“Luxe, calme et volupté”.
Uma “viagem” de beleza e ordem, autêntico luxo para nós que, em volúpias de prazer – literário, está visto - recebem a bênção destes escritos nobres de Jaime Nogueira Pinto. Não os escreve sem intenção, todavia, no sentido da condenação de uma sociedade limitada e parcial sempre, que se eterniza na aceitação do desvio, da fuga da norma, tal o caso de Baudelaire (como do Villon, com a sua “Ballade des Pendus”), que, para além das temáticas recusadas pelo convencionalismo literário das épocas idas, soube denunciar a pequenez de homens como Rousseau, instigadores de uma revolução calamitosa, na doutrina propalada de uma democracia revanchista, como a iniciada com a Revolução Francesa. Viajemos, sim, por esta prosa rica de JNP e retomemos Baudelaire, e os seus contrastes de ideal e repulsivo, que aquele nos fez novamente procurar.
Baudelaire, o incorrecto /premium
O que escandalizaria hoje os “empresários da felicidade pública”, o que
condenaria hoje Baudelaire seria a coexistência da sua vida boémia e da sua
arte pioneira com o seu reaccionarismo político
JAIME NOGUEIRA
PINTO, Colunista do Observador
OBSERVADOR,25 jun
2021, 00:11
No dia 9 de
Abril passaram 200 anos sobre o nascimento de Charles Baudelaire, um dos
pioneiros da poesia moderna.
Nesse século
XIX, e até ao meio do século XX, a França foi pátria de vanguardas literárias e
artísticas – com Stendhal, Balzac, Flaubert, Proust e os grandes pintores, entre
os todos Delacroix, que Beaudelaire venerava, e Manet, que pintaria uma das
suas amantes. E mesmo politizada e dividida, a França do século XX
continuou na vanguarda, com escolas e correntes literárias que iam dos
existencialistas aos hussardos, de Roger Martin du Gard a Céline, de Drieu de
la Rochelle a Gide, Sartre e Camus. Infelizmente, nos últimos 40 anos, de
boa novidade literária francesa poucos nomes aparecem além de Michel Houellebecq.
Como Proust foi pioneiro
na escrita de uma odisseia literária em que Deus não está – nem para ser odiado, como em Sade, nem para ser
temido, como em Dostoievsky, nem para ser misericordioso, como em Dickens –, Charles Baudelaire foi, na sua “hipocondria
sensual afundada no martírio, o primeiro a mostrar as suas feridas, a sua
preguiça, a sua inutilidade aborrecida num século devoto e industrioso”. Quem assim o descreve é o
franco-uruguaio Jules Laforgue, seu confrade e contemporâneo. Victor Hugo, a quem Baudelaire dedicaria três poemas de Les Fleurs du Mal, considerava-o “mais resistente que o mármore e mais
penetrante que o nevoeiro inglês”. Mas o poeta maldito não
descansaria enquanto não maldissesse o grande Hugo, confessando-se enfadado
pela “imbecilidade” das laudatórias cartas paternalistas que o genial autor
de Os Miseráveis disparava
para todos os lados e também lhe dirigia: “Que faites vous quand vous
écrivez ces vers saisissants? Que faites vous ? Vous marchez. Vous dotez le
ciel de l’art d’on ne sait quel rayon macabre. Vous créez un frisson nouveau…
Vous êtes un noble esprit et un généreux coeur. Vous écrivez des choses
profondes et souvent sereines. Vous aimez le beau. Donnez moi la main.” É preciso ser ingrato.
Ao contrário,
os legítimos representantes do povo português têm vindo repetidamente a
agradecer e a aceitar a mão estendida de Hugo nas duas cartas laudatórias que
quis enviar a esta “vanguarda da Europa”.
Até porque o ignaro e ingrato povo tende a mostrar-se cada vez mais incapaz de
vislumbrar nos seus representantes laivos dos intrépidos descobridores de
mundos e pioneiros da Verdade aclamados e certificados por Victor Hugo.
Os empresários da felicidade humana (antigos e
modernos)
Produto da boa burguesia francesa, Charles Beaudelaire
viveu afundado numa boémia do espírito e da carne, em amores de tons negros,
que um outro seu contemporâneo – Gustave Flaubert – retomaria em Salammbô.
Órfão de pai,
em guerra com o padrasto militar e autoritário – o general Aupick – Baudelaire
percorre um itinerário escandaloso para o tempo, um itinerário de paixões
incorrectas, sublimadas no simbolismo realista de Les Fleurs du Mal, obra que a Direction de Süreté Publique manda
apreender, acusando o autor de “ultraje à moral pública” e de “ofensa à moral
religiosa”.
