu esforço desesperado, tão sem escrúpulos, lhe parecia ainda menos
imoral que risível. Deputado! Para quê? Para almoçar no Bragança, galgar de
tipóia a ladeira de S. Bento, e dentro do sujo convento, escrevinhar na
carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate, bocejar com a inanidade
ambiente dos homens e das ideias, e distraidamente acompanhar, em silêncio ou
balando, o rebanho de S. Fulgêncio, por ter desertado o rebanho idêntico do
Brás Vitorino. Sim, talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um
chefe e à senhora do chefe, e promessas e risos através de redacções, e algum
discurso esbraseadamente berrado – lograsse ser ministro”. Ora é um deputado com este perfil que no
final da obra irá partir para África e defender a causa do Colonialismo. A
ironia queirosiana pode relativizar, gerar ambiguidades, desconstruir leituras
definitivas. Sejam elas quais forem.
A
análise que tem de ser feita (e é bom que seja feita) deve pautar-se pela
seriedade e pelo rigor, evitando incorrer em dogmatismos ideológicos e
apriorísticos estereotipados. A
história não pode ser apagada sem comprometer o futuro que queremos construir.
3. Não será
difícil encontrar na obra de Eça de Queirós muitos dos temas em contra-corrente
com a agenda da contemporaneidade. Rever e, sobretudo, reler essas obras à luz
de novas molduras teóricas é seguramente uma prova de vitalidade e de
resistência da escrita ao tempo e do seu poder de interpelar o leitor. Racismo,
orientação sexual, misoginia, violência doméstica, tudo isso está lá, como
estão a visão crítica e o desafio a tabus como o incesto, o celibato dos
padres, a vacuidade intelectual da elite dirigente.
Em
declarações à agência Lusa, o vice-presidente da Associação dos Professores de
Português, Luís Filipe Redes, disse não ser precisa “uma análise muito profunda
para compreender os preconceitos raciais presentes em Os Maias e em
outros textos de Eça”. Mas a análise que tem de ser feita (e é bom que seja
feita) deve pautar-se pela seriedade e pelo rigor, evitando incorrer em
dogmatismos ideológicos e apriorísticos estereotipados, pelo conhecimento
efectivo da obra, dos modos de funcionamento e das estratégias discursivas do
texto narrativo, bem como do contexto histórico e cultural que coube ao cidadão
e autor viver e não pode ser rasurado. A história não pode ser apagada sem
comprometer o futuro que queremos construir.
A
investigadora afirma ser necessário ler o autor com “lentes actuais” e isso é
não apenas positivo como também o resumo de tudo o que muitos têm tentado fazer
nos últimos anos. A Cidade e as Serras é um bom exemplo de revisão
crítica a que têm sido sujeitos muitos dos textos de Eça. Todavia,
é igualmente preciso que as “lentes actuais” não desfoquem o que foi o contexto
da época. Que tenham suficiente amplitude e
distância para permitir ver, para lá do cego deslumbramento de quem julga olhar
pela primeira vez o mundo acabado de criar, um outro tempo, outras vozes,
outros modos de pensar, outras concepções da história e do romance, com a
humildade sábia de quem, hoje como ontem, não será nunca detentor da verdade. Também
aqui o distanciamento pode ser aconselhável.
4. Um
comentário final para o modo como os media dão palco a tudo o que
seja um tema fracturante ou de moda. Nada contra, até porque considero a
discussão importante e legítima. A não ser quando trabalhos de mérito
reconhecido no campo dos estudos queirosianos, construídos ao longo de uma vida
de trabalho, como os dos professores Carlos Reis ou Isabel Pires de Lima, mas
também de Orlando Grossegesse ou Irene Fialho, entre muitos outros em várias
partes do mundo, ficam no limbo, raramente merecendo uma linha de atenção.
Veja-se a última lição de Carlos Reis. É este silêncio que me parece lamentável.
Ensaísta e
cronista. Professora Auxiliar da Universidade do Minho
TÓPICOS
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LITERATURA OS MAIAS
EÇA
DE QUEIRÓS LIVROS CULTURA
COMENTÁRIOS:
Renato Epifânio INICIANTE: Mais uma prova de que o
talibanismo politicamente correcto é apenas uma bolha mediática - pouco ou nada
tem a ver com a realidade...
Maria Odete Vilas Coutinho MODERADOR:
Texto
excelente: tranquilo, pedagógico e aberto. Conviria ao jornal ter mais
colaboração deste nível. Quanto à obscuridade das vias pelas quais a tese de
Valusa chegou até ao conhecimento dos actuais leitores do mesmo, há muito tempo
desisti de perceber muitas das escolhas do Público, e esta também , obviamente.
