terça-feira, 16 de março de 2021

A lei do mais forte


Estará sempre em voga, para obstar aos desencaminhamentos ou para impor novas regras. A educação poderia obviar um pouco, no sentido de cada um assumir a sua liberdade respeitando a dos outros, mas isso são falácias, está visto, de acordo com o provérbio da sabedoria popular: Se queres conhecer o vilão põe-lhe a vara na mão. O lema da Revolução Francesa era bem bonito, com essas abstracções da Liberdade, Igualdade, Fraternidade e deu no que deu de tropelias e paixões descabeladas, tal como essas novas verdades do “abaixo o capitalismo” promotor de iguais terrorismos. É que os conceitos dependem dos outros conceitos e o que é verdade hoje pode não ser amanhã, no niilismo contundente de não aceitar normas ou na arrogância totalitarista de querer impor outras normas, a ponto de já não se distinguir o que é uma educação centrada no respeito pelas normas. Normas, que é isso?

Isaiah Berlin: contra o tribalismo /premium

“Liberdade é liberdade, não é igualdade, nem equidade, nem justiça, nem cultura, nem felicidade humana, nem uma consciência tranquila”.

JOÃO CARLOS ESPADA

OBSERVADOR,15 mar 2021

1Na semana passada, teve lugar um muito animado seminário online de dois dias sobre Isaiah Berlin (1909-1997). Foi promovido pelo Labô (Laboratório de Política, Comportamento e Mídia) da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), em colaboração com o IEP-UCP (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa). Foi uma muito estimulante conversação académica no âmbito da Teoria Política e da História das Ideias Políticas (neste âmbito está também a decorrer com grande adesão pública um outro Seminário conjunto sobre “Seis Revoluções da Era Moderna”). Além disso, creio ter sido também uma estimulante conversação pluralista entre diferentes pontos de vista — em vincado contraste com o ambiente tribal e intolerante que cresce nas nossas democracias.

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Berlin era em tudo contrário ao tribalismo e ao confronto fundamentalista entre facções rivais com rivais ambições à imposição da sua verdade única e exclusiva. Ficou particularmente célebre a sua palestra de 1958 no All Souls College, Oxford, intitulada “Dois conceitos de liberdade”. (Isaiah Berlin e os “dois conceitos de liberdade ficaram para sempre indissociáveis). Aí distinguiu liberdade negativa de liberdade positiva e sustentou o conceito fundamental de pluralismo — no qual fundou a prioridade da liberdade negativa (ou ausência de coerção intencional por terceiros).

Uma das várias frases célebres daquela palestra merece ser revisitada: “Liberdade é liberdade, não é igualdade, nem equidade, nem justiça, nem cultura, nem felicidade humana, nem uma consciência tranquila”. A frase exprimia a preferência de Berlin pelo conceito de liberdade negativa associada aos liberais clássicos — entre os quais incluía John Locke, Montesquieu, Tocqueville e John Stuart Mill, entre muitos outros. Para esta tradição da liberdade negativa (mais tarde designada pelos seus críticos, da esquerda radical e da direita radical, como “burguesa” ou/e “capitalista”), a liberdade deve ser entendida basicamente como ausência de coerção por terceiros.

Em termos políticos, o conceito de liberdade negativa supõe a existência de um estado limitado pela lei, sediado num Parlamento que presta contas aos eleitores, e que respeita e protege a esfera privada das decisões pessoais e a pluralidade de associações privadas a que chamamos sociedade civil.

3Ao defender enfaticamente a prioridade deste entendimento negativo da liberdade, Berlin sublinhou que esse entendimento não implica que a liberdade seja o único valor estimável. Existem muitos outros (designadamente os que ele propositadamente incluiu na famosa citação já referida: seguramente são estimáveis os valores da igualdade, ou da equidade, ou da justiça, ou da cultura, ou da felicidade humana, ou de uma consciência tranquila). Mas Berlin criticou a ideia monista de que é possível reconciliar todos esses valores num todo harmonioso, sem conflito nem tensão entre eles. Essa ideia monista de imaginar o paraíso na terra é infeliz, disse Berlin. Em regra, gera infernos totalitários.

