sexta-feira, 25 de junho de 2021

“Là, tout n’est qu’ordre et beauté,”


“Luxe, calme et volupté”.

Uma “viagem” de beleza e ordem, autêntico luxo para nós que, em volúpias de prazer – literário, está visto - recebem a bênção destes escritos nobres de Jaime Nogueira Pinto. Não os escreve sem intenção, todavia, no sentido da condenação de uma sociedade limitada e parcial sempre, que se eterniza na aceitação do desvio, da fuga da norma, tal o caso de Baudelaire (como do Villon, com a sua “Ballade des Pendus”), que, para além das temáticas recusadas pelo convencionalismo literário das épocas idas, soube denunciar a pequenez de homens como Rousseau, instigadores de uma revolução calamitosa, na doutrina propalada de uma democracia revanchista, como a iniciada com a Revolução Francesa. Viajemos, sim, por esta prosa rica de JNP e retomemos Baudelaire, e os seus contrastes de ideal e repulsivo, que aquele nos fez novamente procurar.

Baudelaire, o incorrecto /premium

O que escandalizaria hoje os “empresários da felicidade pública”, o que condenaria hoje Baudelaire seria a coexistência da sua vida boémia e da sua arte pioneira com o seu reaccionarismo político

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador

OBSERVADOR,25 jun 2021, 00:11

No dia 9 de Abril passaram 200 anos sobre o nascimento de Charles Baudelaire, um dos pioneiros da poesia moderna.

Nesse século XIX, e até ao meio do século XX, a França foi pátria de vanguardas literárias e artísticas – com Stendhal, Balzac, Flaubert, Proust e os grandes pintores, entre os todos Delacroix, que Beaudelaire venerava, e Manet, que pintaria uma das suas amantes. E mesmo politizada e dividida, a França do século XX continuou na vanguarda, com escolas e correntes literárias que iam dos existencialistas aos hussardos, de Roger Martin du Gard a Céline, de Drieu de la Rochelle a Gide, Sartre e Camus. Infelizmente, nos últimos 40 anos, de boa novidade literária francesa poucos nomes aparecem além de Michel Houellebecq.

Como Proust foi pioneiro na escrita de uma odisseia literária em que Deus não está – nem para ser odiado, como em Sade, nem para ser temido, como em Dostoievsky, nem para ser misericordioso, como em Dickens –, Charles Baudelaire foi, na sua “hipocondria sensual afundada no martírio, o primeiro a mostrar as suas feridas, a sua preguiça, a sua inutilidade aborrecida num século devoto e industrioso”. Quem assim o descreve é o franco-uruguaio Jules Laforgue, seu confrade e contemporâneo. Victor Hugo, a quem Baudelaire dedicaria três poemas de Les Fleurs du Mal, considerava-o “mais resistente que o mármore e mais penetrante que o nevoeiro inglês”. Mas o poeta maldito não descansaria enquanto não maldissesse o grande Hugo, confessando-se enfadado pela “imbecilidade” das laudatórias cartas paternalistas que o genial autor de Os Miseráveis disparava para todos os lados e também lhe dirigia: “Que faites vous quand vous écrivez ces vers saisissants? Que faites vous ? Vous marchez. Vous dotez le ciel de l’art d’on ne sait quel rayon macabre. Vous créez un frisson nouveau… Vous êtes un noble esprit et un généreux coeur. Vous écrivez des choses profondes et souvent sereines. Vous aimez le beau. Donnez moi la main.” É preciso ser ingrato.

Ao contrário, os legítimos representantes do povo português têm vindo repetidamente a agradecer e a aceitar a mão estendida de Hugo nas duas cartas laudatórias que quis enviar a esta “vanguarda da Europa”. Até porque o ignaro e ingrato povo tende a mostrar-se cada vez mais incapaz de vislumbrar nos seus representantes laivos dos intrépidos descobridores de mundos e pioneiros da Verdade aclamados e certificados por Victor Hugo.

Os empresários da felicidade humana (antigos e modernos)

Produto da boa burguesia francesa, Charles Beaudelaire viveu afundado numa boémia do espírito e da carne, em amores de tons negros, que um outro seu contemporâneo – Gustave Flaubert – retomaria em Salammbô.

Órfão de pai, em guerra com o padrasto militar e autoritário – o general Aupick – Baudelaire percorre um itinerário escandaloso para o tempo, um itinerário de paixões incorrectas, sublimadas no simbolismo realista de Les Fleurs du Mal, obra que a Direction de Süreté Publique manda apreender, acusando o autor de “ultraje à moral pública” e de “ofensa à moral religiosa”.