O procurador Ernest Pinard fora já o acusador público
de Flaubert, julgado por ter cometido Madame
Bovary. Mas Flaubert fora absolvido, graças à táctica processual do seu
advogado, Jules Senard, que em vez de se escorar na liberdade de expressão ou
na qualidade e especificidade da criação artística, defendera a moralidade do
romance: afinal, a adúltera era castigada e o pensamento de Flaubert era, “da
primeira à última linha”, um “pensamento moral e religioso”, visando a
“exaltação da virtude pelo horror do vício”. Emma Bovary suicidava-se, como
Anna Karenina e como a pobre Luísa de O
Primo Basílio também se finaria
de medo e remorso, e essa era a moral da história.
E a moral ganhava na Europa do triunfo da Burguesia,
assustada pela segunda revolução de 1848, a de Junho.
Baudelaire
não teria a mesma sorte: o requisitório de Pinard levou à proibição de seis dos poemas de Les Fleurs du Mal, e só em 1949, quase um século depois da condenação de 1857, os
“poemas malditos” seriam editados.
Este
currículo de jovem boémio e de artista excêntrico, com amantes de todas as
cores, frequentador do Club des Hashischins, no Hotel de Lauzun, e autor de poemas obscenos não
impressionaria ou escandalizaria hoje os censores de serviço à nova “moral
pública”. A não ser que houvesse
denúncias de assédio. O que lhe daria hoje infâmia, o que escandalizaria hoje a
moral dos “empresários da felicidade pública”, o que condenaria hoje
Baudelaire, seria o uso de expressões como “négresse” ou o facto de o poeta se ter tornado politicamente
reaccionário – e
um reaccionário que desprezava a democracia, negava o Progresso e desdenhava as
utopias sociais do tempo.
Depois dos entusiasmos republicanos e revolucionários
de 1848 por Robespierre e por socialistas utópicos, como Proudhon, Baudelaire confessava, em Le Spleen de Paris, que, fechado no quarto, lera durante quinze dias “livros que tratavam da
arte de tornar os povos, em vinte e quatro horas, felizes, sábios e ricos”. E
especificava:
“Digeri – quero dizer, engoli – todas as
elucubrações de todos estes empresários da felicidade pública…, pelo que não é
de surpreender que estivesse então num estado de espírito próximo da vertigem
ou da estupidez”.
E num tom ainda mais directo, escreveria em Pauvre Belgique:
“Tínhamos todos o espírito republicano nas veias, como a varíola nos
ossos. Estávamos democratizados e sifilíticos”.
A sua desconfiança dos ideais progressistas e o seu
pessimismo antropológico vão ser reforçados com a descoberta de Edgar Allan Poe, autor em que vai encontrar
um mentor e um irmão espiritual. Nos anos cinquenta, Baudelaire escreve sobre
Poe, edita Poe e prefacia as Novas
Histórias Extraordinárias.
Sem se ocupar
expressamente de política ou de filosofia política, Poe também
desconfiava dos entusiasmos optimistas da democracia jeffersoniana e não lhe
faltavam referências críticas às instituições, aos “bigoted lovers of abstract
Democracy” e aos filósofos optimistas, que não mediam os “inevitáveis males”
que emanavam das suas elucubrações nem avaliavam o peso futuro da “tirania da
Multidão”.
Com Poe e de Maistre contra Rousseau
E é no pessimismo antropológico de Poe, essa
característica que Carl Schmitt, no rasto de Maquiavel, apontará como o ponto
de partida da separação das filosofias políticas da Direita e da Esquerda, que
Baudelaire encontra o tronco das suas concepções políticas, escrevendo no
prefácio às Novas Histórias
Extraordinárias:
“Poe, produto
de um século apaixonado por si mesmo, filho de uma nação mais apaixonada por
ela mesma que qualquer outra, viu claramente e reconheceu imperturbavelmente a
maldade natural do Homem”
Baudelaire vê
em Poe um irmão na modernidade, na inovação e na revolução mental e estética.
Sente que o Poe que descreve personagens alienadas e isoladas, arremessadas
para mundos estranhos está especialmente próximo das personagens que também
habitam a sua poesia: seres
exilados, atirados para a modernidade, como o grande cisne de Le Cygne, ou a Andrómaca arrancada aos braços de Heitor
e escravizada, ou a “negrèsse” que contempla nas novas avenidas parisienses de Haussmann a ausência dos
coqueiros da “superbe Afrique”, ou como próprio poeta, preso num mundo extinto, o vieux Paris, e petrificado perante o
novo.
Mas além de Poe, mestre da
literatura fantástica e do terror, a outra grande influência de Baudelaire é Joseph de Maistre, autor das Soirées de
Saint-Petesrbourg e das Considérations sur la France e um dos teorizadores da
contra-revolução.
