Entretidos com estas análises que nos
revelam os brincos do nosso ego. Já Fernando Pessoa o tentava,
numa constância de intelectual brilhante e deprimido:
«Escravos
cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.»
Não é o caso hoje, que precisamos do pão para a boca, e dessas angústias não temos, que são as dos génios, intelectuais e sensíveis até à desolação e aniquilamento:
«(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»
Não, hoje mantemo-nos firmes nesta nossa posição da pequena suja, que come chocolates com a avidez feliz das suas sensações. Comamos, pois, chocolates também, embalados, sim, na preocupação pelo chocolate seguinte.
OPINIÃO: As direitas
O PSD tem de tudo, mas tem sido
historicamente um travão ao crescimento da extrema-direita. Esse papel parece
agora esgotar-se.
PÚBLICO,6 de Março
de 2021
Tal
como com as esquerdas, também há várias direitas. A democrática e a não
democrática. No essencial, o que as separa é a democracia. Para uma, mesmo
valores para si importantes como a propriedade, a religião e a nação devem
articular-se com a democracia e esta deve respeitar a liberdade. Para a
outra, democracia e a liberdade individual são princípios residuais ou
dispensáveis.
Interessante
e perturbador é o facto de certas diferenças entre tendências de direita
reproduzirem diferenças entre esquerdas e direitas. A direita
trata da pobreza com a caridade, mas mais humanidade e cuidado. A esquerda
trata da pobreza com as leis e a igualdade, mas sem humanidade. A esquerda diz
que a cultura e as ideias são suas. Nem sempre é verdade, mas há aí qualquer
coisa. São bens mais acessíveis. A direita é mais de interesses. São bens mais
seguros.
Não
é a autoridade que distingue a esquerda da direita. Mas sim as duas esquerdas,
uma da outra, e as duas direitas, uma da outra. A firme autoridade do Estado,
com essa designação ou a de Partido, é apanágio dos radicais, da direita ou da
esquerda. Ao patrocinado da propriedade e do sangue, próprio da direita, a
esquerda opõe o nepotismo de partido. A esquerda defende a igualdade, a direita
a eficiência.
Entre os grandes valores e princípios
da direita, contam-se a nação, a ordem, a família, a desigualdade natural e a
hierarquia social. Como se sabe, tudo isto separa direita de esquerda. Além
disso, há valores que podem ou não ser respeitados pelas direitas: a religião,
Deus e o trabalho.
Estas crenças fazem com que as
direitas sejam complacentes com a pobreza, o nepotismo, o nacionalismo e a
xenofobia. Nenhum destes atributos é absolutamente exclusivo das direitas, mas
são aqui mais frequentes. E podem ter semelhanças com as esquerdas radicais,
igualmente praticantes do nepotismo, do nacionalismo e de formas de xenofobia.
A liberdade individual e o
Estado são outros factores que separam as direitas. Para uns, o liberalismo económico, político e
cultural é de rigor. Para outros, a autoridade do Estado vem à cabeça.
Nas
últimas décadas da monarquia constitucional, durante a República e ao longo da
ditadura do Estado Novo, nunca a direita preferiu o liberalismo, nunca a
direita deixou de venerar o Estado e o seu papel na economia e na administração. Depois do 25 de Abril, todos os motivos eram bons
para reforçar o papel do Estado, cujo peso se justificava para lutar contra o
comunismo. Mas, quando se tratou de reprivatizar as empresas,
uma espécie de vento liberal parecia soprar na política.
Em Portugal, a direita liberal está extraordinariamente
ausente. Sempre esteve. As razões são muitas, desde o papel do Estado, passando
pelo analfabetismo e pelo catolicismo, até à pobreza e à desigualdade. Se
procurarmos, durante os últimos séculos, rastos de liberalismo, encontraremos
pouca coisa. E mesmo os “liberais” do século XIX, os das “guerras liberais”, como ficaram
conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais.
Assim
é que a direita salazarista se gabou de ser anti-liberal e anti-democrática,
com simpatias pelos Alemães e sem qualquer apego pelos Aliados. Podia não ser
nazi ou fascista de gema, mas desprezava as democracias anglo-saxónicas. O
nacionalismo da direita impedia-a de acarinhar a ideia de ver alemães,
italianos e espanhóis em Portugal. Mas eram estes, seguramente, os preferidos no grande conflito mundial.
Não
é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas e racistas, e que as
esquerdas sejam solidárias e inclusivas. Há xenofobia e racismo nos dois lados
Em
Portugal, onde tudo parece diferente, uma parte importante da direita diz-se
social-democrata. O que é pelo
menos estranho. E a democracia cristã garante que não é bem isso, mas sim
social cristã. E a extrema-direita tem vergonha de dizer que é salazarista.
O mais curioso é o facto de o PSD se dizer social-democrata. O essencial da
direita anda por ali. Mas há por lá uns tantos social-democratas e uns poucos
liberais. São genuínos, mas não fazem com que o partido o seja. Aquele partido
tem de tudo, mas tem sido historicamente um travão ao crescimento da
extrema-direita, mas esse papel, tão benfazejo, parece agora esgotar-se. O PSD está hoje
mais disponível a conviver ou coexistir com a extrema-direita do que a
barrar-lhe o caminho.