O procurador Ernest Pinard fora já o acusador público de Flaubert, julgado por ter cometido Madame Bovary. Mas Flaubert fora absolvido, graças à táctica processual do seu advogado, Jules Senard, que em vez de se escorar na liberdade de expressão ou na qualidade e especificidade da criação artística, defendera a moralidade do romance: afinal, a adúltera era castigada e o pensamento de Flaubert era, “da primeira à última linha”, um “pensamento moral e religioso”, visando a “exaltação da virtude pelo horror do vício”. Emma Bovary suicidava-se, como Anna Karenina e como a pobre Luísa de O Primo Basílio também se finaria de medo e remorso, e essa era a moral da história.

E a moral ganhava na Europa do triunfo da Burguesia, assustada pela segunda revolução de 1848, a de Junho.

Baudelaire não teria a mesma sorte: o requisitório de Pinard levou à proibição de seis dos poemas de Les Fleurs du Mal, e só em 1949, quase um século depois da condenação de 1857, os “poemas malditos” seriam editados.

Este currículo de jovem boémio e de artista excêntrico, com amantes de todas as cores, frequentador do Club des Hashischins, no Hotel de Lauzun, e autor de poemas obscenos não impressionaria ou escandalizaria hoje os censores de serviço à nova “moral pública”. A não ser que houvesse denúncias de assédio. O que lhe daria hoje infâmia, o que escandalizaria hoje a moral dos “empresários da felicidade pública”, o que condenaria hoje Baudelaire, seria o uso de expressões como “négresse” ou o facto de o poeta se ter tornado politicamente reaccionário – e um reaccionário que desprezava a democracia, negava o Progresso e desdenhava as utopias sociais do tempo.

Depois dos entusiasmos republicanos e revolucionários de 1848 por Robespierre e por socialistas utópicos, como Proudhon, Baudelaire confessava, em Le Spleen de Paris, que, fechado no quarto, lera durante quinze dias “livros que tratavam da arte de tornar os povos, em vinte e quatro horas, felizes, sábios e ricos”. E especificava:

Digeri – quero dizer, engoli – todas as elucubrações de todos estes empresários da felicidade pública…, pelo que não é de surpreender que estivesse então num estado de espírito próximo da vertigem ou da estupidez”.

E num tom ainda mais directo, escreveria em Pauvre Belgique:

“Tínhamos todos o espírito republicano nas veias, como a varíola nos ossos. Estávamos democratizados e sifilíticos”.

A sua desconfiança dos ideais progressistas e o seu pessimismo antropológico vão ser reforçados com a descoberta de Edgar Allan Poe, autor em que vai encontrar um mentor e um irmão espiritual. Nos anos cinquenta, Baudelaire escreve sobre Poe, edita Poe e prefacia as Novas Histórias Extraordinárias.

Sem se ocupar expressamente de política ou de filosofia política, Poe também desconfiava dos entusiasmos optimistas da democracia jeffersoniana e não lhe faltavam referências críticas às instituições, aos “bigoted lovers of abstract Democracy” e aos filósofos optimistas, que não mediam os “inevitáveis males” que emanavam das suas elucubrações nem avaliavam o peso futuro da “tirania da Multidão”.

Com Poe e de Maistre contra Rousseau

E é no pessimismo antropológico de Poe, essa característica que Carl Schmitt, no rasto de Maquiavel, apontará como o ponto de partida da separação das filosofias políticas da Direita e da Esquerda, que Baudelaire encontra o tronco das suas concepções políticas, escrevendo no prefácio às Novas Histórias Extraordinárias:

Poe, produto de um século apaixonado por si mesmo, filho de uma nação mais apaixonada por ela mesma que qualquer outra, viu claramente e reconheceu imperturbavelmente a maldade natural do Homem”

Baudelaire vê em Poe um irmão na modernidade, na inovação e na revolução mental e estética. Sente que o Poe que descreve personagens alienadas e isoladas, arremessadas para mundos estranhos está especialmente próximo das personagens que também habitam a sua poesia: seres exilados, atirados para a modernidade, como o grande cisne de Le Cygne, ou a Andrómaca arrancada aos braços de Heitor e escravizada, ou a “negrèsse” que contempla nas novas avenidas parisienses de Haussmann a ausência dos coqueiros da “superbe Afrique”, ou como próprio poeta, preso num mundo extinto, o vieux Paris, e petrificado perante o novo.

Mas além de Poe, mestre da literatura fantástica e do terror, a outra grande influência de Baudelaire é Joseph de Maistre, autor das Soirées de Saint-Petesrbourg e das Considérations sur la France e um dos teorizadores da contra-revolução.