Haverá por certo um conjunto de premências que não são mesmo para partilhar
connosco, mas também alguma incapacidade financeira de pagar mais competência e
valor. É ir vendo até quando vale a pena... zav60.911576 INICIANTE: Quando, para aí na 5.a linha do
ponto 1, dei de caras com, sic, «Porque seria importante saber se esta
discussão mediática não será um meio de favorecimento da candidata (ao
fornecer-lhe feedback para aferir, aduzir ou rasurar argumentos (...)», não
consegui deixar de pensar Uau! O tuga Ega ressuscitou: lá está, todos os tugas
sabem que lá fora, Hoje, o “politicamente correcto” é o meio de singrar nas
«Universidades que tanto prezam as “patentes” e a “propriedade intelectual”,
que exigem (…)» Zzzzzzz Porque será que a maioria dos actuais defensores da
obra do Eça (dizem que é «necessário ler outros escritos de Eça e conhecer
melhor o autor para chegar a essa conclusão») me fazem lembrar o Ega (não o
Eça)? Luís Miguel MODERADOR : Deixaria os pontos 2 a 4 para
outros mais habilitados, mas comentaria o ponto 1. Intriga-me como aparece tão
publicitada uma tese ainda em elaboração de uma (apenas para mim?) obscura
doutoranda numa universidade de Dartmouth da qual (diria que) a generalidade
das pessoas nunca ouviu falar. Chegou - a notícia da tese - ao Público pelo pé
da autora, pondo-se esta manifestamente em bicos de pés, ou foi alguém não
identificado que se encarregou disso, com objectivos mais ou menos evidentes?
Em qualquer dos casos, pelas razões elencadas por Isabel Cristina Mateus, terá sido um tiro no pé ou um
tiro que saiu pela culatra. Sei bem quem - se cá estivesse - estaria a sorrir e
já a arquitectar uma personagem à medida deste episódio, que a autora deste
artigo desmonta com mestria. Joao MODERADOR: Óbvio. Mas eu não diria que deu
um tiro no pé, acho o contrário, teve publicidade por pouco dinheiro. E se não
lhe aceitarem a tese, pelas razões que Isabel Cristina Mateus explica?
Nomeadamente «Porque seria importante saber se esta discussão mediática não
será um meio de favorecimento da candidata (ao fornecer-lhe feedback para
aferir, aduzir ou rasurar argumentos, mas também por lhe permitir um ensaio
privilegiado de discussão antes da prestação de provas públicas)». É bem capaz
de acontecer isso, daí o tiro no pé. Adolfo-Dias EXPERIENTE: Um belo artigo! Há também um
ponto que dá razão à autora: eu nunca tinha ouvido falar dela, apesar de
obviamente ser muito conhecedora e uma estudiosa de qualidade. No entanto,
além-mar alguém diz uma série de disparates e para logo que o maior erudito do mundo
disse alguma coisa mirabolante que não admite réplica! DCM INFLUENTE: “a Verdade é filha do tempo” e
“a busca pela Verdade começa pelo estudo das opiniões dos sábios”. S. Tomás de
Aquino Joao MODERADOR: Gostei. Jeine Ósten EXPERIENTE: Concordo. Muito bem. PdellaF.468453 EXPERIENTE: A autora acaba muito bem: os
estudiosos que realmente trouxeram contributos valiosos são preteridos em favor
de ignorantes que cavalgam a onda da moda. Por outro lado, saliente-se o papel
da Associação dos Professores de Português, há muito capturada por uma facção
ideológica que segue asininamente todas as tendências que têm andado a destruir
a língua e a cultura portuguesas. mzeabranches EXPERIENTE: Que prazer, ler este texto!
Permito-me destacar uma passagem que me parece propor algo de essencial a
considerar no momento presente em que o passado, visto e medido de forma
tendencialmente taxativa, corre o risco de ser empobrecido e ignorado:
«Todavia, é igualmente preciso que as “lentes actuais” não desfoquem o que foi
o contexto da época. Que tenham suficiente amplitude e distância para permitir
ver, para lá do cego deslumbramento de quem julga olhar pela primeira vez o
mundo acabado de criar, um outro tempo, outras vozes, outros modos de pensar,
outras concepções da história e do romance, com a humildade sábia de quem, hoje
como ontem, não será nunca detentor da verdade. Também aqui o distanciamento
pode ser aconselhável.»
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