Joseph de
Maistre vira a Revolução Francesa como um castigo de Deus às elites políticas e
sociais “pela sua impiedade, imoralidade e degradação de costumes”. A Revolução
era a pena merecida pela sociedade do Ancien
Régime, que a Divina Providência se encarregara de aplicar à monarquia e
à aristocracia decadentes, como as tinham pintado os romances de Sade e de
Laclos.
Das influências de Poe e de de
Maistre, nasce em Baudelaire, misturado com tudo o resto, um certo romantismo reaccionário e uma
exaltação de modelos ou figuras nostálgicas, as únicas que valem a pena – o poeta, l’homme qui chante, o
padre, l’homme qui bénit, e o
soldado, l’homme qui sacrifie et se
sacrifie. Tudo o resto era “fait
pour le fouet”.
E, sobretudo, partilha com de Maistre a guerra santa contra Rousseau (“l’homme du monde peut être qui s’est le plus
trompé”) e contra a Filosofia
das Luzes. E, em Spleen de Paris, replica nas suas errâncias
urbanas as passeatas bucólicas do criador do bon sauvage nas Rêveries
du promeneur solitaire para atacar a sua dogmática optimista, que considera especialmente herética
porque derivada da heresia máxima: a ausência do
pecado original na História do homem.
Baudelaire
encarniça-se contra toda a filosofia política de Rousseau e sustenta a
continuidade da natureza humana, que não muda nem progride e que, se é
“naturalmente boa”, é também naturalmente má e perversa. Indigna-se sobretudo com a
permanente exibição, por parte de Rousseau, de preocupações éticas superiores e
com a constante afirmação das suas próprias virtudes e boas intenções. “Sou o mais virtuoso dos
homens”, deixaria cair o autor de Du Contrat Social que, segundo Baudelaire em Les Paradis Artificiels, admirava a
virtude a ponto de “encher os olhos de lágrimas” na contemplação de uma boa
acção ou na antecipação de boas acções que gostaria de praticar, e que isso o
convencia do seu “superlativo valor moral.” Atitude que se repetiria na
rectidão e na ilusão de superioridade moral dos progressistas de todos os
tempos e lugares.
Agentes externos
Baudelaire
fazia parte do Club des Hashishins, onde o Dr. Jacques Joseph Moreau distribuía
aos consórcios a mesma pasta verde que, outrora, o Velho da Montanha dava aos
seus “Assassinos”. O consumo de haxixe e outras drogas tinha vindo para França com a expedição
de Napoleão ao Egipto e tornara-se comum com a conquista da Argélia, a partir
de 1830. O clube funcionou entre 1844 e 1849, no Hotel Lauzun, e entre os
membros contavam-se Alexandre Dumas, Victor Hugo, Théophile Gautier, Gérard de Nerval e Eugène
Delacroix.
Gautier e Baudelaire deixaram de frequentar o Clube, com Gautier a confessar que o faziam, não
porque a droga lhes fizesse mal, mas porque “um verdadeiro escritor” só
precisava dos seus “sonhos naturais” e não queria que “o seu pensamento fosse
influenciado por agentes externos”.
Mulheres,
drogas, boémia parisiense nos anos do Segundo Império, no reinado de uma
burguesia aristocratizada que reprimira as classes trabalhadoras em Junho de
1848 e voltaria a fazê-lo na Comuna. A burguesia do “enrichissez-vous”, que alimentou a ficção de Flaubert, de
Maupassant e de Zola; a burguesia triunfante sob a dolorosa luz do Progresso,
da Indústria, dos comboios, das Exposições Universais.
O pecado original
Como é que
este Baudelaire, seguindo Joseph de Maistre, vai extrair do pecado original uma
teologia política reaccionária, anti-Luzes, anti-Progresso, uma quase “política
tirada das palavras da Sagrada Escritura”, ao modo de Bossuet?
Em Charles Maurras e, de certo modo, em de Maistre, o catolicismo e a
tradição católica funcionavam como base para as doutrinas da contra-revolução.
E Maurras estava e ficou longe da fé e da transcendência, quase até ao fim da
vida.
Baudelaire não; Baudelaire foi sempre um atormentado
pela fé e pela omnipresença do Mal na História e no coração do homem,
constantemente disputado por duas forças: “uma que o empurra para Deus, a outra para Satanás”. André Suarés chamou-lhe um “Dante
sem Paraíso, que oscila sem descanso entre a matéria danada e a redenção”, um
filho de Adão obcecado, como todos os seus grandes antecessores, de Dante a
Milton, pela divina tragédia de um Paraíso perdido e a reencontrar, um homem
revoltado na fé e pela fé, que, num dos seus últimos escritos, Mon Coeur mis à nu, confessa rezar
todas as manhãs a Deus, “fonte de toda a força e de toda a justiça”, ao pai, a
Mariette (a velha criada que o criou e tapou as ausências da mãe) e a Edgar
Allan Poe.