Joseph de Maistre vira a Revolução Francesa como um castigo de Deus às elites políticas e sociais “pela sua impiedade, imoralidade e degradação de costumes”. A Revolução era a pena merecida pela sociedade do Ancien Régime, que a Divina Providência se encarregara de aplicar à monarquia e à aristocracia decadentes, como as tinham pintado os romances de Sade e de Laclos.

Das influências de Poe e de de Maistre, nasce em Baudelaire, misturado com tudo o resto, um certo romantismo reaccionário e uma exaltação de modelos ou figuras nostálgicas, as únicas que valem a pena o poeta, l’homme qui chante, o padre, l’homme qui bénit, e o soldado, l’homme qui sacrifie et se sacrifie. Tudo o resto erafait pour le fouet”.

E, sobretudo, partilha com de Maistre a guerra santa contra Rousseau (l’homme du monde peut être qui s’est le plus trompé”) e contra a Filosofia das Luzes. E, em Spleen de Paris, replica nas suas errâncias urbanas as passeatas bucólicas do criador do bon sauvage nas Rêveries du promeneur solitaire para atacar a sua dogmática optimista, que considera especialmente herética porque derivada da heresia máxima: a ausência do pecado original na História do homem.

Baudelaire encarniça-se contra toda a filosofia política de Rousseau e sustenta a continuidade da natureza humana, que não muda nem progride e que, se é “naturalmente boa”, é também naturalmente má e perversa. Indigna-se sobretudo com a permanente exibição, por parte de Rousseau, de preocupações éticas superiores e com a constante afirmação das suas próprias virtudes e boas intenções. “Sou o mais virtuoso dos homens”, deixaria cair o autor de Du Contrat Social que, segundo Baudelaire em Les Paradis Artificiels, admirava a virtude a ponto de “encher os olhos de lágrimas” na contemplação de uma boa acção ou na antecipação de boas acções que gostaria de praticar, e que isso o convencia do seu “superlativo valor moral.” Atitude que se repetiria na rectidão e na ilusão de superioridade moral dos progressistas de todos os tempos e lugares.

Agentes externos

Baudelaire fazia parte do Club des Hashishins, onde o Dr. Jacques Joseph Moreau distribuía aos consórcios a mesma pasta verde que, outrora, o Velho da Montanha dava aos seus “Assassinos”. O consumo de haxixe e outras drogas tinha vindo para França com a expedição de Napoleão ao Egipto e tornara-se comum com a conquista da Argélia, a partir de 1830. O clube funcionou entre 1844 e 1849, no Hotel Lauzun, e entre os membros contavam-se Alexandre Dumas, Victor Hugo, Théophile Gautier, Gérard de Nerval e Eugène Delacroix.

Gautier e Baudelaire deixaram de frequentar o Clube, com Gautier a confessar que o faziam, não porque a droga lhes fizesse mal, mas porque “um verdadeiro escritor” só precisava dos seus “sonhos naturais” e não queria que “o seu pensamento fosse influenciado por agentes externos”.

Mulheres, drogas, boémia parisiense nos anos do Segundo Império, no reinado de uma burguesia aristocratizada que reprimira as classes trabalhadoras em Junho de 1848 e voltaria a fazê-lo na Comuna. A burguesia do “enrichissez-vous”, que alimentou a ficção de Flaubert, de Maupassant e de Zola; a burguesia triunfante sob a dolorosa luz do Progresso, da Indústria, dos comboios, das Exposições Universais.

O pecado original

Como é que este Baudelaire, seguindo Joseph de Maistre, vai extrair do pecado original uma teologia política reaccionária, anti-Luzes, anti-Progresso, uma quase “política tirada das palavras da Sagrada Escritura”, ao modo de Bossuet?

Em Charles Maurras e, de certo modo, em de Maistre, o catolicismo e a tradição católica funcionavam como base para as doutrinas da contra-revolução. E Maurras estava e ficou longe da fé e da transcendência, quase até ao fim da vida.

Baudelaire não; Baudelaire foi sempre um atormentado pela fé e pela omnipresença do Mal na História e no coração do homem, constantemente disputado por duas forças: “uma que o empurra para Deus, a outra para Satanás”. André Suarés chamou-lhe um “Dante sem Paraíso, que oscila sem descanso entre a matéria danada e a redenção”, um filho de Adão obcecado, como todos os seus grandes antecessores, de Dante a Milton, pela divina tragédia de um Paraíso perdido e a reencontrar, um homem revoltado na fé e pela fé, que, num dos seus últimos escritos, Mon Coeur mis à nu, confessa rezar todas as manhãs a Deus, “fonte de toda a força e de toda a justiça”, ao pai, a Mariette (a velha criada que o criou e tapou as ausências da mãe) e a Edgar Allan Poe.