Também
a religião tem papel importante na direita em geral e na
portuguesa em particular. Até há pouco tempo, quando a Igreja era, sem
hesitação, maioritária ou essencialmente de direita, o panorama estava claro. Jacobinos
e republicanos à esquerda, católicos e monárquicos à direita. Mas a
Igreja mudou. É hoje
fácil encontrar, no seu seio, grupos, pensamentos e valores de esquerda. Em
todo o caso, inspirações que a aproximam do mundo do trabalho e dos sindicatos,
assim como do universo dos costumes mais permissivos, solidários e igualitários.
Estrangeiros, imigrantes e minorias sempre foram questão importante. Não é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas
e racistas, e que as esquerdas sejam solidárias e inclusivas, para utilizar
termos tão em moda. Há xenofobia e racismo nos dois lados. Como
há em cada lado políticas favoráveis e desfavoráveis à imigração. Mas também é verdade que é nas direitas que se
encontram mais sensibilidades patrióticas, mais crentes na portugalidade, mais
defensores da civilização cristã, mais oposição às políticas de abertura
aos imigrantes e aos refugiados. Como é
também nas direitas que é mais vincada a atitude favorável a uma integração
“forte” dos imigrantes e estrangeiros, isto é, devem vir poucos e os que vêm
devem adoptar valores e costumes portugueses. O “multiculturalismo” existe
em todo o lado, mas é mais próprio das esquerdas e menos apreciado nas
direitas.
O
futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se ambas
souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos
Há
ainda a questão do mérito. Uma das mais estranhas. Na verdade, tempo houve em
que o mérito se opunha à família, ao sangue e à herança. Era o mérito de cada
um que podia criar condições de igualdade de oportunidades. O mérito era um
valor da democracia e até da esquerda. Curiosamente, o valor do mérito tem
vindo a diminuir para a esquerda. E não se sabe se a crescer para a direita.
Para as empresas, talvez. Para a política e a sociedade, menos.
A direita prefere o mercado, a concorrência e a iniciativa privada,
mas recorre ao Estado sempre que precisa. O problema é que precisa muitas
vezes. A direita é hoje menos rígida diante
de certos valores, como sejam a permissividade sexual, a liberdade de género, a
igualdade de sexos, o aborto, o divórcio ou a união de facto. Uma coisa é
certa: o futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se
ambas souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos.
Sociólogo
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COMENTÁRIOS:
Ahfan Neca EXPERIENTE: Direita que tem
vergonha de se dizer salazarista? Onde está? Quem são? Convinha esclarecer.06.03.2021 JarDiniz INFLUENTE: O que antes era
claro e típico de cada um destes blocos ideológicos é hoje muito menos porque
já não há "bandeiras" exclusivas, por exemplo, nas questões
ambientais. Com a chegada ao poder das novas gerações essa distinção irá ainda
esbater-se mais.
Agostinho Pinto INICIANTE: Independentemente
de concordar ou não com a intrincada descrição de direitas e esquerdas
preconizada por A. Barreto, pelo menos numa coisa, consegue ser bastante
diferenciador. O de não vir colar o rótulo de diabo às direitas radicais e de
anjos às esquerdas igualmente radicais. Na verdade, sabemos bem, quem tem
seriedade intelectual, pelo menos, que ambas são faces de uma mesma moeda, que
é a moeda da intolerância, da não aceitação da diferença, do pensar diferente e
do remar contra a corrente instalada. Com Isso, quer direitas quer esquerdas
radicais, não sabem conviver. FPSOARES INICIANTE: "A direita
trata da pobreza com (…) mais humanidade e cuidado. A esquerda trata da pobreza
(…) sem humanidade" Fowler Fowler EXPERIENTE: Neste razoado,
esqueceu-se, porventura, de referir a atracção que a “direita latifundiária”
exerce sobre alguns dos nossos concidadãos que se dizem pertencer à família da
esquerda. “... os das “guerras liberais”, como ficaram
conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais”.
O sr. Barreto já confessou que não tem qualquer admiração pelos ideólogos da
revolução liberal em Portugal que levou, como se sabe, à queda do Antigo Regime
e que permitiu a instauração da separação dos poderes do Estado, da liberdade
económica e política, bem como da liberdade de expressão. A razão do descrédito
que lhes atribui reside no facto desses heróis se terem inspirado nos revolucionários
franceses e não nos liberais anglo-saxões que, há quatro décadas, tanto
enaltece e admira. A sua admiração vai sempre para os “builder of buildings” e
nunca para pessoas como Ferreira Borges ou Fernandes Tomás. miguelc EXPERIENTE: o estilo do AB às
vezes implica distanciamento. Mas acho que consigo lá chegar. Enquanto leitura
da realidade, sinto falta de um ponto que é muito influente e, parece-me,
crítico para perceber a situação actual e vindoura: o posicionamento de uns e
outros perante o grande capital e perante os grandes grupos económicos. Isso é
que é determinante da saúde dos Estados. cidadania 123 EXPERIENTE: Concordo no geral
com esta análise, mas falta-lhe o calculismo político. Aquele em que a esquerda
aprova o que é de direita por mero interesse do momento, ou a direita se
mascara com princípios que nunca adoptaria se governasse sozinha. Infelizmente,
e devido ao frágil equilíbrio das nossas forças políticas, quase todas
cativadas por interesses próprios, a governação é de curto prazo e guiada por
critérios populistas, muito determinados pela comunicação social. Temos que
mudar o nosso sistema político para conseguirmos ter um país melhor. GMA EXPERIENTE: Da clareza do
Pacheco Pereira à monumental confusão do António Barreto! Mario Coimbra
INFLUENTE: Caro
GMA, não há necessidade. Nem PP foi assim tão claro nem AB foi assim tão
confuso.
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