Baudelaire, nos seus curtos 46 anos de vida, mergulhou
a fundo no complexo leque de identidades que foi descobrindo em si. Como
escreve Antoine Compagnon (e poderia escrever-se sobre todos os que, com
coragem, liberdade e grandeza, mergulham a fundo na sua própria natureza e na
natureza humana):
“Há um Baudelaire realista, um Baudelaire decadente, um simbolista, um
satanista, um católico, um ateu, um clássico, um moderno, um reaccionário, um
revolucionário, um santo e hoje mesmo um pós-moderno. Que mais poderá
dizer-se?”
Morreu, roído pela sífilis, confessado e comungado no
número 1 da Rue du Dôme, no Seizième Arrondissement, uma rua entre a Rua
Lauriston e a Avenida Victor Hugo. Uma placa assinala, no edifício, esses
últimos dias do poeta. Foi daí, desse rés-do-chão, num quarto decorado por
dois Manet, (um deles La Maitresse de
Baudelaire), que o poeta maldito partiu para o au-de lá misterioso, levado por essa outra sua amante de sempre,
a Morte, “vieuz capitaine”, que
evocara no final de Le Voyage, um
dos últimos poemas de Les Fleurs du
Mal:
Nous voulons, tant ce feu qui
nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre.
Enfer ou Ciel, qu’importe?
Au fond de l’Inconnu pour
trouver du nouveau!
Não foi por
obedecerem à “moral pública” que Gustave Flaubert e a sua obra sobreviveram ao
tempo. E não foi a correcção moral da altura que impediu Baudelaire de chegar
até nós. Não há moralistas, antigos ou modernos, que
sobrevivam ao tempo ou que impeçam de sobreviver ao tempo os incorrectos de
todos os tempos e facções que, com liberdade e sem medo de “empresários da
felicidade” e de burocratas da moral, se aventurem até ao fundo de si e das
coisas para encontrar o novo e o eterno.
A SEXTA
COLUNA CRÓNICA OBSERVADOR LITERATURA CULTURA
COMENTÁRIOS
António Antunes:
Li Les Fleurs du Mal quando fiz o Erasmus
na Bélgica, numa edição de capa mole oferecida por um companheiro de
apartamento originário de Namur. O que mais recordo é a beleza das palavras
mesclada de bizarria e horror. A obra marcou-me e este excelente artigo
transportou-me de volta a esses tempos.
Américo Silva: Para
compreender com maior facilidade a revolução francesa, acho inestimável a
leitura do livro "L'homme aux quarante écus", de Voltaire. Está lá
muito. É preciso continuar a explorar o povo, de preferência cada vez mais, não
a favor da igreja, ou da nobreza antiga, subentende-se, mas de uma nova pequena
nobreza, faminta, insaciável, parasitária. A revolução futura, futura em
relação a Voltaire, não diz respeito aos servos, será uma substituição de
senhores, assim foi. Rousseau e os outros, fizeram da democracia um meio, um
meio a aplicar aos outros, reservando para si o poder judicial que excluíram de
qualquer democratização. Queriam uma sociedade livre, até certo ponto, onde os
detentores do crédito poderiam extorquir o povo, enquanto os juristas observavam
confortavelmente sentados e inamovíveis no poder. Os senhores do crédito
aproveitaram os ventos de feição, e a nação possuída pelos juízes foi avançando
lentamente, mas sem se deter. Hoje o chamado mundo democrático é cada vez
mais dirigido por figuras não eleitas, como a união europeia, e para ser eleito
é cada vez mais necessário pertencer à irmandade jurídica.
Tudo
isso é apenas um meio, como a igreja de séculos compreendeu há muito, o fim é a
posse do indivíduo, de cada indivíduo. A morte na guerra ou na paz é um
desperdício. Queremos pessoas vivas e submetidas. Submetidas a um poder
universal, seja desportivo, seja económico, seja militar. O processo está em
curso, degrau por degrau. O Covid é um exemplo, depois da gripe fantasma das
aves, muito depois da emissão de papel moeda. A dúvida prende-se com a criação
de um poder universal global ou de dois ou três poderes universais, não mais,
cada um totalitário no seu território.
Esse
poder universal tem uma cúpula, e a sua pequena nobreza de funcionários
institucionais e públicos, com uma pequena corte de líderes de grupos, sejam
grupos económicos, grupos religiosos, grupos de intervenção social e outros,
cada um usado e descartado conforme conveniente. Para o indivíduo não restará
lugar algum.
hermes
trimegisto: Bravo !!!
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