Daí que Berlin tenha defendido uma abordagem pluralista: existe objectivamente uma pluralidade de valores, muitos deles estimáveis, muito deles respeitáveis. Mas a harmonia total entre eles não é possível. Haverá choques, ou, pelo menos, tensões. E terá de haver escolhas. Uma sociedade decente tentará evitar escolhas trágicas. Mas não pode reconciliar todos os valores. O desejável compromisso entre eles implicará sempre alguma perda em cada um deles. A esta modesta aceitação da pluralidade de valores e do desejável compromisso entre eles, Berlin chamou pluralismo.

Creio que foi por essa razão que Berlin concluiu que “o pluralismo, com a medida de liberdade negativa que ele implica, parece-me ser um ideal mais verdadeiro e mais humano do que os objectivos daqueles que procuram nas grandes, disciplinadas e autoritárias estruturas o ideal do autogoverno ‘positivo’, por classes, ou povos, ou pelo conjunto da humanidade. É mais verdadeiro, porque pelo menos reconhece o facto de que os objectivos humanos são muitos, nem todos eles comensuráveis, e em perpétua rivalidade uns com os outros.”

4A conferência de Isaiah Berlin em Oxford sobre os dois conceitos de liberdade foi justamente interpretada como um eloquente manifesto anti-comunista. E Isaiah sempre reconheceu e assumiu a sua disposição anti-comunista. À qual gostava sempre de acrescentar a sua disposição anti-nazi e anti-fascista. E a ambas gostava sempre de acrescentar a sua disposição em prol da chamada “democracia burguesa ou capitalista euro-atlântica”.

Talvez por motivos pessoais, Berlin associava esta democracia burguesa euro-atlântica sobretudo à tradição britânica de soberania do pluralismo parlamentar sob a regência da leiNascido em Riga, na Letónia, em 1909, deslocou-se com seus pais para S. Petersburgo, em 1917. A família festejou a inicial revolução liberal russa (depois designada burguesa) de Fevereiro de 1917. Em seguida, assistiram com horror à brutalidade fanática da revolução comunista de Outubro.

Os pais de Berlin acharam que já tinham a sua dose de brutalidade comunista e, em 1921, escolheram o exílio em Inglaterra. Isaiah Berlin estudou então na St. Paul School, Londres, e depois em Christ Church, Oxford. No início da II Guerra, alistou-se como voluntário nas Forças Armadas britânicas. Devido a um problema fisiológico, não foi admitido. Ficou devastado. Conseguiu em seguida ser admitido no corpo diplomático britânico e foi enviado para a Embaixada britânica em Washington. Daí começou a enviar notáveis relatórios semanais — que o primeiro-ministro Winston Churchill exigiu ser o primeiro a ler, logo que chegassem.

5Michael Ignatieff, biógrafo de Isaiah Berlin, descreve assim a profunda convicção pluralista de Isaiah:

“Durante toda a sua vida, Berlin atribuiu ao espírito inglês quase todo o conteúdo do seu liberalismo: ‘Que o respeito decente pelos outros e a tolerância em relação à discordância são melhores do que o orgulho e o sentido de missão nacional; que a liberdade pode ser incompatível com, e melhor do que, demasiada eficiência; que o pluralismo e um certo desalinho são, para aqueles que valorizam a liberdade, melhores do que a imposição de sistemas abrangentes, por mais racionais e desinteressados que estes sejam, e melhores do que a vontade da maioria contra a qual não haja apelo.’

 

