domingo, 21 de março de 2021

A razão tem razões que o coração desconhece


Sem o artifício do trocadilho para a elegância expositiva expressa por Pascal. Transcrevo novamente o comentário de Sandra. MODERADOR, que apresenta as tais razões fundamentais para a justificação da eutanásia, nos nossos tempos de cinismo e cobardia, encobertos sob capa misericordiosa:

 «Concordo com o sociólogo. Ademais, é muito complicado aferir da verdadeira liberdade do cidadão, especialmente os mais vulneráveis, se estão ou não a ser coagidos por familiares, no sentido de "escolherem" a eutanásia em "liberdade". Numa sociedade envelhecida, com altos graus de pobreza, creio que em muitos casos, a "escolha consciente" recairia sobre deixar de ser um peso.

OPINIÃO    Morrer bem

Tudo leva a crer que a eutanásia e o suicídio medicamente assistido serão admitidos. É pena que assim seja.

ANTÓNIO BARRETO           PÚBLICO, 20 de Março de 2021

Pasme-se! Em plena pandemia, de confinamento em confinamento, entre mortos e infectados, com boas e más notícias sobre as vacinas, num raro clima de incerteza e fragilidade, os deputados dedicaram muitas das suas atenções, algum trabalho, uma boa reserva de energia e muita polémica para aprovar uma lei sobre a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. Não havia tempo menos indicado, momento mais desajustado e oportunidade mais perversa do que esta. Eles não percebem o mal que fazem. Eles não entendem o mau exemplo que dão. Eles não se interessam pelos resultados morais de uma tal atitude de brutalidade chocante. É quase obsceno. Provocatório, de qualquer modo. Um tema como este, da vida e da morte, que implica a liberdade individual, que põe em causa as escolhas pessoais, que altera as regras da justiça, que toca no fundo moral dos cidadãos, que atinge os sentimentos religiosos de muitos, que define os termos da compaixão, que obriga a uma reflexão profunda sobre a Constituição, que põe em causa a licitude de regras legais e que cria obrigações para as instituições, um tema como este, dizia, é discutido em estado de emergência e é votado quando se morre a mais! Eles não sabem o que fizeram. Eles não se dão conta das consequências dos seus gestos.

O Presidente da República, o Tribunal Constitucional e os partidos políticos tomaram as suas posições e deram andamento aos procedimentos legais, sem que se conheça ainda o pensamento de todos os intervenientes. Sabe-se, para já, que a questão constitucional da “inviolabilidade da vida humana” parece ter sido posta de lado e que tudo leva a crer que o Tribunal Constitucional não levante problemas a esse propósito, deixando assim crer que a eutanásia e o suicídio medicamente assistido serão admitidos. É pena que assim seja. A discussão sobre as diferenças entre eutanásia e suicídio assistido está longe de ter sido feita. A lei aprovada trata os dois actos como se fossem equivalentes, o que não é verdade. A lei estabelece a confusão deliberada de conceitos quando refere o gesto “praticado ou ajudado”…

A eutanásia é um gesto praticado por outrem, voluntário ou não, a pedido ou não, activo ou passivo, mas exige ser de autoria de terceiro e pode não ter sido totalmente escolhido pelo próprio. O suicídio assistido implica escolha própria do gesto e do momento; exige decisão individual, livre e consciente; traduz uma opção lúcida e informada. O recurso a terceiro é instrumental. O momento decisivo depende do próprio.

vida humana é inviolável, diz a Constituição. Ainda bem. É uma bela formulação e um admirável pensamento. Mas o suicídio não é uma violação da vida humana. Por isso não faz qualquer sentido penalizá-lo. O que deve ser despenalizado, para esclarecimento público, é a ajuda instrumental necessária ao gesto decisivo, da exclusiva responsabilidade do próprio, por mais pequena que seja a sua intervenção.