Baudelaire, nos seus curtos 46 anos de vida, mergulhou a fundo no complexo leque de identidades que foi descobrindo em si. Como escreve Antoine Compagnon (e poderia escrever-se sobre todos os que, com coragem, liberdade e grandeza, mergulham a fundo na sua própria natureza e na natureza humana):

“Há um Baudelaire realista, um Baudelaire decadente, um simbolista, um satanista, um católico, um ateu, um clássico, um moderno, um reaccionário, um revolucionário, um santo e hoje mesmo um pós-moderno. Que mais poderá dizer-se?”

Morreu, roído pela sífilis, confessado e comungado no número 1 da Rue du Dôme, no Seizième Arrondissement, uma rua entre a Rua Lauriston e a Avenida Victor Hugo. Uma placa assinala, no edifício, esses últimos dias do poeta. Foi daí, desse rés-do-chão, num quarto decorado por dois Manet, (um deles La Maitresse de Baudelaire), que o poeta maldito partiu para o au-de lá misterioso, levado por essa outra sua amante de sempre, a Morte, “vieuz capitaine”, que evocara no final de Le Voyage, um dos últimos poemas de Les Fleurs du Mal:

Nous voulons, tant ce feu qui nous brûle le cerveau,

Plonger au fond du gouffre. Enfer ou Ciel, qu’importe?

Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!

Não foi por obedecerem à “moral pública” que Gustave Flaubert e a sua obra sobreviveram ao tempo. E não foi a correcção moral da altura que impediu Baudelaire de chegar até nós. Não há moralistas, antigos ou modernos, que sobrevivam ao tempo ou que impeçam de sobreviver ao tempo os incorrectos de todos os tempos e facções que, com liberdade e sem medo de “empresários da felicidade” e de burocratas da moral, se aventurem até ao fundo de si e das coisas para encontrar o novo e o eterno.

A SEXTA COLUNA  CRÓNICA  OBSERVADOR  LITERATURA  CULTURA

COMENTÁRIOS

António Antunes: Li Les Fleurs du Mal quando fiz o Erasmus na Bélgica, numa edição de capa mole oferecida por um companheiro de apartamento originário de Namur. O que mais recordo é a beleza das palavras mesclada de bizarria e horror. A obra marcou-me e este excelente artigo transportou-me de volta a esses tempos.

Américo Silva: Para compreender com maior facilidade a revolução francesa, acho inestimável a leitura do livro "L'homme aux quarante écus", de Voltaire. Está lá muito. É preciso continuar a explorar o povo, de preferência cada vez mais, não a favor da igreja, ou da nobreza antiga, subentende-se, mas de uma nova pequena nobreza, faminta, insaciável, parasitária. A revolução futura, futura em relação a Voltaire, não diz respeito aos servos, será uma substituição de senhores, assim foi. Rousseau e os outros, fizeram da democracia um meio, um meio a aplicar aos outros, reservando para si o poder judicial que excluíram de qualquer democratização. Queriam uma sociedade livre, até certo ponto, onde os detentores do crédito poderiam extorquir o povo, enquanto os juristas observavam confortavelmente sentados e inamovíveis no poder. Os senhores do crédito aproveitaram os ventos de feição, e a nação possuída pelos juízes foi avançando lentamente, mas sem se deter. Hoje o chamado mundo democrático é cada vez mais dirigido por figuras não eleitas, como a união europeia, e para ser eleito é cada vez mais necessário pertencer à irmandade jurídica.

Tudo isso é apenas um meio, como a igreja de séculos compreendeu há muito, o fim é a posse do indivíduo, de cada indivíduo. A morte na guerra ou na paz é um desperdício. Queremos pessoas vivas e submetidas. Submetidas a um poder universal, seja desportivo, seja económico, seja militar. O processo está em curso, degrau por degrau. O Covid é um exemplo, depois da gripe fantasma das aves, muito depois da emissão de papel moeda. A dúvida prende-se com a criação de um poder universal global ou de dois ou três poderes universais, não mais, cada um totalitário no seu território.

Esse poder universal tem uma cúpula, e a sua pequena nobreza de funcionários institucionais e públicos, com uma pequena corte de líderes de grupos, sejam grupos económicos, grupos religiosos, grupos de intervenção social e outros, cada um usado e descartado conforme conveniente. Para o indivíduo não restará lugar algum.

hermes trimegisto: Bravo !!!

 

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