FILOSOFIA POLÍTICA    POLÍTICA   LIBERDADES   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Paulo Silva: O problema dos abstractos valores é no concreto serem conflituantes entre si, e por isso em Política não há valores absolutos. Levar um valor ao seu extremo, para além de abstracto, é excluir outros. Dos dois valores mais em voga - Liberdade e Igualdade - temos um bom exemplo do quão difícil é a conjugação. Por isso para mim a ausência de coerção intencional por terceiros é também precisamente o que peço da Liberdade, nem mais nem menos. Não posso voar, não nasci com asas. Alguém me priva de voar? A Mãe Natureza?!… Não, ninguém. Voar não é uma liberdade minha. Tenho um braço, posso movê-lo, mas se outro braço mo prender, deliberadamente contra minha vontade, aí alguém me priva da minha Liberdade, (e está a ir contra a Igualdade conquanto eu não possa responder na mesma moeda). Posso não aceitar passivamente tudo o que a Natureza me dá, mas isso já não é questão de Liberdade…           Karoshi: Liberdade é também viver sem preocupações excessivas, com a próxima refeição, com a possibilidade de ficar sem casa, com a saúde,... É a capacidade de viver sem grandes fardos ou receios, é aquela paz de espírito que nos permite contemplar e desfrutar da vida.     Paulo Silva  >Karoshi: A comunidade dos filhos de Israel saciada dia-a-dia com o “maná caído dos céus” não diria melhor… religiosa liberdade.            Karoshi > Paulo Silva: Percebo um certo sarcasmo na tua resposta. No entanto ter a oportunidade de viver sem fardos e preocupações excessivas continua a ser preferível a passar fome, a sobreviver com medo e a ter uma existência violenta...             Paulo Silva  > Karoshi: Claro que sim. Mas quem é que deliberadamente o faz passar fome, etc?...           Karoshi > Paulo Silva: Essa não é a questão. Mas o melhor seria fazer essa pergunta a todas aquelas pessoas que sobreviveram a fomes e perderam casas por causa de "crises" do sistema financeiro. Ou a todas aquelas pessoas que estiveram financeiramente dependentes de uma relação violenta, seja em família ou no trabalho. E já nem falo daquelas que perderam quase tudo (incluindo a saúde) por causa de perseguições políticas ou ideológicas. Nem das que morreram por todos os motivos indicados neste comentário.           Jose Miguel Pereira: Muito bom. Li pouco do que escreveu Isaiah Berlin, tenho de ler mais. Gostei muito do "A Raposa e o Ouriço".          Luis Eduardo Jardim: Muito interessante!         João Porrete: Problema: os anglossaxónicos, e muito especialmente os britânicos, tornaram-se os principais entusiastas desse atentado declarado à liberdade de expressão que é o politicamente correto e desses atentados à dignidade humana que são quotas para grupos, inclusão à força e perseguição dos recalcitrantes. É uma decadência espectacular que o povo britânico nem viu chegar por meio de trabalhistas e conservadores.           José Santos > João Porrete: Passam pela humilhação de ver Macron a declarar guerra à cultura Woke, e ser a França a querer agora abolir a linguagem inclusiva. Tenho esperança que a Europa resista a isto. É bom que a direita e mesmo a esquerda moderada tenha a noção que a coisa não pode avançar mais.              Carlos Grosso: Estamos a precisar de liberdade. Pena é que o 25 de abril, muito festejado por muitos, seja da liberdade apenas no nome, mas na prática seja objectivamente pela desliberdade.           Antonio Monge > Carlos Grosso: O 25 de Abril quase que era a troca de uma Ditadura por outra ainda pior. Liberdade foi o 25 de Novembro.              Maria Nunes: Excelente.             Vaipo Caraxo: A falta que Isaiah Berlin faz nos dias de hoje. Mas hoje ninguém tem a coragem - ou a loucura e sentido ‘suicida’ - para ‘ser’ assumidamente Isaiah Berlin. E é compreensível          Antes pelo contrário: Liberdade é um conceito relativo, porque a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade do outro - exemplos óbvios, os violadores, os pedófilos ou os criminosos em geral - pelo que deve ser enquadrada pela Lei. Já a Igualdade deveria ser sempre entendida como um conceito absoluto!!! Mas quando começam a criar "quotas", e a falar de "equidade", de "isentos", "prioritários", ou "minorias", etc. estão a destruí-la todos os dias!!! Ninguém deve ser privilegiado nem discriminado, nem isento de obrigações ou de deveres, nem ter deveres ou obrigações acrescidas. Não é admissível que em nome da "igualdade" possa haver quotas para pessoas de um sexo em detrimento de outro, de forma tão ostensivamente inconstitucional!!!              João Porrete > Antes pelo contrário: Igualdade conceito absoluto?! Então se faz favor pegue no seu dinheiro, vá ao Bairro Padre Cruz e dê todo o que tiver em excesso face à riqueza média de lá. A igualdade, embora atraente, é um conceito que se presta a muito mais excessos do que os outros citados no artigo. Não é possível excesso de solidariedade; o excesso de liberdade é difícil porque convida imediatamente a reclamações das partes prejudicadas. Agora a igualdade só pode obter-se por coerção, excepto na pequena parte proveniente de dádivas voluntárias, sempre escassas. No resto concordo consigo.           bento guerra: Todos ao molhe e fé na sorte!                António Vieira: Excelente!

 

 

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