O valor da inviolabilidade da vida humana não é respeitado pela eutanásia, dado que alguém tem de agir contra a vida de outrem. O mesmo valor é respeitado pelo suicídio assistido, dado que ninguém atenta ou viola a vida de alguém. Ao contrário da eutanásia, o suicídio assistido não atenta contra a inviolabilidade da vida humana. Se assim fosse, teríamos de encarar a pena para tentativas de suicídio e os acidentes que põem em risco a vida do próprio e qualquer gesto ou infracção de que o próprio seja vítima. Quer dizer que teria a lei de prever castigos para quem corre riscos, quem tem acidentes, quem se fere ou danifica, quem tenta suicidar-se. No limite, o suicídio seria proibido e castigado.

A violação de uma vida humana pressupõe que a autoria seja externa, de outrem. Por isso a figura do suicídio assistido é diferente da eutanásia, mesmo nas suas formas mais benignas. O suicídio assistido tem de ter a decisão consciente da pessoa em causa, sobre o momento, o método, o fundo e a forma. E estes têm de depender de gesto ou acção do próprio. Como é sabido, há mil maneiras conhecidas de agir, de tudo preparar a fim de que o paciente possa tomar a decisão final. Se não for possível, se o paciente estiver inconsciente, se não for capaz de exprimir a sua vontade, se não tiver a capacidade de agir a fim de dar início ao procedimento terminal, se não for capaz de escolher o método e o momento e se não tiver lucidez e consciência para todas essas decisões e escolhas, então estamos perante um gesto que pode ser considerado violação da vida humana.

Para quem a liberdade individual e a escolha consciente são os critérios essenciais, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o que a eutanásia não deve ser legalizada

Vale a pena regular legalmente as condições que devem ser respeitadas pelos médicos a fim de “assistir”, isto é, de fornecer os meios e os métodos? Vale a pena regular o grau de sofrimento, a natureza da doença e outras circunstâncias segundo as quais é possível assistir a um suicídio? Sim, vale a pena. Até porque pode ficar testemunho escrito ou gravado. O próprio médico que assiste tem interesse em ser defendido por testemunho do paciente.

A inviolabilidade da vida humana é um valor que merece tanta protecção legal e constitucional quanto a liberdade individual, a auto-determinação e a autonomia pessoal. Por isso são condenáveis os métodos ou gestos que desviam a decisão para outra pessoa que não seja o sujeito. Se a decisão e o gesto são do próprio, merecem respeito e é criticável a legislação que os proíbe ou castiga. A decisão do próprio tem de ser consciente e expressa. Toda a problemática da prossecução e da interrupção de tratamentos tem séculos de discussão e experiência e não deve ser confundida com a prática do suicídio assistido. A deontologia da profissão médica e a experiência das Ordens e das sociedades científicas e clínicas são os critérios mais seguros para avaliar os benefícios, a eficácia, o fundamento e a utilidade dos tratamentos ou do encarniçamento. Tratar da vida e cuidar da morte são duas realidades diferentes, não deveriam ser tratadas da mesma maneira, nem com as mesmas regras.

A decisão da morte antecipada depende do paciente e só dele. Não compete ao médico nem aos serviços de saúde tomar decisões que devem ser do paciente. Por isso, merece respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem a liberdade individual e a escolha consciente são os critérios essenciais, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o que a eutanásia não deve ser legalizada. Sociólogo

TÓPICOS:  TRIBUNAL CONSTITUCIONAL  PRESIDENTE DA REPÚBLICA

COMENTÁRIOS:

