terça-feira, 8 de junho de 2021

Notas soltas

 

A respeito da forma como se soltam os cabedais dos bolsos – ou dos depósitos bancários dos contribuintes. Não há como ser-se formado em Economia, para se poder atentar melhor nas práticas dos desmandos do protocolo governativo habitual – cobrar o imposto e pedir o empréstimo, também em páginas imorredouras como estas de Eça de Queirós, que a cada passo lembramos:

«- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!...

O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os emprestamos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar...

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota.

- Num galopezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.

- A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela - continuava o Cohen - que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país... »– Cap. VI de OS MAIAS.


Quanto à finalidade do novo imposto agendado, segundo estas páginas de Salles da Fonseca, assentes numa realidade comprovativa da romanceada há cerca de um século e meio, mas agora acrescida dos generosos intuitos de liquidar umas pontas soltas de capitalismo ainda estrebuchante, numa de aplainamento social virtuoso e tépido para os corações, ansiosos de igualitarismo, na fauna humana – que na outra fauna nem sempre se estabelece, e até por isso se lhe chamou a “lei da selva”, de regência do mais forte, é claro - Salles da Fonseca explica, com a necessária competência de perito, igualmente recorrendo à aritmética que se dava aos meninos, de somas e o resto das operações capitais, exigindo a fixação da tabuada para memorizar. Leiamo-lo:

 MAIS CARGA FISCAL

INVEJAS E FALÁCIAS

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 07.06.21

Rejubilam as parangonas com o agendamento pelo G7 do «imposto comum» mas, até mais ver, tudo é fumaça. E já se diz que será uma taxa de 15%.

Muito bem, pergunto então sobre que valores se aplicará a dita taxa e para que servirá o produto arrecadado.

Obviamente, ninguém que esteja munido de alguma seriedade saberá responder. São, portanto, parangonas balofas.

Dá-se na aritmética aos meninos de escola que aplicar uma taxa a produtos diferentes produz resultados díspares e que o efeito distributivo da receita pública é matéria muito volátil.

Começando pelo fim, o «imposto comum» será cobrado pelos Fiscos nacionais e não reverterá para um bolo comum, será receita de cada Estado. Ou seja, total ausência de solidariedade internacional e apenas aumento da carga fiscal em cada país.

E quanto aos tais 15%, aplicados a bases tributadas calculadas sabe-se lá como, vão por certo gerar uma distorção da concorrência fiscal entre os Estados.

O júbilo das parangonas, tendo subjacente o espírito de «partir os dentes ao capitalismo», não tem o cuidado de ver o logro em que um pouco de estudo poderia evitar o ridículo em que está a cair.

Rapidamente, a taxa é o último ponto a tomar em consideração num processo destes. Tudo tem de começar pela aprovação internacional de um POCI – Plano Oficial de Contas Internacional como, ao fim de décadas de trabalhos, a Europa já conseguiu fazer. Só assim se poderá ter uma «linguagem contabilística comum» e saber que aquela despesa é tratada do mesmo modo em toda a parte, que aquela provisão se destina exactamente ao que ficou internacionalmente estabelecido, etc. E só quando este trabalho estiver concluído é que poderá passar a haver alguma transparência na concorrência fiscal entre Estados com duas vertentes essenciais: o método de cálculo das matérias tributáveis (quais as despesas dedutíveis) e quais as taxas a aplicar assim determinando as matérias colectáveis. Ganhará a competição o Estado que mais despesas permitir deduzir e taxas mais baixas aplicar.

Daqui resulta que a discussão começou pelo fim, a «casa» começou a ser construída pelo telhado e em breve ninguém mais saberá do que está a tratar.

Havia que mexer nalguma coisa para que tudo ficasse na mesma.

«Joe Biden, 15 – G7, zero».

Tags: economia

 

COMENTÁRIOS

Anónimo 08.06.2021 18:07: Caro Dr. Salles da Fonseca, Decide-se (e regulamenta-se) não para alcançar determinados objectivos económicos claramente demonstrados, mas para os cabeçalhos dos jornais e as aberturas dos telejornais. É esse o grande objectivo. O único consolo (se é que isto pode servir de consolo) é tudo isto mostrar à evidência que a mediocridade, afinal, não é uma doença que só grassa entre nós.

Adriano Miranda Lima 08.06.2021:  Por uma razão qualquer, não saiu a identificação. Este é um útil esclarecimento para quem, como eu, criou uma expectativa muito favorável relativamente a esta notícia. Oxalá não venha a ficar tudo na mesma, como parece deduzir-se, com pessimismo, das palavras do Dr. Salles da Fonseca. Todavia, a rasoira eficaz sobre a evasão fiscal terá de passar pelo desmantelamento de todos os offshores, o que exigirá necessariamente um consenso alargado tendo em vista o reforço da regulação global neste domínio. Adriano Miranda Lima


Nenhum comentário: