domingo, 7 de março de 2021

E assim vamos andando


Entretidos com estas análises que nos revelam os brincos do nosso ego. Já Fernando Pessoa o tentava, numa constância de intelectual brilhante e deprimido:

«Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.»

Não é o caso hoje, que precisamos do pão para a boca, e dessas angústias não temos, que são as dos génios, intelectuais e sensíveis até à desolação e aniquilamento:

«(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.»

Não, hoje mantemo-nos firmes nesta nossa posição da pequena suja, que come chocolates com a avidez feliz das suas sensações. Comamos, pois, chocolates também, embalados, sim, na preocupação pelo chocolate seguinte.

OPINIÃO: As direitas

O PSD tem de tudo, mas tem sido historicamente um travão ao crescimento da extrema-direita. Esse papel parece agora esgotar-se.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO,6 de Março de 2021

Tal como com as esquerdas, também há várias direitas. A democrática e a não democrática. No essencial, o que as separa é a democracia. Para uma, mesmo valores para si importantes como a propriedade, a religião e a nação devem articular-se com a democracia e esta deve respeitar a liberdade. Para a outra, democracia e a liberdade individual são princípios residuais ou dispensáveis.

Interessante e perturbador é o facto de certas diferenças entre tendências de direita reproduzirem diferenças entre esquerdas e direitas. A direita trata da pobreza com a caridade, mas mais humanidade e cuidado. A esquerda trata da pobreza com as leis e a igualdade, mas sem humanidade. A esquerda diz que a cultura e as ideias são suas. Nem sempre é verdade, mas há aí qualquer coisa. São bens mais acessíveis. A direita é mais de interesses. São bens mais seguros.

Não é a autoridade que distingue a esquerda da direita. Mas sim as duas esquerdas, uma da outra, e as duas direitas, uma da outra. A firme autoridade do Estado, com essa designação ou a de Partido, é apanágio dos radicais, da direita ou da esquerda. Ao patrocinado da propriedade e do sangue, próprio da direita, a esquerda opõe o nepotismo de partido. A esquerda defende a igualdade, a direita a eficiência.

Entre os grandes valores e princípios da direita, contam-se a nação, a ordem, a família, a desigualdade natural e a hierarquia social. Como se sabe, tudo isto separa direita de esquerda. Além disso, há valores que podem ou não ser respeitados pelas direitas: a religião, Deus e o trabalho.

Estas crenças fazem com que as direitas sejam complacentes com a pobreza, o nepotismo, o nacionalismo e a xenofobia. Nenhum destes atributos é absolutamente exclusivo das direitas, mas são aqui mais frequentes. E podem ter semelhanças com as esquerdas radicais, igualmente praticantes do nepotismo, do nacionalismo e de formas de xenofobia.

A liberdade individual e o Estado são outros factores que separam as direitas. Para uns, o liberalismo económico, político e cultural é de rigor. Para outros, a autoridade do Estado vem à cabeça.

Nas últimas décadas da monarquia constitucional, durante a República e ao longo da ditadura do Estado Novo, nunca a direita preferiu o liberalismo, nunca a direita deixou de venerar o Estado e o seu papel na economia e na administração. Depois do 25 de Abril, todos os motivos eram bons para reforçar o papel do Estado, cujo peso se justificava para lutar contra o comunismo. Mas, quando se tratou de reprivatizar as empresas, uma espécie de vento liberal parecia soprar na política.

Em Portugal, a direita liberal está extraordinariamente ausente. Sempre esteve. As razões são muitas, desde o papel do Estado, passando pelo analfabetismo e pelo catolicismo, até à pobreza e à desigualdade. Se procurarmos, durante os últimos séculos, rastos de liberalismo, encontraremos pouca coisa. E mesmo os “liberais” do século XIX, os das “guerras liberais”, como ficaram conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais.

Assim é que a direita salazarista se gabou de ser anti-liberal e anti-democrática, com simpatias pelos Alemães e sem qualquer apego pelos Aliados. Podia não ser nazi ou fascista de gema, mas desprezava as democracias anglo-saxónicas. O nacionalismo da direita impedia-a de acarinhar a ideia de ver alemães, italianos e espanhóis em Portugal. Mas eram estes, seguramente, os preferidos no grande conflito mundial.

Não é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas e racistas, e que as esquerdas sejam solidárias e inclusivas. Há xenofobia e racismo nos dois lados

Em Portugal, onde tudo parece diferente, uma parte importante da direita diz-se social-democrata. O que é pelo menos estranho. E a democracia cristã garante que não é bem isso, mas sim social cristã. E a extrema-direita tem vergonha de dizer que é salazarista. O mais curioso é o facto de o PSD se dizer social-democrata. O essencial da direita anda por ali. Mas há por lá uns tantos social-democratas e uns poucos liberais. São genuínos, mas não fazem com que o partido o seja. Aquele partido tem de tudo, mas tem sido historicamente um travão ao crescimento da extrema-direita, mas esse papel, tão benfazejo, parece agora esgotar-se. O PSD está hoje mais disponível a conviver ou coexistir com a extrema-direita do que a barrar-lhe o caminho.

Também a religião tem papel importante na direita em geral e na portuguesa em particular. Até há pouco tempo, quando a Igreja era, sem hesitação, maioritária ou essencialmente de direita, o panorama estava claro. Jacobinos e republicanos à esquerda, católicos e monárquicos à direita. Mas a Igreja mudou. É hoje fácil encontrar, no seu seio, grupos, pensamentos e valores de esquerda. Em todo o caso, inspirações que a aproximam do mundo do trabalho e dos sindicatos, assim como do universo dos costumes mais permissivos, solidários e igualitários.