Nuno Calisto  INICIANTE: A neurologia actual começa a entender os segredos por trás das chamadas remissões espontâneas. Joe Dispenza é um dos profetas desta nova neurologia.          Magritte  EXPERIENTE: Haja paciência para a lenga-lenga do costume. O Barreto ainda quer ouvir mais gente e fala do despropósito do momento: os dois argumentos puídos de sempre. Não há mais pachorra para a pseudo-defesa da vida conservadora, que se limita a moribundos e fetos, que os vivos da silva se amanhem com as forças do mercado e a responsabilidade individual.         António Manuel da Gonçalves  INICIANTE: Em tempos fui confrontado com o dilema de suspender o suporte de vida do meu pai, opção que me pareceu não fazer sentido sem, em contrapartida, poder recorrer à eutanásia.         viana  EXPERIENTE: "É quase obsceno. Provocatório, de qualquer modo." Descreve bem este texto, que começa por atacar deputados que estão apenas a fazer o trabalho para que foram eleitos. Tem alguma outra sugestão para "entreter" os deputados? Talvez alguma Lei da sua lavra... oops, mas não foi eleito, pois não?... Um texto ressabiado de alguém que sabe que perdeu o argumento, mas mesmo assim tenta lançar poeira para os olhos de quem o lê. Vai propor a instalação de salas de suícidio assistido, onde basta a pessoa assinar cá fora, que pode logo entrar, sentar-se e carregar no botão que o electrifica?... hipócrita. Espero que não venha a ter Alzheimer, vendo-se no dilema de pedir para morrer quando ainda mantêm alguma consciência de si ou esperar demasiado até ao ponto em que já nem sabe quem é...   Mario Coimbra  INFLUENTE: Que comentário mais desagradável e obsceno Viana. Se é para escrever isto poupe-nos se faz favor.          manuel.m2  INICIANTE: Estou internado num grande hospital de uma grande cidade situada num país onde a eutanásia não é legal. .Padeço de um cancro gástrico em estágio IV. Os médicos discutem se podem prolongar-me a vida agora que apareceu uma nova metástase. Estou disposto a ir até onde for possível mas sei que a partir de certa altura terei de ser sedado. .Provavelmente demasiado profundamente para requerer suicídio assistido. Em fase terminal a dor é muito difícil de controlar. Semi-inconsciente aguarda-me um fim de grande sofrimento. Só a eutanásia me poderia valer. Pensem nisto. O que desejariam se estivessem em meu lugar?          Sa1004065  INICIANTE: Caro Manuel, Foi com tristeza que li a sua mensagem. É um tema tão delicado e que pode ser um pau de dois bicos! Eu própria não suporto sofrimento, ainda por cima quando não leva a nada de bom. Um abraço solidário.          José Cruz Magalhaes  MODERADOR: Não deixa de ser irónica a crítica de falta de sentido de oportunidade ou decoro com que AB se encarniça contra os parlamentares e a Assembleia da República Portuguesa , quando idêntico debate e votação, sobre a mesma temática, acontece nas Cortes do país vizinho. O facto de ainda se verificarem dezenas de óbitos, provocados pela pandemia, quando o agendamento do debate e votação da lei da Eutanásia ou,na sua opinião, do suicídio assistido, não representa nada mais do que uma coincidência na matéria em causa, já que em tudo o resto a diferença é total. A morte, sobre que se debruça o legislador é mais velha do que as civilizações e representa uma escolha e uma decisão pessoal, um acto reflectido e afirmado por quem, no uso das suas faculdades, concluiu não ser digna a condição de sofrimento           José Cruz Magalhaes  MODERADOR: e inviável qualquer recuperação. O quadro que os parlamentares debatem e sobre o qual o TC se pronunciou é o de uma situação terminal, conhecida e reconhecida pelo próprio, familiares e clínicos, como irreversível; muito diferente se apresenta a situação dos infectados pelo SARS-CoV-2 que, no limite poderão ser recuperados ,sendo essa a consciência dominante de cada infectado.               Magritte  EXPERIENTE: Excelente.           Maria Marques INICIANTE: Não nascemos pessoas, tornamos-mos pessoas porque vivemos com pessoas; se uma criança for criada sem a convivência humana nunca será uma pessoa. A criatura humana é um ser social; não produz actos sociais puros; assim a decisão de escolhermos o dia da nossa morte está repleta de factores sociais determinantes. A eutanásia tal como a pena de morte institucional são instrumentos do poder que são exercidos maioritariamente sobre as camadas desfavorecidas das populações. Vide o que se passa nos países que as têm legalizadas. Médica sem credo religioso ou filiação partidária. Caetano Brandão  EXPERIENTE: António Barreto na minha opinião quer agora inventar, parece que aparentemente sempre com o intuito de ser original. É uma pessoa preconceituosa a quem faz impressão a palavra eutanásia. Para mim ela é exactamente um suicídio assistido e é disso que se trata e não é lançando achas para a fogueira do complicómetro, que se resolve um problema gravíssimo que eu assisto amiúde que é o sofrimento de gente que não é ouvida nem achada, sobre o que quer fazer muitas vezes do resto do seu sofrimento sem saída, simplesmente em nome de preconceitos religiosos e culturais desumanos. Tem a mania este autor que é muito sensível e humano. Espero que um dia não chegue lá tarde de mais, já sem se poder exprimir e sofrer até ao fim por causa de do que defende agora neste artigo.          manuel.m2  INICIANTE :         Cruel a publicação no mesmo dia de um artigo de P.P. e de um de A.B.          Mario Coimbra  INFLUENTE: Concordo. Obrigado por mais um excelente texto. Pedagogia no seu melhor. Eutanásia não.             António Neves  INICIANTE: Nesta reflexão de António Barreto Fica evidente que, uma pessoa que se considere, em determinada altura e circunstância, vítima da obrigação de viver contra a sua vontade, deve ter uma saída na lei, na constituição. O mesmo se diz no acórdão do Tribunal Constitucional, quando se admite que, paralelamente ao direito de viver que ninguém pode violar, não deve ser imposto o dever de viver em todas e quaisquer circunstâncias. António Barreto, na minha interpretação, aceita o direito ao suicídio assistido. No fundo, é o que pretende ver legislado quem entende não querer viver mais, em determinadas condições. Eutanásia ou suicídio, é uma porta de saída de um abismo em que a vida se torna, para muitos, muitas vezes. Libertar a pessoa, a seu pedido, é um acto digno e de amor           Sandra. MODERADOR:  Concordo com o sociólogo. Ademais, é muito complicado aferir da verdadeira liberdade do cidadão, especialmente os mais vulneráveis, se estão ou não a ser coagidos por familiares, no sentido de "escolherem" a eutanásia em "liberdade". Numa sociedade envelhecida, com altos graus de pobreza, creio que em muitos casos, a "escolha consciente" recairia sobre deixar de ser um peso. Crónica com muito tino.        GMA  EXPERIENTE: Fala por experiência, é isso? V. Exa. desenvolve uma das mais estapafúrdicas opiniões que já vi expressas sobre o assunto - a dos pobres, potenciais assassinos dos familiares velhos. Haja decência; simples bom senso já não seria mau!    Sandra. MODERADOR: Chá de tília, caro GMA, dizem que ajuda. Saúde!        GMA  EXPERIENTE: À Sandra recomendo um copo de tinto, pode ser fatela, mas de elevada capacidade alcoólica!            Rita Cunha Neves  INICIANTE: Que grande chá, Sandra!          GMA  EXPERIENTE:Mera retórica, no limite da falácia, a tentativa do Dr. António Barreto para estabelecer uma fronteira clara entre eutanásia e morte assistida. Ao contrário do que afirma, quer uma quer das vias para um fim de vida digno carece, como não poderia deixar de ser, da vontade informada e livremente expressa do próprio. Para quê, portanto, Dr. Barreto, o jogo de palavras que desenvolve para manifestar a sua oposição à legalização de um acto de Liberdade Individual? Como lapidarmente disse o Presidente do Tribunal Constitucional "O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”.  Mario Coimbra INFLUENTE: Caro GMA, desculpe lá mas eu por vezes penso que você não lê bem estes textos. A Eutanásia e diferente do Suicídio Assistido.  Sa1004065  INICIANTE: Concordo que só e só o paciente deve decidir o que deseja e no momento, e nunca terceiros! De contrário seria abrir uma porta muito perigosa num mundo cada vez mais movido por ganância e sem escrúpulos.           Mário Guimarães  INICIANTE: Ser deputado hoje é estar num mundo longe dos cidadãos. Cometer loucuras sem terem a noção que as cometem. Uma reforma é urgente para acabar com este modus operandi. A qualidade dos deputados é muito má.         cidadania 123  EXPERIENTE: Concordo na íntegra: a eutanásia é abrir uma caixa perigosa para uma sociedade que se diz humanista. O suicídio assistido é civilizacional, é dar dignidade, é evitar corpos em baixo de Pontes, em linhas de comboio, com tiros na cabeça, sofrimento de tentativas falhadas. Os deputados que promoveram a discussão e votação desta lei, no mês com mais mortes de idosos de sempre, deviam ter vergonha . Só demonstram que não vivem no mesmo mundo e não representam o povo...

 

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