Estrangeiros, imigrantes e minorias sempre foram questão importante. Não é verdade que as direitas sejam claramente xenófobas e racistas, e que as esquerdas sejam solidárias e inclusivas, para utilizar termos tão em moda. Há xenofobia e racismo nos dois lados. Como há em cada lado políticas favoráveis e desfavoráveis à imigração. Mas também é verdade que é nas direitas que se encontram mais sensibilidades patrióticas, mais crentes na portugalidade, mais defensores da civilização cristã, mais oposição às políticas de abertura aos imigrantes e aos refugiados. Como é também nas direitas que é mais vincada a atitude favorável a uma integração “forte” dos imigrantes e estrangeiros, isto é, devem vir poucos e os que vêm devem adoptar valores e costumes portugueses. O “multiculturalismo” existe em todo o lado, mas é mais próprio das esquerdas e menos apreciado nas direitas.

O futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se ambas souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos

Há ainda a questão do mérito. Uma das mais estranhas. Na verdade, tempo houve em que o mérito se opunha à família, ao sangue e à herança. Era o mérito de cada um que podia criar condições de igualdade de oportunidades. O mérito era um valor da democracia e até da esquerda. Curiosamente, o valor do mérito tem vindo a diminuir para a esquerda. E não se sabe se a crescer para a direita. Para as empresas, talvez. Para a política e a sociedade, menos.

A direita prefere o mercado, a concorrência e a iniciativa privada, mas recorre ao Estado sempre que precisa. O problema é que precisa muitas vezes. A direita é hoje menos rígida diante de certos valores, como sejam a permissividade sexual, a liberdade de género, a igualdade de sexos, o aborto, o divórcio ou a união de facto. Uma coisa é certa: o futuro da democracia depende tanto da esquerda como da direita. Se ambas souberem ser democráticas. E conseguirem derrotar os seus inimigos.

Sociólogo

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COMENTÁRIOS:

Ahfan Neca EXPERIENTE: Direita que tem vergonha de se dizer salazarista? Onde está? Quem são? Convinha esclarecer.06.03.2021           JarDiniz INFLUENTE: O que antes era claro e típico de cada um destes blocos ideológicos é hoje muito menos porque já não há "bandeiras" exclusivas, por exemplo, nas questões ambientais. Com a chegada ao poder das novas gerações essa distinção irá ainda esbater-se mais.               Agostinho Pinto INICIANTE: Independentemente de concordar ou não com a intrincada descrição de direitas e esquerdas preconizada por A. Barreto, pelo menos numa coisa, consegue ser bastante diferenciador. O de não vir colar o rótulo de diabo às direitas radicais e de anjos às esquerdas igualmente radicais. Na verdade, sabemos bem, quem tem seriedade intelectual, pelo menos, que ambas são faces de uma mesma moeda, que é a moeda da intolerância, da não aceitação da diferença, do pensar diferente e do remar contra a corrente instalada. Com Isso, quer direitas quer esquerdas radicais, não sabem conviver.            FPSOARES INICIANTE: "A direita trata da pobreza com (…) mais humanidade e cuidado. A esquerda trata da pobreza (…) sem humanidade"      Fowler Fowler EXPERIENTE: Neste razoado, esqueceu-se, porventura, de referir a atracção que a “direita latifundiária” exerce sobre alguns dos nossos concidadãos que se dizem pertencer à família da esquerda.   “... os das “guerras liberais”, como ficaram conhecidas as guerras civis, não brilhavam pelo seu culto das ideias liberais”. O sr. Barreto já confessou que não tem qualquer admiração pelos ideólogos da revolução liberal em Portugal que levou, como se sabe, à queda do Antigo Regime e que permitiu a instauração da separação dos poderes do Estado, da liberdade económica e política, bem como da liberdade de expressão. A razão do descrédito que lhes atribui reside no facto desses heróis se terem inspirado nos revolucionários franceses e não nos liberais anglo-saxões que, há quatro décadas, tanto enaltece e admira. A sua admiração vai sempre para os “builder of buildings” e nunca para pessoas como Ferreira Borges ou Fernandes Tomás.              miguelc EXPERIENTE: o estilo do AB às vezes implica distanciamento. Mas acho que consigo lá chegar. Enquanto leitura da realidade, sinto falta de um ponto que é muito influente e, parece-me, crítico para perceber a situação actual e vindoura: o posicionamento de uns e outros perante o grande capital e perante os grandes grupos económicos. Isso é que é determinante da saúde dos Estados.          cidadania 123 EXPERIENTE: Concordo no geral com esta análise, mas falta-lhe o calculismo político. Aquele em que a esquerda aprova o que é de direita por mero interesse do momento, ou a direita se mascara com princípios que nunca adoptaria se governasse sozinha. Infelizmente, e devido ao frágil equilíbrio das nossas forças políticas, quase todas cativadas por interesses próprios, a governação é de curto prazo e guiada por critérios populistas, muito determinados pela comunicação social. Temos que mudar o nosso sistema político para conseguirmos ter um país melhor.      GMA EXPERIENTE: Da clareza do Pacheco Pereira à monumental confusão do António Barreto!          Mario Coimbra INFLUENTE: Caro GMA, não há necessidade. Nem PP foi assim tão claro nem AB foi assim tão confuso.

 

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